NELSON
RODRIGUES
VIDA
INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA
Nascido no Recife a 23 de agosto de 1912 e quarto dos quatorze filhos do
jornalista Mário Rodrigues e de Maria Esther Falcão, aos quatro anos Nelson foi
morar no Rio de Janeiro para onde seu pai se mudara
para trabalhar no Correio da Manhã de Edmundo Bittencourt. Em suas Memórias
ele diz que seu grande laboratório de escritor foi a infância vivida na Zona
Norte. Dos anos passados na rua Alegre (atual Almirante João Cândido Brasil),
bairro de Aldeia Campista, saíram para sua obra situações
alimentadas pela moral da classe
média dos primeiros anos do século XX.
Sua infância
foi marcada por este clima e pela personalidade retraída do menino que lia um
romance atrás do outro. Nesta época ocorreu a descoberta do futebol, paixão
que conservaria por toda a vida. Em 1925 Mário Rodrigues fundou A Manhã
após romper com Edmundo Bittencourt e foi neste jornal que Nelson começou sua
carreira jornalística como repórter policial, aos treze anos de idade. Os crimes passionais e pactos de amor e morte entre casais
incendiavam a imaginação do adolescente romântico que utilizaria o cenário
dessas histórias em suas peças. O poeta seria o criador da grande dramaturgia
brasileira, mas sua obra fundamenta-se no drama bíblico que ele parodia ou
parafraseia adaptando-o à realidade brasileira: não nos esqueçamos que para
casar Mário Rodrigues teve de fazer-se pastor por imposição dos pais da noiva
que eram batistas praticantes numa Recife dominada pelo catolicismo, daí a
presença da religião na vida Nelson, questão à qual se refere quando em suas
crônicas fala das tias católicas e protestantes que o obrigavam a frequentar
igrejas e templos. Entretanto, desde criança seu gênio, ao qual nunca faltou o
humor, resistiu a essa lavagem cerebral derrotando a visão reacionária do Evangelho para apresentá-lo de forma
revolucionária em suas peças. Quando o pai de Nelson conseguiu atingir uma
situação financeira confortável ele levou a família para Copacabana,
então um arrabalde luxuoso da orla carioca. Apesar da bonança, Mário Rodrigues
perderia para o sócio o controle acionário de A Manhã, porém em 1928 funda Crítica.
Como cronista esportivo Nelson escreveu para este jornal textos antológicos
sobre o Fluminense, seu clube do coração, embora a maioria tenha sido publicada
no Jornal
dos Sports de Mário Rodrigues Filho, o primogênito de Mário Rodrigues. Junto
com ele Nelson foi fundamental para que o Fla-Flu
conquistasse seu prestígio tornando-se um dos maiores clássicos do futebol
brasileiro.
JUVENTUDE
E MATURIDADE
Nelson seguiu seus irmãos Mário,
Milton e Roberto integrando a redação de Crítica. Ali continuou a escrever na
página de polícia, enquanto Mário cuidava dos esportes e Roberto, um talentoso desenhista,
fazia as ilustrações. O jornal era um sucesso de vendas, misturando
apaixonada cobertura política com relatos sensacionalistas de acontecimentos
sociais. Em 26 de dezembro de 1929 a sua primeira
página deu a manchete da separação do casal Sylvia Serafim e João Thibau Jr.
Ilustrada por Roberto e assinada pelo repórter Orestes
Barbosa, a matéria provocou uma tragédia. Sentindo-se difamada, Sylvia invadiu
a redação de Crítica armada de revolver para matar seu dono, mas como
este não estivesse ela atirou no filho Roberto. Nelson testemunhou o crime e a
agonia do irmão que morreu dias depois. Deprimido com a perda do filho, Mário
Rodrigues faleceu poucos meses após a tragédia. Finalmente, durante a Revolução de 30 a gráfica e a redação do diário são
empasteladas e ele deixa de existir. Sem seu chefe e sem fonte de sustento a família
Rodrigues mergulha em decadência financeira. Foram anos de fome e dificuldades
para todos. Pouco afinados com Getúlio Vargas os Rodrigues demorariam anos para
se recuperarem. Ajudado por Mário Filho, amigo de Roberto
Marinho, Nelson passa a trabalhar em O Globo,
mas pouco tempo depois descobre que estava tuberculoso e para tratar-se passa
longas temporadas no sanatório de Campos do Jordão. Seu tratamento é custeado por
Marinho que, com isso, conquistou a eterna gratidão de Nelson. Recuperado, ele
volta e assume a seção cultural do jornal passando a fazer crítica de ópera. Em 1940 casou-se com Elza
Bretanha, sua colega de redação. A partir de 1941 Nelson divide-se entre o
emprego em O Globo e a criação de peças teatrais. No final deste ano ele
escreve A mulher sem pecado que estreou um ano depois no Teatro Carlos
Gomes ficando em cartaz apenas três semanas. Em seguida a esse mal sucedido começo
ele cria Vestido de noiva estreado com estrondoso sucesso no final de
1943 no Teatro Municipal sob a direção de Zimbinski. Em 1945 abandona O
Globo passando a trabalhar nos Diários Associados. Em O Jornal, um dos
veículos de propriedade de Assis Chateaubriand, começa a escrever Meu
destino é pecar, seu primeiro folhetim que assinou como Susana Flag. O sucesso alavancou as
vendas do jornal e estimulou o dramaturgo a escrever sua terceira peça, Álbum
de família, que foi proibida pela censura e só liberada em 1965. Em 1946 criou Anjo
negro que, após dura batalha com os censores, estreou dois anos depois lhe
possibilitando adquirir sua casa do Andaraí. Em 1947 escreve Senhora dos afogados que só foi à cena nove
anos depois, e Dorotéia em 1949 que
estreou no ano seguinte unicamente porque escrita sob pseudômino. Em 1950 passa a trabalhar
na Ultima Hora, jornal de Samuel
Wainer, onde começa a escrever as crônicas de A vida como ela é..., seu maior sucesso
jornalístico. De 1952 a 1957 tem um caso com Yolanda Camejo que lhe dá três
filhos: Maria Lúcia, Sonia e Paulo César. Na década seguinte separa-se de Elza
e vai morar com Lúcia Cruz e Lima com quem teria Daniela, nascida cega. Nelson
trabalha na recém-fundada TV Globo participando da Grande Resenha Facit, primeira
mesa-redonda sobre futebol da televisão brasileira e em 1967 passa a publicar
suas Memórias no Correio da Manhã onde seu pai trabalhara
cinquenta anos antes.
VELHICE
Nos anos
70, consagrado como poeta dramático e jornalista, a saúde de Nélson começa
a baquear. Durante a ditadura militar, que só retoricamente apoiou porque
na verdade usou seu prestígio para proteger e libertar vários perseguidos pelo
regime, seu filho Nelson Rodrigues Filho torna-se militante clandestino sendo
preso e torturado. Depois do fim de seu casamento com Lúcia, Nelson ainda
manteve rápido caso com sua secretária Helena Maria antes de reatar com Elza. O
maior poeta dramático de língua portuguesa, ao lado do renascentista luso Gil
Vicente, faleceu de complicações cardíacas e respiratóliras aos 68 anos numa
manhã do domingo de 21 de dezembro de 1980. Dois meses depois, Elza atendia ao
pedido do marido de ainda em vida gravar seu nome ao lado do dele na lápide de
seu túmulo no cemitério São João Batista: Unidos
para além da vida e da morte.
OBRA
TEATRO
A mulher sem pecado de 1941 estreia no ano seguinte
Vestido de noiva de 1943 estreia no mesmo ano
Álbum de família de 1945 estreia vinte anos depois
Anjo
negro de 1946 estreia dois anos depois
Senhora dos Afogados de 1947 estreia nove anos depois
Dorotéia de 1949 estreia no ano
seguinte
Valsa
nº 6 de 1951 estreia no mesmo ano
A
falecida de 1953 estreia no ano seguinte
Perdoa-me por me traíres de 1957 estreia no mesmo
ano
Viúva, porém honesta de 1957 estreia no ano seguinte
Os sete gatinhos de 1958 estreia no ano seguinte
Boca de ouro de 1959 estreia no ano seguinte
O beijo no asfalto 1960 estreia no ano seguinte
Bonitinha, mas ordinária de 1962 estreia no mesmo
ano
Anti-Nélson Rodrigues de 1974 estreia no ano
seguinte
A serpente de 1978 estreia dois anos depois
ROMANCES
Meu
destino é pecar - 1944
Escravas do amor - 1944
Minha vida - 1944
Núpcias
de fogo
- 1948
A mulher que amou demais - 1949
A mentira - 1953
O homem proibido - 1959
Asfalto
selvagem - 1959
O casamento - 1966
CONTOS
Cem contos escolhidos - 1972
Elas gostam de apanhar - 1974
O
homem fiel e outros contos - 1992
A coroa de orquídeas – 1992
Pouco amor não é amor – 2002
CRÔNICAS
Memórias de Nelson Rodrigues -
1967
A cabra vadia - 1970
O remador de Ben-Hur - 1992
A pátria em chuteiras - Novas Crônicas de
Futebol - 1992
A menina sem estrela - memórias - 1992
À sombra das
chuteiras imortais - Crônicas de Futebol - 1992
A mulher do próximo - 1992
Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo – 2002
TELENOVELAS
A
morta sem espelho - TV
Rio 1963
Sonho de amor
- TV Rio 1964
O
desconhecido - TV Rio 1964
O homem proibido - TV Globo
1982 (baseada na obra de Nelson)
Meu
destino é pecar - TV Globo 1984 (idem)
Engraçadinha, seus amores e seus pecados - TV Globo
1995 (idem)
A Vida como ela é - TV Globo
1996 (idem)
FILMES (baseados na obra de Nelson)
Somos dois de 1950, direção de Milton Rodrigues
Meu destino é pecar de 1952, direção de Manuel Pelufo
Mulheres e milhões de 1961, direção de
Jorge Ileli
Boca de ouro de 1963, direção de Nelson Pereira dos Santos
Meu nome é Pelé de 1963, direção de
Carlos Hugo Christensen
Bonitinha, mas ordinária de 1963, direção de J.P.
de Carvalho
Asfalto selvagem de 1964, direção de J.B. Tanko
A falecida de 1965, direção de Leon Hirzman
O beijo de 1966, direção de
Flávio Tambellini
Engraçadinha depois
dos trinta de 1966, direção de J.B. Tanko
Toda nudez será castigada de 1973, direção de Arnaldo
Jabor
O
casamento de 1975, direção de Arnaldo Jabor
A dama do lotação de 1978, direção de Neville d'Almeida
Os sete gatinhos de 1980, direção de Neville d'Almeida
O beijo no asfalto de 1980, direção de
Bruno Barreto
Bonitinha, mas ordinária de 1981, direção de Braz
Chediak
Álbum de família de 1981, direção de Braz
Chediak
Engraçadinha de 1981, direção de Haroldo Marinho Barbosa
Perdoa-me por me
traíres de 1983, direção de Braz
Chediak
Boca de ouro de 1990, direção de Walter
Avancini
Traição de 1998, direcão de Arthur
Fontes, Cláudio Torres e José Henrique Fonseca
Gêmeas de 1999, direção de Andrucha Waddington
Vestido de noiva de 2006, direção de Joffre
Rodrigues
TEATRO DE NELSON RODRIGUES.
Francisco Carneiro da Cunha
All Print Editora, São Paulo,
2009.
RESUMO DO TEXTO
Meditações.
O que me assombra, realmente me assombra, é que Deus
não seja visto a toda hora em toda parte por todo mundo.
Consciência criadora
Isso a que se chama vida é o que se representa no
palco e não o que se vive cá fora.
Mais importantes são os ovários da alma.
Os verdadeiros órgãos genitais estão na alma.
Eis
o que tragicamente ignoramos
Acho que o meu negócio com o teatro é
mediúnico, coisa tão extraordinária que se pode pensar em milagre, um mistério
total da personalidade.
Mas
transe totalmente lúcido
A ficção para ser purificadora deve ser
atroz. O personagem é vil para que não o sejamos. Ele realiza a miséria
inconfessa de cada um de nós. E no teatro que é mais plástico, direto e de um
impacto tão mais puro esse fenômeno de transferência torna-se mais válido. Para
salvar a platéia é preciso encher o palco de assassinos, adúlteros e insanos,
em suma, de uma rajada de monstros. São os nossos monstros íntimos dos quais
eventualmente nos libertamos para em seguida recriá-los em cena.
O homem precisa ser colocado diante da
própria violência. Temos que ver a face de nossa crueldade.
É preciso ir ao fundo do ser humano. Ele
tem uma face linda e outra hedionda. O ser humano só se salvará se, ao passar a
mão no rosto, reconhecer e amar a própria hediondez.
Meus personagens movem-se na sombra e na luz
parecendo possessos, não se sabe se possuídos de Deus ou do diabo. Faço
psicologia em profundidade, psicologia abissal.
As
senhoras me dizem: “Eu queria que seus personagens fossem como todo mundo”. E
não ocorre a ninguém que meus personagens são como todo mundo, daí a repulsa
que provocam. Ninguém gosta de ver no palco suas íntimas chagas e inconfessas
abjeções.
Somente a leitura e a releitura de todas minhas
peças permitem compreensão justa e sem distorções do que digo pela boca de meus
personagens, seres aparentemente obcecados e possessos, mas na realidade
portadores de defeitos e qualidades cotidianos. Sempre me propus uma síntese do
homem quando dei vida dramática a esses personagens. Por isso digo e repito:
eles valem, são mais reais que nós mesmos.
Continuarei trabalhando com monstros.
Digo monstros no sentido que superam a moral prática cotidiana. Quando escrevo
para teatro, as coisas atrozes e não atrozes não me assustam. Escolho meus personagens
com a maior calma e jamais os condeno. Quando se trata de operar dramaticamente
não vejo em que o bom seja melhor que o mau.
A
alegria não pertence ao teatro, nem o otimismo. O teatro é desespero ou não é
teatro, é um pátio de expiação. Devíamos assisti-lo não sentados, mas atônitos
e de joelhos. Na verdade, o que ocorre no palco é o julgamento do mundo, o
nosso próprio julgamento, e grande teatro é aquele que faz o espectador
crispar-se na cadeira numa angústia de condenado.
Minhas peças são obras morais. Devem ser
adotadas no primário e nos seminários.
A indignação de um elenco não é fenômeno novo para mim. A maioria dos
meus intérpretes representa meus textos com o maior desprazer e humilhação.
Há trinta anos os críticos mantêm uma coerência
burra sobre o meu teatro.
No meio de meus colegas de teatro eu me
sinto só, tão só como um Robinson Crusoé.
Nunca li nada sobre teatro que valesse a pena. Curiosíssima arte que não
admite nenhuma meditação inteligente.
Eu me nego a acreditar que mesmo o mais
doce político tenha senso moral.
O povo é débil mental. Digo isso sem
nenhuma crueldade. Foi sempre assim e será assim eternamente.
Toda unanimidade é burra.
Eu quero que a história vá para o diabo
que a carregue.
Na vida, o importante é fracassar.
Quem tem medo de Nelson Rodrigues?
Há no texto uma compaixão quase insuportável, uma profunda e dilacerada piedade. Realmente, nunca tive tanta pena de meus personagens.
Amor
a monstros, a salvação do homem.
Num mundo infeliz e doente como o nosso é quase dever e obrigação ser também infeliz e doente.
Nego a qualquer um o direito de virar as costas à dor alheia. Precisamos ter continuamente a consciência, o sentimento, a constatação dessa dor. Sei que nenhum de nós gosta de se aborrecer. Mais importante, porém, que o nosso frívolo conforto, que o nosso alvar egoísmo é o dever de participar do sofrimento dos outros.
Sem
tal solidariedade não há criação
Numa de minhas peças diz um personagem que usamos na Terra um falso nome e uma falsa cara. Vejam bem, nem a cara ou o nome têm a ver com a nossa identidade profunda. E quase sempre o homem nasce, vive e morre sem nunca ter contemplado o seu verdadeiro rosto, sem jamais ter conhecido o seu nome eterno.
Divulgar o óbvio entre meus semelhantes foi minha única missão na Terra.
Na
obra do poeta está o óbvio: nossos verdadeiros rostos e nomes eternos
Eis a verdade: imaginei-me Cristo, fui Jesus. Tinha sete, oito, nove, dez anos e me via na cruz. E me crucifiquei mil vezes. Eu, Nazareno, eu, Filho de Deus, eu, de braços abertos, eu, de cabeça pendida, eu, Deus e sem rosto, eu, no regaço da Virgem.
No começo de sua vida
Escrevo à noite. Vem na aragem noturna um cheiro de estrelas. E, súbito, eu descubro que estou fazendo a vigília dos pastores. Aí está o grande mistério. A vida do homem é essa vigília e nós somos eternamente seus pastores. Não importa que o mundo esteja adormecido. O sonho faz quarto ao sono. E esse diáfano velório é toda a nossa vida. O homem vive e sobrevive porque espera o Messias. Neste momento, por toda parte, onde quer que exista uma noite, lá estarão os pastores, na sua vigília docemente infinita. Uma noite Ele virá. Com suas sandálias de silêncio entrará no quarto de nossa agonia e entenderá nossa última lágrima de vida.
No fim de sua vida
O mundo só pode ser dos que têm razão. Mas a razão é todo um maravilhoso esforço, toda uma dilacerada paciência, toda uma santidade conquistada, toda uma desesperada lucidez.
Ponto final
Obra.
A criação teatral de Nelson fundamenta-se na poesia bíblica, especialmente o Evangelho que ele parodia ou parafraseia (a paródia ironiza um texto clássico, a paráfrase o endossa), inclusive em sua vida de teatrólogo: para estrear como tal esperou fazer 29 anos, idade com que o herói da saga palestina é batizado; sua primeira peça foi ao palco quando acabara de fazer 30 anos, idade com que o arquétipo inicia vida pública; para inventar sua obra magna, que desde criança desejara escrever, aguardou estar findando seus 33 anos, idade com que Jesus Cristo satanás suicida seu ego. O poeta glosou a trajetória do personagem evangélico que antes de morrer atinge o máximo de sua popularidade (Vestido de noiva), em seguida deixa-se matar e desce ao inferno para salvar os mortos (peças da segunda metade dos anos quarenta), ressuscita (Valsa nº 6) para salvar os vivos (peças dos anos cinqüenta a setenta), sobe aos céus em sua glória de maior poeta dramático de língua portuguesa, ao lado do renascentista luso Gil Vicente (nos 20 anos seguintes à sua morte não houve temporada teatral no Brasil em que mais de uma peça sua não fosse encenada, verdadeira apoteose). Nelson guiou-se pelo Mito de Cristo para, com genial amor por seus personagens, redimir a si e aos homens das paixões que os escravizam nos reconciliando com nossos pais eternos e universais.
Antecedentes históricos
Tragédia grega: Ésquilo, Sófocles, Eurípides. Drama palestino: Mateus, Marcos, Lucas, João. Mistério medieval: Anônimos. Gênio renascentista: Gil Vicente, Commedia dell’Arte, Goldoni, Lope de Vega, Calderón de la Barca, Racine, Molière, Shakespeare. Drama burguês: a partir do iluminismo e da era das revoluções o teatro ocidental passa a pintar a nossa solidão sem Deus.
Primeira fase
A mulher sem pecado (1941): O título significa A Imaculada ou Virgem Maria, mãe do filho de Deus.
Escrito
logo após haver feito 29 anos, este primeiro poema dramático baseia-se na Anunciação (Lucas, cena 1; Mateus, cena
1) em que o Arcanjo Gabriel (intuição) santifica a descrente Maria (sensação) e
o enciumado José (pensamento) para que se tornem pais de Jesus (instinto)
Cristo (intuição sentimental).
A
paródia está no fato do casal do poeta, o ciumento Olegário (Poderoso) e a
sofrida Lídia (Irmã, Atos, cena 16), não ter filho porque despreza o anjo de
Deus (Coxo da Colombo), ela foge com o demoníaco chofer da casa (Umberto) e ele
se mata.
Vestido de noiva (1943): A protagonista é Alaíde
(Nobre)/Clessi (Prostituta).
A
paráfrase está no fato da heroína cumprir a mesma trajetória do herói
evangélico que suicida sua personalidade profana (Crucificação) para preservar a sagrada individualidade, desce ao
inferno para dar vida aos mortos (Evangelho
de Nicodemus), renasce ao terceiro dia (Madalena
no sepulcro) para salvar os vivos (Pentecostes),
sobe ao céu (Ascensão) para juntar-se
a nossos pais eternos e universais.
Álbum de família (1945): Os protagonistas são Jonas (Pomba, Jonas, cena 1) e
Senhorinha (Nossa Senhora).
Antes
de iniciar carreira de dramaturgo o anjo pornográfico conheceu os profetas de
Aleijadinho que inspiraram sua obra tanto quanto, desde a infância, o Drama do Calvário. Depois do sucesso de Vestido ele parte ao seu ciclo
bíblico-greco. No adro do Santuário do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, em
Congonhas do Campo (São José de Colgonhas na peça), o genial escultor colocou
Jonas ao lado de Daniel (Deus é meu juiz). Deus determina ao profeta que vá
converter a imoral Nínive, mas ele foge à pacífica Tarsis e durante a viagem
tempestade faz com que os marinheiros o acordem: “Dorme? Acorda e invoca teu
deus pra gente não morrer”. Jonas confessa seu pecado, é jogado ao mar e
engolido pela baleia, símbolo do inconsciente, porém três dias depois se
arrepende, escapa ao ventre do animal e vai à cidade corrupta para impor a lei divina.
A paródia está no fato do Jonas do poeta morrer em pecado porque foge ao sagrado incesto, ato de amor ao qual se entregam a esposa e o filho caçula Nonô, daí o final feliz da tragédia: Recebe, Senhor, com a tua misericórdia o teu servo no reino da esperança para a sua salvação, amém. Salva, Senhor, a alma de teu servo do perigo do inferno, da armadilha do pecado e de toda tribulação, amém. Livra, Senhor, a alma de teu servo da morte terrena assim como dela livrastes Enoc e Elias, amém.
Anjo negro (1946): Os protagonistas são Ismael (Deus ouve, Gênesis, cena
25), Virgínia (Virgem Maria), Elias (Jeová é Deus, Reis I, cena 18) e Ana Maria
(Senhora cheia de graça).
Ismael é primogênito de Abraão com a criada egípcia Agar (Estrangeira), mas após Sara dar à luz Isaac eles são expulsos ao deserto onde o anjo de Deus lhes revela a fonte salvadora. Chegam ao seu destino, o rapaz cresce, se casa e tem filhos dando origem aos povos árabes e africanos, os ismaelitas ou muçulmanos. Essa fonte aparece na peça de Nelson, mas agora como local de escárnio da tia e primas da heroína.
A paráfrase está no fato do Ismael do poeta
tornar-se pai igual ao seu homônimo bíblico já que, fecundado ao baixar do pano,
o seu quarto filho viverá (os três primeiros foram mortos pela mãe com o
conivência do pai) graças ao sacrifício criador da enteada Ana Maria (filha de
Elias e Virgínia) em seu túmulo de vidro após o encantado beijo do padrasto:
tal uma Branca de Neve ajoelhada de braços abertos ela garante a descendência
de Ismael e Virgínia. Belíssimo desenlace à obra máxima de Nelson, escrita
quando ele findava seus 33 anos, a data mais importante na vida do Salvador.
Senhora dos afogados (1947): Os protagonistas são Misael (Semelhante a Deus, Daniel, cena 1) e a filha Moema (Exausta).
O personagen bíblico
administra o
Templo de Davi e Salomão e pelo anjo de Deus é salvo da morte junto aos leões
de Nabucodonosor.
A paródia está no fato do Misael do poeta ser
incapaz de administrar sua própria casa e morrer no regaço da selvagem filha
Moema.
Dorotéia (1949): Os protagonistas são Dorotéia (Oferenda de Deus) e sua tia Flávia.
A virgem cristã é morta pelo
despótico imperador Diocleciano.
O misto de paródia e paráfrase
está no fato de que nesta farsa irresponsável do poeta sua Dorotéia ser uma mariposa
que acaba apodrecendo junto à tirânica tia Flávia.
Intermezzo
Valsa nº 6 (1951)
Paráfrase
à trajetória do herói evangélico: o poeta renasce
Segunda fase
A falecida (1953)
Paráfrase à trajetória do herói evangélico
Perdoa-me por me traíres
(1957)
Paródia à trajetória do herói evangélico
Viúva, porém honesta (1957)
Paródia à trajetória da Madalena evangélica
Os sete gatinhos (1958)
Paródia à trajetória da Madalena evangélica
Boca de ouro (1959)
Paródia à trajetória da Madalena evangélica
O beijo no asfalto (1960)
Paráfrase à trajetória do herói evangélico.
Otto Lara Rezende ou bonitinha, mas ordinária (1962)
Paráfrase à trajetória do herói evangélico
Toda nudez será castigada (1965)
Paródia à trajetória da Madalena evangélica
Anti-Nelson Rodrigues
(1973).
Paráfrase à trajetória do herói evangélico
A serpente (1978)
Paráfrase à Queda do homem
do Gênesis
Salvo
seu melhor amigo Hélio Pellegrino, ninguém até hoje (2011) abordou a poesia
dramática de Nelson à luz da matriz que o inspirou, justificando sua frase: só
os profetas enxergam o óbvio. Nelson recria à nossa época o Mito de Cristo que há mais de dois mil
anos é fundamento moral e cultural da civilização ocidental impondo sua visão e
modos de agir ao planeta. Degenerada há muito tempo, como a fênix essa perene
verdade renasce aos trancos e barrancos entre os homens de hoje augurando o
salto de qualidade da consciência coletiva para oferecer de si novas imagens e
outros nomes de acordo com a cultura global de nossos dias. A função e o
sentido da poesia dramática que o mito é são nos ensinar quem somos e como nos
criarmos a nós mesmos colocando o instinto sob o poder da intuição casada ao
sentimento, ou seja, Jesus sob o poder do Cristo. São esses o sentido e a
função do teatro do poeta. A inspirada recriação da poesia bíblica, em especial os quatro poemas
do ciclo bíblico-greco, derrisoriamente chamado teatro desagradável por Nelson, evidencia o
fato de que aquilo que ontem foi possível ao homem há muitos séculos deixou de
sê-lo. Se expressivo número de nossos semelhantes dos primórdios da cristandade
vivenciava diariamente o seu poder criador, a quase unanimidade da presente
humanidade come do pão que o diabo amassou no fermento de nosso orgulhoso e
patético vazio criador.
DRAMAS BÍBLICO E RODRIGUIANO.
Francisco Carneiro da Cunha
A
criação teatral do poeta inspira-se nos textos bíblicos, especialmente o Drama do Calvário que fundamenta moral e
culturalmente nossa civilização. Como genial paródia ou paráfrase do drama
bíblico essa obra regenera toda degeneração da verdade original levada a cabo
pelo civilizado sob a liderança de suas igrejas e seus governos. A justa
compreensão e a corajosa vivência da obra do maior dramaturgo de língua
portuguesa equivalem à melhor escola de teatro.
Isso a que se chama vida é o que se representa no palco e não o que
se vive cá fora. Mais
importantes são os ovários da alma, os verdadeiros órgãos genitais estão na
alma (NR).
Tão importante quanto os ovários da alma é o poder espiritual que a engravida.
Eternos
e infinitos, os verdadeiros órgãos genitais estão na alma e no espírito dos
homens.
Somos filhos da Terra e por isso estamos impregnados de sua energia que o instinto é, mas do Cosmo haurimos a energia da intuição que àquela fecunda nos fazendo plenamente conscientes ou humanos. É criador de personagens, seus outros egos, quem permite a esses dois magnos poderes comungarem amorosamente em seu ser, ordenando dramaticamente sensação, pensamento e sentimento para, todos juntos, colocarem a personalidade cidadã a serviço do ato criador que nos humaniza, da mesma forma que aos expectadores sensíveis ao único milagre que nos é dado praticar garantindo nossa completa saúde física, mental e espiritual, isto é, nossa inteira harmonia e felicidade.
Todo dia tal ritual criador deve acontecer coletivamente entre os homens sob pena de continuarmos patinando na barbárie que vem sendo nossa marca registrada desde que o civilizado surgiu no planeta, salvo nos períodos de renascimento da civilização dentre os quais três se destacam no Ocidente: Grécia de 2500 anos passados, Palestina de 2000 anos atrás, Europa de há 500 anos.
Na
cena inicial do Drama do Calvário a
divina alma é fertilizada pelo santo espírito, enviado à Terra pelo Criador
para dar vida plena à humana criatura. O verdadeiro nome para religião é
criação.
Personagens evangélicos na linguagem
contemporânea
José é como os poetas
dramáticos evangélicos representam o homem intelectual.
Mas quando obedece à palavra de Deus, comunicada a ele em sonho pelo mensageiro
Gabriel (gabri em hebraico significa
varão e el, divino), esse esposo
maduro passa a São José ou Homem criador. Esclarecido pelo arcanjo o quarentão
aceita ser pai de Jesus Cristo.
Maria é como os poetas
dramáticos judeus e grego simbolizam o homem sensual.
Mas quando assume a ordem de Deus, a ela comunicada numa visão pelo mesmo
Gabriel da espada de fogo, o falo sagrado que a fertiliza, a esposa adolescente
torna-se Virgem Maria ou Homem criador. Iluminada pelo arcanjo a donzela acata
ser mãe do Salvador.
Arcanjo Gabriel ou Espírito Santo é como os dramaturgos palestinos
figuram a intuição.
Jesus ou Segundo Adão é como os dramaturgos antigos pintam o instinto.
Cristo é como os quatro
dramaturgos canônicos caracterizam a intuição
sentimental.
Satanás é como as dezenas de
dramaturgos apócrifos denominam o pensamento sensual.
Para que o milagre da criação aconteça é preciso que o adversário (satã em hebraico)
seja posto em seu lugar: vade retro
satanas! Morre a consciência egoísta da pessoa ávida de poder, dinheiro e
fama para que seu corpo, psicologia e emoções passem a servir o personagem
criado.
Jesus Cristo satanás é como
os evangelistas nomeiam o andrógino Homem criador.
A
identidade dos personagens evangélicos com os de Nelson é completa, mas para a
maioria de seus leitores e espectadores ela não é compreendida nem aceita mercê
da confusão do mundo atual imerso em calamitoso fim. Ao passo que a obra de
seus colegas de antigamente esteve logo clara para multidões graças à época em
que foi concebida, a do renascimento da genial arte dramática grega fenecida
durante o helenismo e entre romanos, e graças ao local onde ela foi
representada, a Palestina como especial ponto de encontro humanista e cultural
entre Ocidente e Oriente.
Personagens evangélicos na linguagem rodrigueana
José é Olegário em A
mulher sem pecado, dentre outros José de outras peças do poeta.
Maria é Lídia em A
mulher sem pecado, dentre outras Maria de outras peças do poeta.
São José é Gilberto em Perdoa-me
por me traíres, dentre outros São José de outras peças do poeta.
Virgem Maria é Senhorinha em Álbum
de família, dentre outras Virgens Maria de outras peças do poeta.
Arcanjo Gabriel é o Coxo da Colombo em A mulher sem pecado, dentre outros arcanjos de outras peças.
Jesus é Nonô em Álbum
de família, dentre outros Jesus de outras peças do poeta.
Cristo é Elias em Anjo
negro, dentre outros Cristos de outras peças do poeta.
Satanás é Lúcia em Vestido
de noiva, dentre outros satanases de outras peças do poeta.
Jesus Cristo satanás é Ana Maria em Anjo
negro, dentre outros JC satanases de outras peças do poeta.
Cenas a serem representadas diariamente
entre o povo
Peça: Gênesis (Origens)
Autor:
Cortesã de Salomão (segundo Harold Bloom)
Cena:
Primeira (Queda do Paraíso: Homem primitivo
civiliza-se afirmando seu ego)
Cenário:
Jardim do Éden.
Personagens:
Arcanjo Gabriel (Espírito Santo), Jeová, Adão, Eva, Serpente, Animais
Peça: Drama do Calvário
Autores:
Lucas e Mateus
Cenas:
Primeira e Primeira (Anunciação: Homem criador é
concebido)
Cenário:
Casa de José e Maria em Nazaré
Personagens:
Arcanjo Gabriel (Espírito Santo), Maria, José
Peça: Paixão de Cristo
Autores:
Mateus e Lucas
Cenas:
Segunda e Segunda (Nascimento: Homem criador vem ao
mundo)
Cenário:
Manjedoura em Belém
Personagens:
Estrela do Oriente (E. Santo), Homem criador, Reis Magos, São José, Virgem
Maria, Animais
Peça: Evangelho
Autor:
Mateus
Cena:
Segunda (Massacre dos inocentes: Homem criador escapa da morte)
Cenário:
Judéia
Personagens:
Anjo (Espírito Santo), Homem Criador, São José, Virgem Maria, Herodes,
Soldados, Crianças
Peça: Boa Nova
Autor:
Lucas
Cena:
Segunda (No templo: Homem
criador ensina criação ao Sinédrio)
Cenário:
Templo de Jerusalém
Personagens:
Homem criador, burocratas religiosos
Peça: Drama do Calvário
Autores:
Mateus e Marcos.
Cenas:
Terceira e Primeira (Batismo: Homem criador é ungido antes de iniciar vida
pública)
Cenário:
Rio Jordão
Personagens:
Pomba (Espírito Santo), Homem criador, João Batista, Povo
Peça: Paixão de Cristo
Autor:
Mateus
Cenas
5, 6 e 7 (Sermão da montanha: Homem criador ensina criação ao povo)
Cenário:
Montanha em Jerusalém
Personagens:
E. Santo (surgido ao final da cena 4, ele preside o Sermão), Homem criador,
Apóstolos, Povo
Peça: Evangelho
Autor:
Lucas
Cena:
Vinte e Dois (Solidão do herói: Homem criador assume
sua missão)
Cenário:
Horto das Oliveiras
Personagens:
Homem criador, Apóstolos, Soldados
Peça: Boa Nova
Autor:
Mateus
Cena:
Vinte e sete (Crucificação: Homem criador suicida seu ego)
Cenário:
Calvário em Jerusalém
Personagens:
Pomba (Espírito Santo), Homem criador, Virgem Maria, M. Madalena, João,
Soldados, Povo
Peça:
Drama do Calvário
Autor:
Nicodemus
Cena:
Segunda parte (Descida ao inferno: Homem criador dá vida aos mortos)
Cenário:
Inferno
Personagens:
Homem criador, satanás e outros
Peça: Paixão de Cristo
Autor:
Mateus
Cena:
Vinte e oito (Renascimento: Homem criador vence a
morte)
Cenário:
Sepulcro em Jerusalém
Personagens:
Arcanjo Gabriel (Espírito Santo), Homem criador, Virgem Maria, Maria Madalena
Peça: Evangelho
Autor:
Mateus.
Cena:
Vinte e oito (Pentecostes: Homem criador converte seus
seguidores)
Cenário:
Cenáculo em Jerusalém
Personagens:
Línguas de Fogo (Espírito Santo), Homem criador, Virgem Maria, Maria Madalena,
Apóstolos
Peça: Boa Nova
Autor:
Marcos
Cena:
Dezesseis (Ascensão: Homem criador entra em sua glória)
Cenário:
Etéreo e Céu.
Personagens:
Anjos (Espírito Santo), Homem criador, Deus
ANJO NEGRO
Francisco Carneiro da Cunha
Abaixo a barbárie civilizada, viva o
homem criador!
A obra teatral de Nelson Rodrigues está em cartaz desde dezembro
de 1942 quando A mulher sem pecado estreou
no Teatro Carlos Gomes do Rio de Janeiro. Depois de sua morte em 1980 e pelos
próximos vinte anos encenações de suas peças tornaram-se obrigatórias em todas
as temporadas e festivais teatrais no Brasil. Como as de Shakespeare na
Inglaterra, Molière na França, etc. O autor já é um clássico fazendo parte de
nosso currículo escolar, tem o respaldo do público e é cada vez mais conhecido
no exterior. Raro fenômeno cultural.
Em crônica do livro A menina sem estrela o poeta conta que desde menino desejara escrever Anjo Negro, texto criado em 1946 quando findavam seus 33 anos, idade com que o herói evangélico deixa-se matar para salvar a humanidade, personagem que durante toda a vida foi seu modelo inspirador. Mas essa magna obra, deixada como legado ao seu primogênito, de todas suas dezessete peças é a que o público menos viu porque até hoje somente quatro vezes levada profissionalmente à cena. Flagrante injustiça.
Anjo Negro é belíssimo painel sobre a trágica união entre pensamento e sensação personalistas tiranizando o instinto, o primeiro rejeitando o inconsciente pela eliminação da intuição criadora, a segunda rejeitando a consciência criadora pelo sufoco do sentimento materno, ambos matando em seu nascedouro as criações do homem: o orgulhoso negro Ismael de consciência petrificada, simbolizada em seu terno de linho branco engomado, em guerra com a bela Virgínia branca de consciência culpada, representada em seu vestido negro de luto fechado. Nessa epopéia de amor e morte, em cujo final o casal está virtualmente liberto, destaca-se o coro das senhoras negras descalças que, invisível aos outros personagens, representa o sábio e atemporal inconsciente da humanidade ao mesmo tempo em que a milenar consciência esquizofrênica do civilizado, cristã e burguesa desde muitos séculos.
Por meio de seu carisma fruto da violência amorosa com que foi dado à luz, e da conseqüente catarse que nos humaniza, Anjo Negro é arma indispensável na luta contra a violência do ódio nos desumanizando cuja causa é nossa patética ignorância do inconsciente, a face oculta de Deus em nós, garantia de nossa liberdade que só pode ser conquistada por meio da imaginação criadora expressa em símbolos e metáforas poéticos a serem criados no palco por atores lúcidos e viscerais. Por isso exige ser levado à cena como grandioso musical sacro a ser vivenciado por platéias mais numerosas e diversas que as tradicionais, público de espaços abertos como o Vale do Anhangabaú em São Paulo ou a Rocinha no Rio, público de penitenciárias e febens, favelas e periferias.
Ainda
outro dia alguém me perguntava: Por que você fez Anjo Negro? Aí está uma peça que continua me fascinando. Tenho de
cor passagens inteiras. Quase posso dizer que ela nasceu comigo. Eu não sabia
ler nem escrever e já percebera uma verdade que até hoje escapa a Gilberto Freyre:
não gostamos do negro. Para mim era tão apaixonante o nosso problema racial que
Anjo Negro ia ser minha primeira
peça.
Crônica de Nelson
em A menina sem estrela.
De
fato, não gostamos do negro, a face
oculta de Deus em nós, realidade que o poeta focaliza em sua peça e a
psicologia chama de inconsciente, o instinto animal que o primitivo manifestava
livremente e o civilizado reprime. Seu símbolo é a treva noturna da mesma forma
que o sol o da consciência criadora, ao passo que a luz baça da lua representa
a consciência somente produtora. Entretanto, não gostar do negro não significa não gostar de negro, homem que o sociólogo citado estudou em seus livros.
Ignorância e conhecimento do sagrado são condições indispensáveis para nos
unirmos a nossos pais eternos nos tornando seres livres porque criadores. Como
não podemos ferir a divina negritude conformando nosso íntimo ser, ferimos o
homem negro nosso irmão como o bode expiatório de nossa rejeição ao Criador e à
criação.
É voz corrente que nosso maior medo é da morte física, falecimento inerente ao viver desde que concebidos por nossos pais carnais. Mas não é verdade, pois o maior medo é da morte simbólica da pessoa social que estamos no mundo, personalidade calcada em ambição de riqueza, poder e fama que preencham nosso vazio criador, algo que família, escola, religião, política e ideologias nos forçam a assumir do berço ao túmulo, sendo somente essa ilusória consciência que nos impede conquistar a suprema beleza e harmonia da eterna e universal individualidade. Para que a criação do personagem nos redima de tão ruinosa neurose decorrente de atávica insegurança existencial, fruto de nosso rompimento com a Natureza desde que civilizados, é indispensável que o eu morra em sua empáfia e orgulho deixando de ser o tresloucado tirano de nossas vidas para tornar-se humilde servidor do Eu que, somente ele, sabe governar em paz dramática o cidadão. Algo apenas possível se todos os dias vivenciarmos simultaneamente, com amor e verdade, a energia cósmica e a terrena devendo nos conformar, pois só a primeira nos liberta da servidão que a segunda impõe.
Quando atacamos o homem negro (a ocasião faz o ladrão!), o que de fato atacamos é o divino em nós, pois o civilizado só admite sua mundana pessoa cidadã. Ao negarmos o inconsciente negamos consciência e imaginação criadoras que só existem para lhe dar vida, dando vida ao personagem. Vivemos sob a tacanha e criminosa ditadura do ego. Todo preconceito ao homem negro da parte de negros e brancos ou amarelos e vermelhos, mas estes somente se já civilizados, tem origem na guerra cega que movemos contra a Natureza e o inconsciente, realidades que nossa consciência personalista não aceita porque pretende tudo saber e conhecer unicamente por meio do pensamento e sentidos sufocando o instinto, desprezando o sentimento, rejeitando a intuição. Mas graças ao sacrifício de Ana Maria, senhora cheia de graça, a salvação de Ismael e Virgínia concebendo em seu leito de amor e morte um novo anjo negro, desta vez para viver, é a do ser humano que representam.
A alegria nem o otimismo pertencem ao
teatro. Ele é desespero ou não é teatro. Deveríamos assisti-lo não sentados,
mas atônitos e de joelhos. Na verdade, o que ocorre no palco é o julgamento do
mundo, o nosso próprio julgamento. E grande teatro é aquele que faz o
espectador crispar-se na cadeira numa angústia de condenado.
Entrevista de Nelson a Austregésilo de
Athayde em 1947
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