Teatro/CRÍTICA
"Jazz do coração"
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Comovente e emocionante tributo
Lionel Fischer
Muito já se escreveu sobre a obra de Ana Cristina César (1952-1983), em minha opinião não apenas uma das maiores poetas de sua geração, mas de todas as gerações. E como sou um admirador apaixonado de suas poesias, tive a tentação de falar um pouco sobre elas. No entanto, achei mais sensato recorrer a um especialista (no caso, uma especialista), que certamente reúne muito mais condições do que eu para resumir o que de mais essencial está contido nos escritos desta poeta de exceção. O trecho abaixo, de autoria de Arminda Silva de Serpa, foi extraído de "Lições sobre asas e abismos; uma leitura da poesia de Ana Cristina César":
"Os poemas de Ana Cristina César, inseridos no clima da geração 70, revelam, entre as muitas características que marcaram a produção poética daquela época, as seguintes: atração pelo insólito do cotidiano; ênfase na experiência existencial num momento especialmente difícil da história e da política brasileira; volta à primeira pessoa, à escrita da paixão e do medo como caminho eficaz no sentido de romper o silêncio e a perplexidade que tomaram de assalto a produção cultural no início da década; o sentido de asfixia, experimentado no cotidiano, mas trabalhado com humor; valorização do coloquialismo; culto do instante, eixo fundamental da nova poesia e do binômio arte e vida. O binômio Arte e Vida era a consolidação de uma visão de mundo que valorizava o aqui e o agora: a ideia do presente, eliminando a ideia de futuro".
Isto posto, estamos aqui diante de um espetáculo que presta emocionante, divertido e comovente tributo a Ana Cristina César. Estruturado a partir de poemas e cartas da autora, "Jazz do coração" (Casa de Cultura Laura Alvim, Sala Rogério Cardoso) chega à cena com dramaturgia e direção assinadas por Delson Antunes, estando o elenco formado por Françoise Forton e Aline Peixoto, que dão vida a Ana Cristina, também conhecida como Ana C.
Talvez a mais importante e singular característica do presente espetáculo resida no fato de que não se procurou biografar a autora, mesclando aos poemas selecionados dados de sua vida e trajetória artística. Não, pelo contrário: aqui a poesia reina soberana e é através dela que podemos usufruir as dores e alegrias (assim como uma infinidade de outros sentimentos) de uma alma atormentada e lúdica, irônica e frágil, potente e inconformada, sempre em busca de algo que talvez nem ela mesma soubesse definir com clareza. Será que, a exemplo do Caligula, de Albert Camus, Ana Cristina César também desejava possuir a lua, ou seja, o impossível?
Para tal pergunta, evidentemente, não tenho resposta. Mas talvez a poeta padecesse de algo que defino como "dor de existir", uma espécie de buraco existencial, uma ferida que jamais cicatriza e cuja origem, não raro, não se consegue detectar com clareza. Seja como for, o que importa agora ressaltar é o magnífico trabalho dramatúrgico feito por Delson Antunes, que costura as poesias de tal forma que mesmo aqueles que jamais leram a poeta terão uma visão mais do que pertinente de sua obra e, consequentemente, de sua vida.
Com relação ao espetáculo, Delson Antunes impõe à cena uma dinâmica que, sem jamais cair em armadilhas recitativas, nos permite viajar por uma mente brilhante, viagem esta ressaltada pelas malas contendo roupas, objetos, lembranças e desejos. Cabe também enfatizar a teatralidade das cenas, muitas delas engrandecidas pelas maravilhosas composições criadas por Pedro Luís e cantadas de forma esplêndida pelas atrizes. Em resumo: um espetáculo impregnado de humanidade e poesia, e que merece ser prestigiado de forma incondicional pelo público carioca.
No tocante às atrizes, há muito tempo não vejo uma tal cumplicidade cênica como a exibida por Françoise Forton e Aline Peixoto. Ambas exibem notável capacidade de entrega, total apropriação das palavras que proferem e, como já dito, cantam de forma esplêndida - e aqui me parece importante mencionar o fato de que cantam não com vozes empostadas, como se pretendessem impressionar incautos com a extensão ou afinação das mesmas: Françoise e Aline cantam como talvez cantasse Ana Cristina César.
Gostaria também de frisar que, se por um lado, o talento de Françoise não constitui novidade para mim, em contrapartida o de Aline me era desconhecido - como se não bastasse sua irretocável atuação, a jovem atriz de 22 anos ainda toca violão e clarinete. As duas performances, em minha opinião, estão entre as mais significativas da atual temporada.
Na equipe técnica, considero irrepreensíveis as contribuições de todos os profissionais envolvidos nesta imperdível empreitada teatral - Suely Mesquita (direção musical e preparação vocal), Jeane Terra (cenografia), Carol Lobato (figurinos), Luis Paulo Nenén (iluminação) e Adriana Bonfatti (direção de movimento).
JAZ DO CORAÇÃO - Texto de Ana Cristina César. Dramaturgia e direção de Delson Antunes. Com Françoise Forton e Aline Peixoto. Casa de Cultura Laura Alvim (Sala Rogério Cardoso). Terças e quartas, 21h.
quarta-feira, 20 de agosto de 2014
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