segunda-feira, 25 de agosto de 2014

                                     A última gravação de Krapp

de Samuel Beckett

Noite, sobre a tarde, de aqui a algum tempo. No proscênio ao centro, uma mesinha de duas gavetas que abrem para o lado da sala. Sentado à mesa, de rosto para o público, quer dizer: do lado oposto às gavetas, um velho de aspecto relaxado. Krapp.

Calças estreitas, demasiado curtas, de um negro duvidoso. Colete sem mangas de um negro não menos duvidoso e com quatro grandes bolsos. Relógio de prata, pesado e de corrente. Camisa branca sebenta, desabotoada no pescoço, sem colarinho. Surpreendente par de botas, de um branco encardido, remontando pelo menos a 48, muito estreitas e bicudas.

Rosto branco. Nariz violáceo. Cabeleira cinzenta em desordem. Mal barbeado. Muito míope (mas sem óculos). Duro de ouvido. Voz de cana rachada muito particular. Andar laborioso.

Em cima da mesa, um magneto fone mais o respectivo microfone e numerosas caixas de cartão com bobinas de fita impressionada dentro.
A mesa e as imediações banhadas em luz crua. O resto da cena na obscuridade. Krapp permanece um momento imóvel, solta um enorme suspiro, olha para o relógio, vasculha os bolsos, tira um sobrescrito de um deles. Torna a escondê-lo, vasculha de novo, tira um minúsculo molho de chaves, ergue-o a altura dos olhos, escolhe uma chave, levanta- se e caminha para a frente da mesa. Baixa- se, abre a fechadura da primeira gaveta, espreita para dentro, mete- a na mão, tira uma bobina, examina- a de perto, torna a escondê-la, volta a fechar a gaveta. A chave, abre e fecha na segunda gaveta, espreita pra dentro, mete a mão, tira de lá uma grande banana. Examina- a de perto, torna a fechar a gaveta a chave e volta a por as chaves no bolso. Volta, avança até a beira da cena, detém- se, acaricia a banana, descasca- a, deixa cair as casas ao seus pés, mete a ponta da banana na boca e permanece imóvel, os olhos fixos no vazio. Por fim morde a extremidade da banana volta- se e põe- se a andar de cá para lá à beira da cena, isto é: à razão de quatro ou cinco passos no Maximo em cada sentido, mastigando ao mesmo tempo meditativamente a banana. Pisa a casca, tropeça, por pouco não cai, equilibra- se, inclina- se, contempla a casca e por fim, sempre curvado, empurra-a com a ponts do pé para o fosso da orquestra. Retoma o seu vaivém, acaba de comer a banana, volta para a esa, senta- se, fica um momento imóvel, solta um enorme suspiro, tira as chaves do bolso, levanta- se a altura dos olhos, escolhe uma chave, levanta- se e caminha para a frente da mesa, abre a fechadura da segunda gaveta, tira dela uma segunda grande banana, examina- a de perto, torna a fechar a gaveta à chave, torna a por as chaves no bolso, volta- se, avança até a beira da cena, detém- se, acaricia a banana, descasca- a, atira a casca para o fosso da orquestra, mete a ponta da banana na boca e fica imóvel, os olhos fixos no vazio. Por fim, tem uma idéia, Põe a banana num dos bolsos do colete onde fica com a ponta de fora e com toda a velocidade de que é capaz corre para o fundo da cena, que esta na obscuridade. Dez segundos. Ruído de um tirar de tampo. Quinze segundos. Volta para a luz, carregando um registro velho, e senta- se à mesa. Pousa o registro em cima da mesa, enxuga os lábios, limpa as mãos ao colete, bate palmas e esfrega- as.

KRAPP- (com vivacidade) Ah! (inclina- se sobre os registros, vira as páginas, encontra a ficha que procura, lê). Caixa...três...bobina..(levanta a cabeça e olha fixamente diante de si, com prazer).Bobiña! (Pausa) Bobiña. (Debruça- se sonre a mesa feliz, ecomeçaa vasculhar as caixas examinando- as de perto) Caixa...três...três...quarto...dois... (Surpresa)... Nove! Santo nome de Deus!.. Sete...ah! Magana! (Agarra uma caixa, examina-a de muito perto) Caixa- três. (Pousa- a sobre a mesa, abre-a e inclina- a sobre as bobinas que tem dentro). Bobina... (curva- se sobre o registro) Cinco...cinco..ah! Sua farroupilha! (Tira uma bobina, examina- a de perto) Bobina cinco. (Poe- na em cima da mesa, fecha a caixa três, arruma- a junto das outras, torna a pegar a bobina). Caixa três, bobina cinco. (Inclina- se sobre o aparelho, levanta a cabeça. Com prazer). Bobina!! (Sorriso feliz. Inclina- se, coloca a bobina no aparelho, esfrega as mãos). Ah! (Debruça- se sobre o arquivo, lê a nota em baixo da página). Mamã finalmente em paz...hm... A bola negra..(Ergue a cabeça, olhos fitos no vazio diante de si) Bola negra?.. (Inclina- se de novo sobre o arquivo, lê) A sopeira trigueira.. (Levanta a cabeça, devaneia, inclina- se outra vez sobre o arquivo, lê). Ligeiras melhoras do estado intestinal...hm... Memorável ...o que? (Olha mais de perto, lê). Equinócio, memorável equinócio. (Ergue a cabeça, os olhos fitos no vazio. Intrigado) memorável equinócio? (Pausa. Encolhe os ombros, inclina- se de novo sobre o arquivo, lê). Adeus ao a... (volta a página) mor.

Levanta- se a cabeça, devaneia, debruça- se sobre o aparelho, liga-o e poe- se em posição de escuta, quer dizer o busto inclinado para frente, os cotovelos sobre a mesa, a mão em pose de corneta acústica na direção do aparelho, de rosto para a sala.

A FITA: (Voz forte, um tanto solene, manifestando a voz de Krapp em época muito anterior)

Trinta e nove anos hoje, sólido como uma...

(Ao querer instalou- se mais confortavelmente, faz cair uma das caixa, pragueja, desliga o aparelho, atira com um gesto violento caixas e arquivo para o chão. Torna a por a fita no ponto de partida , volta e liga o aparelho, retoma- a a posição anterior).

Trinta e nove anos hoje, sólido como uma ponte, à parte do meu velho ponto fraco, e quando a intelectualidade, tenho agora razões, para me suspeitar, no.. (Hesita) no píncaro da vaga- ou pouco falta, na verdade. Celebrada a solene ocasião, como todos esses anos, tranquilissimamente, na Taverne. Nem vivalma. Para ali me deixar estar diante do fogo, os olhos fechados, a separar o trigo do joio cá da minha vida. Rabisquei algumas notas nas costas de um sobrescrito. Feliz por estar de volta à minha mansarda, aos meus trastes. Acabo de comer, lamento dizê-lo, três bananas e abstive-me de comer a quarta sabe Deus com que custo. Autêntico veneno para um homem no meu estado. (Com veêmencia). A eliminar. (Pausa). A nova iluminação mesmo por cima da minha mesa constitui um grande melhoramento. Com toda essa obscuridade à minha volta sinto- me menos só. (Pausa) Em certo sentido. (Pausa). Adoro levantar-me para lhe dar uma volta, depois voltar aqui a.. (Hesita) mim. (Pausa) Krapp.

Pausa.

O trigo vejamos, pergunto a mim mesmo que entendo eu por tal. Entendo... (Hesita) suponho que entendo por trigo todas essas coisas que ainda hão- de valer a pena quando toda a poeira te ver - quando toa a minha poeira se tiver depositado. Fecho os olhos e faço força para (?)..

Pausa. Krapp fecha os olhos, um breve instante.

Extraordinário silencio essa noite, bem aguço os ouvidos, não se move um suspiro. A velha Miss McGlone canta sempre a esta hora. Mas esta noite não. Canções do tempo em que era rapariga, diz ela. Difícil imaginá-la rapariga. Maravilhosa velha apesar de tudo. Uma Connaught, tenho a impressão. (Pausa). Eu cantarei quando tiver a idade dela, se chegar a idade dela! Não. Cantava acaso quando era capaz? Não. Cantei alguma vez? Não.

Pausa.

Acabei agora mesmo de ouvir um ano antigo, passagens ao acaso. Não verifiquei no livro, mas a coisa deve remontar a uns dez ou doze anos atrás- pelo menos. Julgo que nessa altura vivia ainda com Blanca em Kedar Street, enfim, quando a Deus prazia. Escapei de boa, oh, se escapei! Era um caso perdido (Pausa). Nada a respeito dela, à parte uma homenagem aos meus olhos. Entusiástica. Tornei a vê-los de repente. (Pausa). Incomparáveis! (Pausa). Enfim... (Pausa). Sinistras essas exumações, mas acho-as as mais das vezes- (Krapp desliga o aparelho, devaneia, torna a ligar o aparelho) úteis antes de me lançar a um novo... (Hesita) volta atrás. Difícil acreditar que alguma vez eu tenha sido alguma vez aquele cretinóide. Aquela voz!

Jesus! E aquelas aspirações! (Risada breve a que se junta Krapp). E aquelas resoluções! (Risada breve a que se junta a Krapp). Beber menos, nomeadamente. (Risada breve de Krapp sozinho). Estatísticas. Mil e setecentas horas em oito mil e alguns precedentes volatilizados apenas em tascas rascas. Mais de 20%, digamos 40%, da sua vida acordada. (Pausa). Planos par uma vida sexual menos... (Hesita) absorvente. Ultima doença de seu pal. Procura cada vez mais frouxa da felicidade. Flasco dos laxativos. Sarcasmos sobre o que ela chama a sua juventude e ação de graça por ela ter acabado. (Pausa) Falta nota neste sítio. (Pausa) Sombra do opus..magnum. E para acabar uma - (risada breve)- casquinada em intenção da Providência. (Risada prolongada a que se junta Krapp). Que coisa resta de todas essas misérias? Uma moça de capa verde em uma estação? Ou não?

Pausa.

Quando contemplo- (Krapp desliga o aparelho, devaneia, olha para o relógio, levanta- se e vai até ao fundo da cena que está na obscuridade. Dez segundos ruído de um tirar de tampa. Dez segundos segunda tampa. Dez segundos. Terceira tampa. Súbita cantiga, “ entre- cortada” e trêmula.)

KRAPP (cantando)- À sombra desce das nossas montanhas.
                               O azul do céu vai não vai empalidece. 
                               O barulho extingue- se
Acesso de tosse. Volta a luz, senta- se, limpa a boca. Torna a ligar o aparelho, retoma a posição de escuta.

A FITA-  volta- atrás ao ano do passado, com possivelmente- espero- alguma cois do meu velho olhar por vir, existe naturalmente a casa do canal onde a mamã se extinguia. No outono moribundo, após uma longa viuvez (Krapp estremece). E o- (Krapp desliga o aparelho, poe a fita um pouco mais atrás, aproxima o ouido do aparelho, torna a ligá-lo)- se extinguia, no Outono moribundo, após uma longa viuvez, e o- (Krapp desliga o aparelho, põe a fita um pouco mais atrás, aproxima o ouvido do aparelho, torna a liga-lo) se extinguia, no Outono moribundo, após uma longa viuvez, e o -

 (Krapp desliga o aparelho, levanta a cabeça, olhos fixos no vazio. Mexe os lábios sem ruídos formando as sílabas de viuvez. Levanta- se, vai para o fundo da cena que está na obscuridade. Volta, com um dicionário enorme, senta- se, pousa- o sobre a mesa, e procura as palavras.)

KRAPP- (Lendo o dicionário) Estado- ou condição- de quem é- ou permanece - viúvo- ou viúva. (Levanta a cabeça indignado) Quem é- ou permanece?- (Pausa. Inclina- se de novo sobre o dicionário. Volta as páginas) Viúvo... Viúvo... Viuvez (Lendo) Os véus espessos da viuvez... Diz- se de um animal, particularmente de um pássaro... Viuvinha ou viúva... A plumagem negra dos machos... (Levanta a cabeça. Com deleite) A viuvinha.

Pausa. Fecha o dicionário, liga outra vez o aparelho, retoma a posição de escuta.

A FITA-   Banco perto da levada de onde podia ver os vidros da janela dela. Ali ficava eu, sentado ao vento desabrido, desejando que ela acabasse. (Pausa). Quase ninguém, alguns crônicos apenas, sopeiras, garotos, velhos, cães. Acabei por conhecê-los bem- oh, quero dizer de vista, bem entendido! Lembro- me sobretudo de uma tenra beldade morena, muito branca do pó de arroz, com um peito incomparável, que empurrava um carrinho de capota negra, de um fúnebre, só visto! Todas as vezes que olhava na direção dela, tinha os olhos em cima de mim. Pois quando tive a coragem de lhe dirigir a palavra - sem lhe ter sido apresentado- ameaçou-me de chamar a policia. Como se eu tramasse contra a sua virtude! (Riso) A carinha que ela tinha! Que olhos! Tal qual... (Hesita)  crisólitos! (Pausa) Enfim... (Pausa). Eu estava lá quando - (Krapp desliga o aparelho, devaneia...torna a ligar o aparelho) Levantei a cabeça, e já estava... Um caso, finalmente. Fiquei onde estava ainda alguns instantes, sentado no banco, com uma bola na mão e um cão a latir atrás dela e a mendiga- la com a pata. (Pausa) Instantes... (Pausa) os seus, dela, instantes, os meus, muito meus, instantes. (Pausa) Os instantes do cão. (Pausa) Por fim, ele a abocanhou com o focinho, meigamente, meigamente. Uma bola de borracha pequena, velha, negra, plena, dura. (Pausa) Sentirei na mão, até o dia da minha morte. (Pausa). Podia tão bem tê- la guardado. (Pausa). Mas dei-a ao cão.

Pausa.

Enfim..

Pausa.

- Espiritualmente um ano não se pode conceber mais negro e mais pobre até essa memorável noite de Março, na extremidade do pontão, à ventania, nunca me esquecerei, em que tudo se me  tornou claro. A visão, finalmente. Eis, suponho, o que tenho sobretudo que registrar esta noite, na previsão do dia em que os meus trabalhos estiveram... (Hesita) acabados e em que eu não terei, quem sabe, mais nenhuma recordação, nem boa nem má, do milagre que... (Hesita) do fogo que a abrasara. O que de súbito vi então, era que a criança que tinha guiado toda a minha vida, a saber- (Krapp desliga o aparelho com impaciência, faz avançar a fita, ...torna a ligar o aparelho)- grandes rochedos de granito e a espuma que jorrava sob a luz do farol e o anemômetro que turbilhonava como uma hélice, claro para mim, enfim, que a obscuridade que me encarniçara sempre por reclacar em mim e na realidade o meu melhor- (Krapp desliga o aparelho com impaciência, faz avançar a foto. Torna a ligar o aparelho)- indestrutível associação até o último suspiro da tempestade e da noite mais a luz do entendimento e o fogo- (Krapp pragueja, desliga o aparelho, faz avançar a fita, torna a desligar o aparelho) - o rosto entre os seus seios e a mão por cima dela. Ali ficamos, deitados, sem nos mexermos. Mas debaixo de nós, tudo estremecia, e nos fazia estremecer, docemente, de alto a baixo, e de lá pra cá.

Pausa.

- Passa da meia- noite. Jamais ouvi tamanho silêncio. A terra podia ser desabitada.

Pausa.

Aqui termino- (Krapp desliga o aparelho, volta com a fita, atrás torna a ligar o aparelho).- no alto do lago, mais o barco, nadei perto da margem, depois levei o barco até o lago e deixei-o andar sem governo. Ela estava deitada sobre as tábuas do fundo, as mãos debaixo da cabeça, e os olhos fechados. Sol, fulgurante, uma bisca de brisa, a água um tudo nada marulhante- como eu gosto dela. Notei-lhe um arranhão nas coxas e perguntei-lhe como o tinha feito. À  colher groselhas verdes, respondeu-me ela. Disse-lhe ainda que tudo aquilo parecia sem esperança e não valia a pena continuar e ela fez que sim sem abrir os olhos. (Pausa). Pedi-lhe que olhasse para mim e após alguns instantes - pausa- após alguns instantes, ela olhou. Os olhos porém como fendas por causa do sol. Inclinei-me sobre ela para os pôs à sombra e eles abriram- se. (Pausa). Deixaram- me entrar. (Pausa) Derivávamos por entre os caniços e o barco encalhou. Como eles se dobravam, suspirando diante da proa. (Pausa) Vim-me sobre ela, o rosto entre os seus seios e a mão por cima dela. Ali ficamos deitados, sem nos mexermos. Mas debaixo de nós, tudo estremecia, e nos fazia estremecer, docemente, de alto a baixo e de lá para cá.

Pausa.

- Passa da meia noite. Jamais ouvi-

Krapp desliga o aparelho. Devaneia. Por fim, vasculha os bolsos, encontra a banana, tira-a, examina- a de perto, e torna a meter no bolso, vasculha outra vez, tira o sobrescrito, vasculha outra vez, torna a meter o sobrescrito no bolso, levanta- se e vai para o fundo da cena, que está na obscuridade. Dez segundos. Ruído de garrafa contra o vidro. Depois breve ruído de sifão. Dez segundo. De novo a garrafa contra o vídeo, mais nada. dez segundos. Volta com o passo mal seguro para a luz, dirige- se para a frente da mesa, tira do bolso as suas chaves, levanta- as à altura dos olhos, escolhe uma, abre a fechadura da primeira gaveta, olha pra dentro, mete a mão, tira uma bobina, examina- a de perto, torna a fechar a gaveta à chave, volta a por as chaves no bolso, vai sentar- se, tira a bobina do aparelho, coloca-a sobre o dicionário, coloca a bobina virgem no aparelho, tira o sobrescrito do bolso, consulta o anverso, pousa-o sobre a mesa, devaneia, liga o aparelho, aclara a voz e começa a gravar.

KRAPP- Acabei de ouvir esse cretinóide por quem me tomava há trinta anos, custa a acreditar que eu já tenha sido...Ao menos, isso acabou, graças a Deus. (Pausa). Os olhos que ela tinha! (Divaga, se percebe, que está gravando o silencio, desliga o aparelho, divaga. Por fim). Tudo ali estava, toda a- (Percebe que o aparelho não está ligado, torna a ligá-lo) Tudo ali estava, toda a velha carcaça do planeta, toda a luz e a obscuridade, a fome e as comezainas dos séculos! (Pausa. Em um grito) Sim, senhor! (Pausa. Amargo). Deixar fugir uma coisa daquelas!Jesus! Uma coisa que podia, Tê-lo distraído dos seus quadris! Jesus! (Com cansaço) Enfim, talvez ele tivesse razão. (Divaga, apercebe- se . Desliga o aparelho. Consulta o sobrescrito) Bah! (Torna a lidar o aparelho) Nada a dizer, que chatice! Que raio vem a ser isso hoje, outro ano? Merda mastigada e rolha no cu. (Pausa) Saboreei a palavra bobina. (Com deleite) Bobiina! O instante mais feliz dos últimos quinhentos mil. Dezessete exemplares vendidos, dos quais onze a preço de grossista às bibliotecas municipais do ultramar. Em riscos de me tornar alguém. Uma libra, seis xelins e alguns dinheiros, oito provavelmente. Arrastei-me lá por fora uma vez ou duas antes de o Verão gelar. Fiquei sentado a tiritar no parque, mergulhado em sonhos e ardendo por acabar. Ninguém. Derradeiras quimeras. (Com veemência). A recalcar! Queimei os olhos a ler Effie mais uma vez, uma página por dia, de lágrimas nos olhos ainda, Effie...(Pausa) Teria podido ser feliz com ela no mar Báltico, entre pinheiros e dunas. (Pausa) Não? (Pausa) E ela? (Pausa) Bah! (Pausa) Fanny veio uma ou duas vezes. Velha sombra de prostituta esquelética. Não consegui fazer grande coisa, mas sem dúvida melhor do que um pontapé entre as pernas. A última vez, não foi tão mal quanto isso. Como consegues a tua conta, disse-me ela, com essa idade? Respondi-lhe que me reservara para a ela toda a vida. (Pausa) Lá fui às Vésperas uma vez como quando usavam calções. (Pausa, canta).

Cantando- A sombra desce das nossas montanhas
                 O azul do céu vai não vai empalidece,
                 O barulho extingue- se (Acesso de tosse quase inaudível)
                 Em breve tudo vai dormir em paz.

(Ofegante) - Adormeci e cai do banco abaixo. (Pausa) Muitas vezes me perguntei a meio da noite se um ultimo esforço me não seria talvez...(Pausa) Basta! Emborca a garrafa e deita- te a dormir. Continua as bandalheiras amanhã. Ou fica por aí. (Pausa) Fica por aí, pois. (Pausa) Instala- te no escuro, agarrado aos travesseiros- e vadia. Vai outra vez até ao vale em vésperas de Natal colher azevinho, azevinho de bagas vermelho. (Pausa) Vai mais uma vez até à beira do Croghan um domingo de manhã, entre a bruma, e leva a cadela, pára e escuta os sinos. (Pausa) E assim sucessivamente. (Pausa). Toda essa velha miséria. (Pausa). Uma vez não te bastou. (Pausa) Vem- te sobre ela.

Longa pausa. Inclina- se bruscamente sobre o aparelho, desliga-o, arranca a fita, atira-a para longe, coloca a outra no aparelho, fá- la avançar até a passagem que procura, torna a ligar o aparelho, escuta de olhos fitos.

A FITA- Groselhas verdes, respondeu-me ela. Disse-lhe ainda que tudo aquilo me parecia sem esperança e não valia a pena continuar e ela fez que sim sem abrir os olhos. (Pausa) Pedi-lhe que olhasse para mim e após alguns instantes- (pausa)- após alguns instantes ela olhou, os olhos porém como fendas por causa do sol. Inclinei-me sobre ela para os pôs à sombra e eles abriram- se. (Pausa) Deixaram- me entrar. (Pausa) Derivávamos por entre os caniços e o barco encalhou. Como eles se dobravam, suspirando, diante de .. (Pausa) Vim- me sobre ela, o rosto entre os seus seios e a mão por cima dela. Ali ficamos, deitados, sem nos mexermos. Mas, debaixo de nós, tudo estremecia, e nos fazia estremecer, docemente de alto a baixo, e de lá pra cá.

Pausa. (Os lábios de Krapp murmuram sem ruído)

- Passa da meia- noite. Jamais ouvi tamanho silencio. A Terra podia ser desabitada,

Pausa.

Aqui termino esta fita. Caixa- (pausa)- três bobinas- (pausa). Possivelmente os meus melhores anos já passaram. Quando havia ainda uma oportunidade de felicidade! Mas agora já não quero. Agora que tenho esse fogo dentro de mim. Não, agora já não quero.

Krapp fica imóvel, olhos fitos no vazio. A fita continua a desenrolar- se em silêncio.

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