sexta-feira, 2 de março de 2018

Teatro/CRÍTICA

"A visita da velha senhora"

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Segura versão de obra-prima



Lionel Fischer



No início - dizem - era o Verbo. Aqui, a Paixão. Alfred tinha 20 anos, Claire 17. Ela engravida, mas ele não assume ser o pai. Então, Claire move uma ação de reconhecimento de paternidade contra Alfred. Este, no entanto, produz falsas testemunhas no julgamento, e Claire acaba sendo condenada. E em função desta condenação, é obrigada a deixar Güllen numa fria noite de inverno, grávida de uma menina e sob o impiedoso olhar dos habitantes da pequena cidade. Mas ainda no trem que a levará a Hamburgo, Claire jura para si mesma que um dia retornará para se vingar.

Passados mais de quarenta anos, ela retorna. E o faz possuidora de imensa riqueza, fruto de seu casamento com um milionário que por ela se apaixonara em um bordel. E reencontra sua cidade completamente falida e seus habitantes - já sabedores de sua atual condição financeira - acreditando piamente que ela irá salvá-los da miséria. E ela aparentemente acena com essa possibilidade: oferece 500 milhões para recuperar a economia da cidade e a mesma quantia a ser dividida igualitariamente entre todos os cidadãos. Mas impõe uma única condição: para que esse bilhão possa ser disponibilizado, exige que Alfred seja assassinado.  

Eis, em resumo, o contexto de "A visita da velha senhora", do dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt (1921-1990). Após cumprir bela temporada em São Paulo, a montagem dirigida por Luiz Villaça está em cartaz no Teatro Sesc Ginástico. Christine Röhrig, Denise Fraga e Maristela Chelala respondem pela a adaptação, estando o elenco formado por Denise Fraga, Tuca Andrada, Fábio Herford, Romis Ferreira, Eduardo Estrela, Maristela Chelala, Renato Caldas, Beto Matos, David Tayu, Luiz Ramalho, Fernando Neves, Fábio Nassar e Rafael Faustino.

Por tratar-se de uma das mais brilhantes peças escritas no século XX, "A visita da velha senhora" foi encenada em dezenas de países e mereceu ensaios de renomados críticos, ensaístas e filósofos. E tendo lido alguns destes ensaios, creio que muito pouco - ou quase nada - teria a acrescentar ao que já foi dito. Mesmo assim, e ainda que rubro de modéstia, me permito umas poucas e breves considerações sobre a presente obra.

Se por um lado é evidente que a mola propulsora do texto é um desejo de vingança, no presente caso mais do que justo - se é que pode haver justiça advinda de um desejo de vingança -, o que confere especial contundência ao texto é a forma como o autor ironiza impiedosamente a Justiça, a Igreja, a Polícia e toda a hipocrisia inerente às relações humanas, ainda que nos esforcemos para ocultá-la desde sempre. 

Na época do julgamento de Claire, toda a cidade ficou ao lado de Alfred. Agora, no entanto, ante a ameaça concreta de uma miserabilidade irreversível e uma real possibilidade de evitá-la, todos aderem à segunda opção, ainda que sustentem que nada efetivamente acontecerá, que ninguém haverá de matar Alfred, que as coisas acabarão se ajeitando sem a necessidade de uma tragédia etc. Ao mesmo tempo, os habitantes de Güllen começam a contrair dívidas, o que configura curiosa contradição, já que, para quitá-las, precisam do dinheiro de Claire, que só estará disponível caso se cumpra seu macabro desejo. 

Ou seja: ainda que em meio a sorrisos e supostas demonstrações de solidariedade, os habitantes da cidade estão efetivamente sedimentando a morte de Alfred, que não deixa de perceber o que está acontecendo e acaba buscando socorro - expõe seu desespero à polícia, ao padre e ao prefeito. Mas tais instituições já estão completamente contaminadas pelo poder do dinheiro, e nada fazem para evitar o trágico desfecho. 

Contendo ótimos personagens, diálogos magníficos, abordando com maestria temas da maior pertinência e exibindo uma ação que prende a atenção do espectador ao longo de toda a narrativa, o texto de Dürrenmatt recebeu segura versão cênica de Luiz Villaça, estruturada de forma a priorizar o distanciamento proposto por Brecht - embora a emoção não esteja banida, o essencial é a reflexão sobre os fatos exibidos. 

E é também muito interessante a ideia de comprometer os espectadores, já que estes são tratados como se também fossem habitantes da cidade e portanto igualmente responsáveis pelo que está acontecendo. Minha única ressalva fica por conta de algumas passagens em que o humor é trabalhado de uma forma que gera risos superficiais, quando o ideal seria que tais risos fossem fruto da incômoda percepção de que não somos  agentes passivos de uma realidade abjeta, mas cúmplices da mesma. 

Com relação ao elenco, Denise Fraga é uma atriz completa, como todos sabemos, sendo capaz de transitar com a mesma eficiência por todos os gêneros. E na pele de Claire exibe performance que atende a todas as exigências da personagem - minha única ressalva é a mesma que fiz com relação ao encenador, ou seja, em alguns momentos os risos que a personagem provoca poderiam gerar mais incômodo do que conforto. Tuca Andrada está irrepreensível na pele de Alfred, explorando com grande sensibilidade todos os estados emocionais do personagem. Cabe também destacar as irretocáveis participações de Fábio Herford (Prefeito), Renato Caldas (Policial), Eduardo Estrela (Padre) e Romis Ferreira (Professor). Quanto aos demais, todos exibem atuações seguras e convincentes.

Na equipe técnica, são de excelente nível a tradução de Christine Röhrig, a iluminação de Nadja Naira e a cenografia, figurinos e adereços de Ronaldo Fraga. Com relação à trilha sonora original de Dimi Kireeff e Rafael Faustino, ela está em plena sintonia com os objetivos da montagem, sendo igualmente meritória a adaptação de Christine Röhrig, Denise Fraga e Maristela Chelala. Quanto à direção musical de Kireeff, em muitos momentos não consegui ouvir com clareza as letras das canções, não sei se por uma deficiência do elenco ou por ter-me sentado perto de uma caixa de som de onde saía um volume instrumental excessivo.     

A VISITA DA VELHA SENHORA - Texto de Friedrich Dürrenmatt. Direção de Luiz Villaça. Com Denise Fraga, Tuca Andrada e grande elenco. Teatro Sesc Ginástico. Quinta a sábado, 19h. Domingo, 18h. Sessões extras nos dias 23 e 24, às 15h.


   






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