quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Teatro/CRÍTICA

"Preto"

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Oportuna reflexão sobre múltiplas urgências



Lionel Fischer



Uma das coisas que mais me fascina no exercício da crítica teatral é a possibilidade de eventualmente cometer equívocos, ainda que involuntários - digo eventualmente porque, se me equivocasse sempre, é bem provável que ninguém me leria, não faria parte de júris etc. No presente caso, o título do espetáculo sugere que os temas abordados estariam restritos a questões inerentes ao racismo. 

No entanto, e embora tais questões não deixem de estar presentes, tenho a impressão de que o tema fundamental desta obra gira em torno da deslumbrante perspectiva de podermos coexistir, apesar de tudo que nos difere - trata-se, evidentemente, de uma hipótese e, como tal, sujeita a todos os enganos.

Em cartaz no Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil, "Preto" é a mais recente criação da Cia. Brasileira de Teatro. Marcio Abreu responde pela direção do espetáculo, dividindo a dramaturgia com Grace Passô e Nadja Naira. No elenco, Cássia Damasceno, Felipe Soares, Grace Passô, Nadja Naira, Renata Sorrah e Rodrigo Bolzan. 

Tendo sido a dramaturgia, como consta do ótimo release que me foi enviado, construída em residências artísticas e ao longo de ensaios tanto fechados como abertos a diversificados públicos - o que deixa implícito que opiniões externas foram levadas em consideração -, o produto final dificilmente poderia ser uma peça convencional, que desprezasse o improviso e procurasse ocultar eventuais erros. E também me parece que uma das questões essenciais de "Preto" diz respeito à própria construção e desconstrução do texto, assim como do espetáculo.

Assim, o que está sendo oferecido ao público é não apenas a possibilidade de refletir sobre os temas abordados, mas igualmente sobre o fazer teatral. E a exposição deste fazer, ao menos nesse caso específico, perderia muito de sua potência se houvesse uma história contada cronologicamente, com cenas encadeadas de uma forma que manteria em zona de conforto os espíritos que priorizam a lógica. Mas aqui não deixa de existir uma lógica, só que de outra natureza, posto que privilegia impulsos e necessidades impregnadas de urgências. 

No início do espetáculo, uma mulher negra vai dar uma conferência. Mas ela está num canto do palco, e o que vemos é seu rosto projetado, proferindo questionamentos. Mas no centro do espaço existe uma grande mesa, uma cadeira e um microfone. Teoricamente, era ali que a conferencista deveria se instalar. Mas se assim o fizesse, entre ela e a plateia haveria a tal mesa, não por acaso totalmente branca...

E ao longo da montagem, que dispensa personagens, o elenco - em especial as protagonistas Grace Passô e Renata Sorrah -, relembra passagens de sua vidas e carreiras. Neste particular, é muito engraçado o momento em que Renata tenta ensaiar com Grace uma cena de um de seus maiores sucessos, "As lágrimas amargas de Petra von Kant" - nada funciona, elas trocam os papéis e muito se divertem. Em outro momento, as duas atrizes se juntam no fundo do palco e acontece uma cena de sedução com a qual, devo admitir, sonhei na mesma noite em que assisti o espetáculo.

E são muitas as passagens que poderia comentar, mas me restrinjo a mais duas. Numa delas, dois homens duelam através da dança. Inicialmente, eles se divertem, cada um tentando reproduzir os passos inventados pelo outro. No entanto, pouco a pouco a diversão cede lugar a uma feroz disputa, impregnada de violência e que termina quando ambos se entregam física e espiritualmente. 

Outro momento que muito me marcou é a belíssima fala proferida por Cássia Damasceno, totalmente cercada por microfones, como a sugerir a necessidade imperiosa de se ampliar e se fazer ouvir as mais do que justas reivindicações dos que são vítimas desta abjeção chamada racismo - e no final, um microfone fica direcionado para a plateia, estando implícita a pergunta: "E você? O que tem a dizer depois de tudo que viu e ouviu?"

Com relação à dinâmica cênica, a mesma está em total sintonia com o material dramatúrgico, ou seja, ela é fragmentada, imprevista, agressiva, delicada, sensual e nos convida a repensar quem somos, como nos vemos e sobretudo como enxergamos o outro. Em resumo: Marcio Abreu ratifica uma vez mais seu aparentemente inesgotável talento como encenador, aqui contando com a total cumplicidade de um elenco brilhante.

Na equipe técnica, considero irrepreensíveis as contribuições de todos os artistas envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - Felipe Storino (trilha e efeitos sonoros), Nadja Naira (iluminação), Marcelo Alvarenga (cenografia), Marcia Rubin (direção de movimento), Batman Zavarese e Bruna Lessa (vídeos), Ticiana Passos (figurino) Babaya (orientação de texto e consultoria vocal), Bruno Dante (adereços e esculturas), Aline Villa Real e Leda Maria Martins (colaboração artística) e Fabio Arruda e Rodrigo Bleque (projeto gráfico).

PRETO - Texto de Marcio Abreu, Grace Passô e Nadja Naira. Direção de Marcio Abreu. Com Cássia Damasceno, Felipe Soares, Grace Passô, Nadja Naira, Renata Sorrah e Rodrigo Bolzan. Teatro III do CCBB. Quarta a domingo às 19h30.



   








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