segunda-feira, 7 de março de 2016

Teatro/CRÍTICA

"Dorotéia"

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Obra de Nelson em impecável versão



Lionel Fischer



"Dorotéia, ex-prostituta que largou a profissão depois da morte do filho, vai morar na casa de suas primas, três viúvas puritanas e feias que não dormem para não sonhar e, portanto, condenadas à desumanização e à negação do corpo, dos sentimentos e da sexualidade. Dorotéia, linda e amorosa, nega o destino e entrega-se aos prazeres sexuais. Este é seu crime, e por ele pagará com a vida do filho buscando a sua remissão".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima resume o enredo de "Dorotéia", de Nelson  Rodrigues, em cartaz no Teatro Tom Jobim. Jorge Farjalla assina a direção do espetáculo, estando o elenco formado por Letícia Spiller (Dorotéia), Rosamaria Murtinho (Dona Flávia), Alexia Deschamps (Maura), Anna Machado (Maria das Dores), Jacqueline Farias (Carmelita) e Dida Camero (Dona Assunta), que dividem a cena com os atores-músicos (aqui chamados Homens Jarro) Fernando Gajo, Pablo Vares, André Américo, Du Machado, Daniel Veiga Martins e Rafael Kalil.

Definida pelo autor como "uma farsa irresponsável", não sei até que ponto a peça é realmente uma farsa e menos ainda se é responsável ou não. Tampouco poderia afirmar que Nelson Rodrigues, ao menos em alguma medida, tenha se inspirado nas Fúrias da Mitologia Grega - três figuras femininas de negro e usando máscaras, aterrorizantes e hieráticas, personagens da "Oréstia", de Ésquilo. Mas me parece irrefutável que neste texto estão presentes alguns temas recorrentes na obra do autor, como castidade, pudor, culpa, repressão etc. E se tais temas pudessem aqui ser resumidos numa única frase, esta poderia ser a seguinte: a solidão vil do sexo sem amor.

Toda a ação transcorre numa casa sem quartos, o que soa coerente, já que uma das personagens afirma que "é no quarto que a alma e a carne se perdem", embora todos saibamos que tanto nossa alma, quanto nossa carne, podem se perder em diversificadas geografias. Mas aqui o quarto passa a ser uma espécie de símbolo do pecado, da transgressão, da ausência de pureza, de todas as possíveis e condenáveis tentações. 

Outro dado interessante diz respeito à identidade de Dorotéia. Na família existiram duas: uma teria se afogado, por não suportar o conhecimento de que "por dentro de seu vestido estava um corpo nu"; a outra perdeu-se, tornou-se prostituta. Finalmente: qual das duas é a que está em cena? Acaba-se sabendo que é a ex-prostituta, que perdeu um filho e agora deseja trilhar o caminho da virtude. Mas é belíssima, enquanto todas as mulheres da família são medonhas. E para se chegar à virtude, há que se matar a beleza...

E por último: a bisavó das primas, em sua noite de núpcias, fora acometida pela Náusea. Ou seja: na hora em que a onça deveria beber água, teria sido possuída por uma total repulsa ao sexo, sendo esta, a partir de então, transmitida a toda sua descendência feminina. Em resumo: um contexto bem mais adequado a um estudo psicanalítico do que propriamente à avaliação de um crítico teatral...mas sigamos.

Provavelmente, este não é um dos melhores textos de Nelson Rodrigues, mas nem por isso destituído de interesse, sobretudo quando levado à cena de forma não convencional e corajosa, como acontece na presente montagem. Esta exibe, dentre outros méritos, o de materializar de forma brilhante alguns símbolos, sendo o mais expressivo os já mencionados Homens Jarro, que talvez possam ser interpretados como os muitos homens que passaram pela vida da ex-prostituta. Esta espécie de coro fálico permeia toda a montagem, executando ao vivo todas as canções e sons do espetáculo. Além disso, Farjalla impõe à cena uma dinâmica ao mesmo tempo ritualística e claustrofóbica, valorizando todos os conteúdos através de marcações de grande expressividade. E, mérito suplementar, o encenador extrai ótimas atuações de todo o elenco. 

Na pele de Dorotéia, Letícia Spiller exibe performance irretocável, tanto nas passagens mais angustiadas quanto naquelas em que, renunciando momentaneamente à pretendida pureza, a personagem permite o aflorar de sua imensa sensualidade. O mesmo se aplica a Rosamaria Murtinho: possuidora de ótima voz e forte presença cênica, a atriz comemora em grande estilo seus 60 anos de carreira, construindo uma Dona Flávia irresistível em seus histéricos furores. Alexia Deschamps (Maura) e Jacqueline Farias (Carmelita) estão muito bem vivendo as irmãs mais novas da desvairada matriarca, com Anna Machado exibindo ótima performance vocal e corporal na pele de Maria das Dores. Quanto a Dida Camero, a atriz, como de hábito, e felizmente, sempre que surge em cena o faz com o assombroso vigor das grandes tempestades.

Na equipe técnica, José Dias responde por belíssima cenografia, cabendo destacar as árvores e galhos que envolvem o espaço, como a sugerir uma densa e tenebrosa floresta que sufoca os impulsos mais viscerais inerentes à vida. Também considero irrepreensíveis os figurinos de Lulu Areal, de uma beleza ora exuberante, ora impregnada de morte. Finalmente, cumpre destacar a impecável direção musical de JP Mendonça , que reforça de forma contundente todas as emoções em causa e a performance dos ótimos músicos.

DOROTÉIA - Texto de Nelson Rodrigues. Direção de Jorge Farjalla. Com Letícia Spiller, Rosamaria Murtinho, Alexia Deschamps, Dida Camero, Anna Machado e Jacqueline Farias. Teatro Tom Jobim. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h.














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