quarta-feira, 7 de março de 2018

Teatro/CRÍTICA

"Grande sertão: veredas"

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Obra-prima em versão inesquecível



Lionel Fischer



"Em montagem inédita na rotunda do CCBB, Bia Lessa propõe a um só tempo uma peça de teatro e uma instalação em sua adaptação do livro "Grande sertão: veredas" - matriz do moderno romance brasileiro e obra-prima de João Guimarães Rosa. A peça traz para o palco a saga do jagunço Riobaldo que atravessa o sertão para combater seu inimigo, Hermógenes, fazer o pacto com o diabo e viver seu amor por Diadorim. O cenário-instalação estará aberto à visitação do público".

Extraído do ótimo release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o contexto em que se dá "Grande sertão: veredas", que chega ao Rio de Janeiro após cumprir maravilhosa temporada em São Paulo, sempre com casas lotadas - como está acontecendo aqui - e irrestrita aprovação tanto do público quanto da crítica (fato um tanto raro...). Com concepção, direção geral, iluminação (em parceria com Binho Schafer) e adaptação a cargo de Bia Lessa, a montagem traz no elenco Balbino de Paula, Caio Blat, Daniel Passi, Elias de Castro, Leon Góes, Leonardo Miggiorin, Lucas Oranmian, Luisa Arraes, Luiza Lemmetz e Clara Lessa.

Antes de tecer algumas considerações sobre a presente montagem, gostaria de fazer duas confissões. A primeira: por tratar-se da maior obra literária nacional do século XX e já tendo sido a mesma analisada por críticos literários, ensaístas, filósofos e pensadores infinitamente mais capazes do que eu, não me parece oportuno ter a pretensão de acrescentar algo de significativo ao que já foi dito. A segunda confissão: não sei por onde começar as já mencionadas considerações. No entanto, como é preciso fazê-lo, opto pelo momento em que cheguei ao CCBB.

E logo me deparei com a instalação, composta por uma infinidade de bonecos de feltro com tamanho humano. O que significariam essas figuras? Teriam sido petrificadas pelas lavas de um vulcão? Comporiam uma espécie de presépio cuja dramaticidade materializa algo que nesse momento me escapou? É possível que a segunda hipótese seja a correta, pois mais adiante me foi impossível não associar a postura dos bonecos com a de Diadorim na hora de sua morte - posso estar enganado, naturalmente, mas foi o que pensei.

Em seguida, quando ocupei meu lugar, uma surpresa me aguardava. Fones de ouvido estavam disponibilizados para cada espectador, e todos fomos informados (minutos antes de o espetáculo começar) de que deveríamos usá-los. Ao mesmo tempo, os atores se aqueciam no palco, se alongavam, exercitavam sua vozes e a estrutura tubular do cenário, que constitui uma espécie de barreira entre os atores e o público, me deu a sensação de que os intérpretes, supostamente aprisionados, logo haveriam de iniciar um processo de libertação advindo da necessidade imperiosa de compartilhar com a plateia algo que não poderia ser adiado. Finalmente, o espetáculo recomeça - digo recomeça porque, ao menos para mim, já havia se iniciado. E aí somos brindados com uma das mais potentes, criativas e expressivas encenações já vistas no Rio de Janeiro.

Dentre seus incontáveis méritos, gostaria de enfatizar o que mais me impressionou: a ausência de cenas, no sentido tradicional do termo. Ou seja: ao invés de assistirmos a uma cena, depois a outra e assim por diante, tudo se dá como fruto de virulentos, poéticos e desesperados impulsos, como se todos os gestos e palavras brotassem não de opções racionais, mas de regiões obscuras que raramente ousamos acessar. 

E isso inviabiliza qualquer possibilidade de o espectador se sentir confortável, pois a todo momento a cena se transforma, os atores abandonam seus papéis e se convertem em animais, criam esculturas plenas de significados, para em seguida darem prosseguimento à narrativa. E esse permanente processo de ruptura e transformação não apenas potencializa os conteúdos emocionais propostos pelo autor, mas como que nos alerta para o que constitui a essência do ato de viver, que não está atrelado apenas àquilo que desejamos, mas também a uma infinidade de variantes sobre as quais não temos o menor controle.

Com relação ao elenco, já disse inúmeras vezes que este país pode padecer de tudo, menos de grandes intérpretes. E mesmo levando-se em conta que alguns, por razões óbvias, têm maiores oportunidades, o que mais impressiona é a força do conjunto, a visceral capacidade de entrega de todos os intérpretes em todos os momentos e a fortíssima contracena que estabelecem, o que só é possível quando a confiança no outro é inabalável e também inquestionável a certeza de que estão inseridos em um projeto admirável.

Ainda assim, não há como não destacar a deslumbrante performance de Caio Blat na pele de Riobaldo. E aqui não me refiro a questões de natureza técnica, pois todo intérprete - na plena acepção do termo - tem obrigação de possuir domínio sobre seus recursos expressivos. E Caio Blat já demonstrou, em muitas ocasiões, que é de fato um grande ator. Mas meu encantamento advém sobretudo da sensação que senti de que Blat se entrega ao personagem como se não fosse representá-lo mais, como se o fizesse pela última vez, o que o leva a explorar com poético desespero todos os estados emocionais em jogo. Sem dúvida, uma atuação inesquecível. Luisa Arraes, que vive Riobaldo na infância, também exibe performance admirável, talvez fruto do mesmo impulso de Blat. Luiza Lemmertz (Diadorim) extrai tudo que é possível do personagem, cabendo também destacar a forte presença cênica de Leon Góes vivendo Hermógenes.    

Na equipe técnica, Egberto Gismosti responde por uma das mais belas e expressivas trilhas sonoras da história do teatro brasileiro, abrangendo sons e ruídos ambientes, músicas de sua autoria e outras que atingem nossa memória afetiva. Outro destaque especialíssimo diz respeito aos figurinos de Sylvie Leblanc, que conseguem expressar o sertão sem no entanto a ele se limitar, dando a entender que o sertão também é o mundo. Quanto aos demais profissionais que participaram desta inesquecível empreitada teatral, a todos parabenizo com o mesmo entusiasmo - Fernando Henna e Daniel Turini (desenho de som), Camila Toledo, com a colaboração de Paulo Mendes da Rocha (concepção espacial), Fernando Mello Da Costa (adereços), Binho Schaefer, em parceria com Bia Lessa (desenho de luz), Marcio Pilot (projeto de áudio) e Flora Sussekind, Marília Rothier, Silviano Santiago, Ana Luiza Martis Costa e Roberto Machado (colaboração artística)

GRANDE SERTÃO: VEREDAS - Texto de João Guimarães Rosa. Concepção, direção geral e a adaptação de Bia Lessa. Com Balbino de Paula, Caio Blat, Daniel Passi, Elias de Castro, Leon Góes, Leonardo Miggiorin, Lucas Oranmian, Luisa Arraes, Luiza Lemmertz e Clara Lessa. Centro Cultural Banco do Brasil. Quarta a domingo, 21h.

     








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