O ABAJUR LILÁS, DE PLÍNIO MARCOS: UMA ESCRITA DA ESCÓRIA CONTRA A DITADURA
LILAC LAMPSHADE
Resumo: O Abajur Lilás, do dramaturgo paulista Plínio Marcos, cujo conteúdo diegético sugere, metaforicamente, por meio dos diálogos das personagens e do encadeamento do enredo, situações de impotência frente a possíveis mudanças do país, pode ser considerado um dos textos que mais denuncia a brutalidade da ditadura militar no Brasil. Dessa forma, nosso artigo pretende apresentar alguns modos de elaboração formal utilizados que permitem fazer uma reflexão acerca da memória desse período, tendo como ponto de partida a matéria ficcional, o texto dramático em si.
Palavras-chave: Teatro brasileiro; dramaturgia; personagens; Ditadura militar; Plínio Marcos.
Introdução
Houve um momento específico na história da dramaturgia brasileira, os cinco anos anteriores e posteriores a 1964, em que a militância política esteve tão em evidência, tão prodigiosamente fecunda, que lançaria um legado difícil de apagar-se, deixando suas marcas perceptíveis até hoje. João Roberto Faria (1998) enumera alguns nomes que estiveram diretamente ligados a esse cenário de conflitos e contradições, dramaturgos, como Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, Oduvaldo Vianna Filho, Dias Gomes, José Vicente, Leilah Assunção, Consuelo de Castro, Antonio Bivar, Carlos Queiroz Telles, dentre tantos outros.
Um nome, em especial, esteve em profunda sintonia com esse cenário atemorizante: o dramaturgo Plínio Marcos. Segundo Magaldi (1997, p. 308), “O Abajur Lilás é o texto mais politicamente engajado de Plínio Marcos”. Escrito nos anos do obscurantismo ferrenho em que mergulhou o país, ele só poderia apelar para a metáfora, com o objetivo de dar seu recado. Ainda assim, a censura o interditou, durante vários anos. Clara metáfora da história do Brasil do “regime”, O Abajur lilás nasce num momento em que se estabeleciam pactos para silenciar os crimes da ditadura e parece equiparar o país a um prostíbulo. Simulacros, as três prostitutas que vivem o drama corresponderiam aos cidadãos; o cafetão e seu “ajudante”, aos militares e torturadores sádicos e insensíveis, numa época em que ao governo cabia divulgar uma imagem de crescimento econômico e de um país que lutava contra as injustiças sociais.
1 O céu de um país cinza: o legado literário de um tempo mau
A peça traz à baila instrumentos de tortura usados naquele momento da história do Brasil, inscrevendo-se, pois, num espaço dotado de concreta historicidade. Tendo a sociedade como pano de fundo, a obra é constituída por conflitos interindividuais, com contornos altamente psicológicos.
Importa considerar que se encontram dois registros distintos sobre a data em que a obra O Abajur lilás teria sido produzida: 1969, logo após a publicação do AI 5, e 1975, quando da “morte” do jornalista Vladimir Herzog –, dos quais o primeiro parece ser o real (informação verbal)3. A explicação para essa divergência encontra-se diretamente vinculada ao papel da censura - a obra só se tornou pública em 1975.
No que concerne ao tempo, Plínio Marcos faz uso, em O abajur lilás, de múltiplos marcadores temporais, os quais são indispensáveis a um imaginário que avança em direção a uma sucessão de facetas da realidade retratada. Organizando o microcosmo da ficção, o autor traz para o texto marcas do tempo cronológico que remetem ao aspecto cotidiano das personagens: “E os três da tarde não conta?” (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 10); “Esqueceu que hoje é sexta-feira?” (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 11); “E também já é fim de noite”. (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 12); “Já parou por hoje”. (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 12); “Amanhã ela fica de cabeça fresca, e fim”. (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 21). Ressalte-se que é na prática da ideologia do cotidiano que residem os primeiros sinais de “desvio” em relação ao sistema estabelecido, porque é no cotidiano que o sujeito manifesta suas elaborações, suas inovações e produz (novos) sentidos. Essas marcações percorrem o texto, organizando o enredo e o mundo que o autor retrata, direcionando o leitor-espectador para o universo ficcional, determinando, assim, diferentes modos de percepção de mundo, em que a ação se acelera e se condensa:
“DILMA – Acorda, Célia. Já é tarde. Acorda, Célia. Tá na hora, acorda.
CÉLIA (acordando) – Que horas são?
DILMA – Quase três” (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 24).
As indicações são precisas quanto ao espaço interno em que circulam as figuras do drama, e o dramaturgo obedece ao princípio aristotélico da unidade de espaço. O ambiente retratado é o local de trabalho de três prostitutas, um “mocó”: “Acho que tu e a Célia pensam que esse mocó caiu do céu pra mim” (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 13). O local remete à discussão de questões mais abrangentes e metafóricas como, por exemplo, a recente história brasileira e as relações de gênero e poder. “E todos aqui nesse prédio dependem de mim” (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 19). Quanto ao espaço exterior, o “lá” constitui-se por meio de nuances não muito precisas. “[...] os homens lá de baixo [...]” (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 19). “[...] o garçom do botequim fedorento [...]” (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 19).
A peça constrói-se sobre uma dialética entre a intenção política e um pendor realista voltado para a crítica social, que nem sempre se compatibilizam no texto, mas é no campo da construção das personagens que se poderia questionar a qualidade da obra. Pode-se alegar que as figuras que povoam o cenário são elaboradas em rápidas pinceladas, sem maior configuração psicológica, sem grandes dramas interiores. Ocorre, todavia, que, como ocorreu no expressionismo alemão e no teatro engajado de Brecht, por exemplo, o adensamento psicológico cede lugar, em O abajur lilás, à representação das relações vividas e suas determinações históricas e econômicas. Seu efeito, na peça, é, pois, alegórico. Cada uma das três prostitutas, sem nenhum tipo de abstração, encarna um tipo de comportamento, chegando a atingir o nível de arquétipo: as três simbolizam, em verdade, o comportamento dos oprimidos em face do poder, porém uma acomoda-se, outra tem espírito conciliador, embora chegue a delatar, e a terceira encarna a contestação radical, embora não chegue a atingir o político.
A cada diálogo, o espectador é apresentado a uma série de desvendamentos das intimidades das personagens, retratados com nuances de crueldade. Algozes e vítimas são lados que se intercambiam ao longo da peça. A troca de papéis só chega ao término quando um dos componentes é isolado pelo véu negro da solidão e desamparo ou quando a sua condição de ser vivente é ameaçada pela lei do mais forte. “A dramaticidade de Plínio não admite soluções de compromisso ou acomodamento de situações, apenas o rompimento dos vínculos, a morte ou a supressão de uma das partes geradoras da tensão” (MOSTAÇO, 2002, p. 13).
2 As tábuas e uma única “lei”: cinco personas nos tempos de chumbo
O enredo mostra os anti-heróis envolvidos num clima de ameaça à segurança, à dignidade, à saúde e à vida, culminando num destino hostil de anti-herói-vítima que pode conduzir o público a participar das emoções trágicas da piedade, solidariedade, medo, horror, reações comuns às grandes tragédias.
A peça inicia-se com uma discussão entre a prostituta Dilma e o gigolô homossexual decadente, Giro, envolvendo "questões de trabalho" e de saúde: o "patrão" quer que ela atenda a um número maior de clientes e a acusa de estar tuberculosa. Em seguida, entra em cena Célia, bêbada, que também discute com o rufião, que busca uma culpada por um escarro com sangue. Agridem-se fisicamente, e Célia se retira prometendo vingança. No dia seguinte, quando as duas prostitutas voltam a conversar sobre os acontecimentos do dia anterior, Célia propõe a Dilma um plano para eliminar Giro, porém esta não concorda, fazendo aumentar a tensão. O cafetão as surpreende, ordenando que comecem a trabalhar imediatamente. Após a saída de Giro, Célia quebra um abajur, a fim de provocá-lo e conseguir a adesão da companheira para concretizar seu plano.
Em outro quadro, Giro aparece com uma nova prostituta, Leninha, a quem incumbe de comprar outro abajur e de quem busca, por meio de elogios, cumplicidade. Em outra cena, o gigolô aparece com seu truculento ajudante de ordens (Osvaldo) e provoca uma nova discussão, cujo objeto de discórdia é, ainda, o abajur lilás quebrado. Após uma série de mútuas acusações entre as mulheres, Célia quebra um outro objeto a fim de que as companheiras entrem em consonância com seu plano para eliminar Giro, porém Leninha permanece com seu ponto de vista e se retira.
Após uma cena de agressões verbais e físicas, a cena se esvazia e, no último ato, as três mulheres aparecem sentadas e amarradas em cadeiras, enquanto Giro e Osvaldo dialogam. O truculento ajudante, que destruíra vários outros objetos para "plantar" provas, afirma que as três foram responsáveis pela destruição, e Giro, após tentar em vão, extrair de Dilma o nome da responsável pelo ato, ordena, autoritária e sadicamente, a Osvaldo que a torture. Ela não resiste à pressão do alicate em seu seio e desmaia. Na sequência, Leninha, ameaçada de ser colocada num "pau-de-arara", acaba delatando Célia, que é assassinada por Osvaldo. Giro, cinicamente, pede que as duas prostitutas esqueçam o ocorrido, sob a alegação de que "A putaria é assim mesmo" (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 59). A Osvaldo ele ordena que limpe tudo; às prostitutas, que saiam para fazer programas. A peça termina com uma oração de Leninha, enquanto a luz vai se apagando lentamente.
Por meio da ambientação, da expressiva composição das personagens, do comportamento e dos diálogos tensos, agressivos, que espelham a força da dominação, do poder exercido, o texto constrói a metáfora do período de repressão instituído pelo regime militar no país. O jogo do poder e as analogias que sustentam todo o conflito permitem essa transferência da ação para o contexto político.
Cinco personagens povoam O abajur lilás: Giro, um gigolô homossexual, Dilma, uma mãe que se prostitui “só pra dar o que tem de melhor pro nenê [seu filho]” (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 23), Célia, a contestadora que, em disputa pelo poder, desafia o patrão, Leninha, a prostituta que “entrou nessa porque quis” e Osvaldo, o sádico ajudante de Giro.
Pela profissão e pela condição socioeconômica, as figuras femininas que circulam pelo cenário da peça são componentes de uma população duplamente marginalizada na sociedade. São humanas, mas, ao mesmo tempo, apresentam uma singular pobreza de humanidade que as despersonaliza, conduzindo-as para o status de coisa. De forma quase documental, essas prostitutas representam a realidade de um povo que muitas vezes nem faz parte dos últimos degraus da hierarquia capitalista. Talvez instigadas pelo fator econômico, são tão cercadas de rancor e ressentimento, que, de uma forma ou de outra, direcionam todo esse amargor umas contra as outras. A agressão física e verbal faz parte de sua rotina.
Os princípios mais primitivos ganham relevo na peça, enquanto suas personagens estão imersas em um processo de condição mercadológica. Com base na lei da oferta e da procura, estão fadadas à solidão e ao esquecimento. “Onde vamos?” perguntam Leninha e Dilma ao término da peça. É justamente o questionamento que se faz em qualquer tempo, em qualquer espaço, quando o assunto é a camada marginal. As três personagens não se constituem como sujeitos livres, sempre estão submetidas ao jugo do explorador, refletindo a verdadeira face do submundo e desnudando as relações erótico-comerciais (e políticas), cujo objetivo maior está calcado nos princípios da propriedade privada.
A degradação física não é maior que a degradação moral da qual são vítimas. Nas relações “humanas” que se estabelecem na peça, não há espaço para a piedade; as prostitutas são julgadas e sentenciadas pela sua condição. A agressão física e verbal entre elas apenas abre espaço para um possível redimensionamento das estruturas que regem o sistema explorador. Ali elas se dizem tudo o que têm a dizer, sem meios-termos. Consequentemente, são esculpidas de forma sintética, fazendo prevalecerem os seus traços mais essenciais e funcionando como peças de uma grande engrenagem de manipulação e dominação, o que remete, no sentido metafórico da palavra, ao momento de turbulência por que o país passava, sob a égide de um regime totalitário.
Com 251 falas, Giro, a primeira personagem a ser retratada, é dono de um “mocó” usado na prática do lenocínio; explora as prostitutas sem nenhuma benevolência e com as garantias de seu truculento ajudante: “Ele gosta de bater. Ele é mau. Se uma puta cai nas mãos dele, sofre paca. Ele não tem dó. É forte e mau. Um tesão” (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 38).
O gigolô é um antagonista que, na peça, funciona como mola propulsora de todos os conflitos existentes, impondo às demais personagens os obstáculos – nem sempre transponíveis – para que a obra seja marcada pelo crivo da ação Com efeito, o teatro se define como
[...] a arte do conflito porque somente entre dois temperamentos, duas ambições, duas concepções de vida, empenhando a fundo a sensibilidade e o caráter, obrigaria todas as personalidades submetidas ao confronto a se determinarem totalmente. (PRADO, 2009, p. 92)
No proscênio textual, Giro se configura como um ser incompleto, porque depende da força de seu ajudante de ordens Osvaldo e do trabalho das prostitutas; o cafetão ganha dimensão de arquétipo e figurativiza o pólo de exploração capitalista, mas, ao mesmo tempo em que explora, também é explorado pela grande máquina social que se nutre da miséria daqueles que estão marginalizados:
Por isso que esse mocó não rende a metade do que devia render. Qualquer filho da puta com um apartamento desses faz uma bruta nota. O desgraçado aqui só pega as sobras. Que merda! Fico aqui no pinga-pinga de dar nojo. Só de conta de luz, pago uma grana sentida. Acho que as duas só trepam de luz acesa. E de água, nem se fala. Essa mania de se lavar toda hora dá no meu bolso. Mas, que nada! Uma é mais folgada que a outra. Não sei o que as duas pensam. Acho que tu e a Célia pensam que esse mocó caiu do céu pra mim. Mas aqui oi! Dei duro. Trabalhei, trabalhei, trabalhei, pra conseguir essa droga. Agora ele tem que render. Que é que tu e a Célia pensam? Me diz. O que tu e ela pensam? (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 13).
“Essa que tem que ser a tua jogada. Faturar, faturar, faturar” (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 16). “Preciso ver se tu vai me dar lucro. De repente tu não faz nem pra pagar a lavadeira. Vai pra rua e mostra quem tu é” (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 47). “[...] O desgraçado que toma meu dinheiro, o garçom do botequim fedorento[...]” (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 19).
O discurso do gigolô traz marcas do discurso do poder estabelecido, que pode comprar, espancar e corromper pessoas. Pode-se destacar, nesse sentido, um forte diálogo com o regime de exceção pós 1964: “GIRO – Se alguém quiser engrossar, pago uns homens e mando bater, matar e os cambaus. Tenho dinheiro e posso mais que todos aqui. E tu que abra o olho[...]” (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 19).
Nas palavras de Gaspari (2002, p. 23), "O porão ganha o privilégio de uma legitimidade excepcional. A mentira oficial é o reverso da covardia da tortura. Através dela as hierarquias sinalizam um medo de assumir a responsabilidade por atos que apoiam e recompensam”. Deve-se levar em consideração que a personagem emprega também, como recurso argumentativo, o discurso do senso comum, uma vez que situa “as grandes verdades acima de todos os sistemas”, possibilitando “que a reflexão não entre em choque com o poder vigente” (LAGAZZI, 1988, p.30). Nessa perspectiva, vale destacar um momento em que o senso comum ganha relevo no espaço diegético:
Otária! Eu tenho cobertura. Em mim, não pega nada. Tenho dinheiro, dinheiro. Bastante pra trambicar meio mundo. [...] Mando te darem uma biaba e se tu ciscar, vai em cana, boboca.Vai dizer que tu não sabe que a corda sempre arrebenta do lado mais fraco? (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 14).
Giro encarna a insatisfação e a acidez de alguém que passou boa parte da vida à margem da sociedade, seja pelo fator financeiro, seja pela sexualidade. Todo esse amargor é visto com clareza pelo bordão “Que merda! Que merda! Que merda!”, que repete sucessivas vezes ao longo do texto e que parece explicar, mas não justificar, seus comportamentos cruéis e seu discurso arrogante. Seguindo o princípio de “na lei ou na marra”, o cafetão usa sua autoridade de dono do “mocó” para exagerar nos desmandos contra quem descumprisse qualquer regulamento, o que reflete o conturbado período em que a obra foi concebida.
Revestido de poder, o cafetão consolida os traços característicos da chamada “linha dura” do regime militar, fazendo da violência o carro-chefe de seu comando, sem, em nenhum momento da peça, manifestar compaixão, piedade, amor ou outro sentimento humano positivo. “Cadela sem-vergonha! O que é teu tá guardado. Vou mandar te dar umas porradas.
[...] Ela me paga. Tu vai ver amanhã. Vou mandar descer o cacete nela” (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 21). Nos fragmentos analisados, constata-se que “A ilusão do sujeito, que se coloca como centro de decisão, camufla a força coercitiva do senso comum e sustenta as relações de poder entre as pessoas, fazendo o sujeito acreditar na autonomia da sua vontade” (LAGAZZI, 1988, p. 46). O pensamento que comanda suas falas é o que produz o discurso autoritário e de ameaça: “E todos aqui nesse prédio dependem de mim” [...] “E tu que abra o olho” (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 22).
A configuração de Giro também remete à chamada cultura do narcisismo, típica das sociedades capitalistas, cujo sistema de produção é um “modelo de sucesso” que transforma o sujeito em objeto – a descrença nos valores tradicionais conduz o indivíduo a uma intensa busca do prazer pessoal, do individualismo, em detrimento de ideais coletivos.
Com 222 falas na peça, a prostituta Dilma, que luta para sobreviver e fornecer ao seu filho um destino diferente do seu, representa o ponto de intersecção entre o mundo modelizado e o universo em que está inserida. Imersa nos constantes conflitos da obra, é dela que o cafetão Giro quer ouvir a delação das companheiras, talvez por encontrar nela uma reserva de pruridos morais incompatíveis com a atmosfera do ambiente ou pelo fato de recalcar o poder da maternidade, provocando nele uma manifestação tardia da situação edípica de rivalidade com alguém que divide a atenção do outro.
Por outro lado, Dilma representa o estereótipo do ser humano que se vê acuado diante da necessidade de sobrevivência, ratificando as palavras de Pinto (2002, p. 14):
Dilma nos passa a dor, a descrença, o desânimo, a falta de perspectivas e a incerteza do dia de amanhã, que a levam a se submeter aos caprichos do gigolô. É a velha temática da relação capital e trabalho, que hoje observamos com muita nitidez neste capitalismo selvagem travestido de globalização da economia.
No decorrer da ação, Dilma, que vê no filho sua única chance de resgate no futuro, vai delineando a metáfora da classe popular explorada, sufocada e imobilizada, incapaz de insurgir contra o poder, porém com esperança de que o regime vigente venha a ser superado pelo democrático.
Nas falas de Dilma, o enunciador produz, ao construir sua argumentação, um jogo (ilusório): o sujeito-locutor acredita criar um sentido capaz de produzir persuasão, ao mesmo tempo em que, no entanto, é interpelado-assujeitado pelo outro que o constitui como sujeito, pelo efeito da heterogeneidade constitutiva. Isso significa dizer que, embora tenha sido a prostituta quem inicia o “debate”, não se pode desconsiderar a existência de um discurso anterior, proferido por sociólogos, antropólogos e historiadores: a exclusão da mulher e da prostituta, a perda da voz e da identidade.
Essa argumentação busca, no imaginário social, os valores socialmente compartilhados por locutor e interlocutor. Tanto que a “comunhão” – uma verdadeira negociação das distâncias entre sujeitos a propósito de uma questão – parece estabelecer-se, uma vez que o enunciador, solicitando ajuda, oferece ao enunciatário a sensação de participar ativamente de sua exposição:
Eu tenho meu filho pra criar, entendeu? [...] Eu sou meu filho. Tu já pensou se eu entro numa gelada como é que ele fica? Pensa. O coitadinho não sabe de nada. Eu é que tenho que dar as dicas da vida pra ele. Sem mim, ele se dana.” [...]Eu me dano. Me lasco. Me entralho. Mas faço do meu nenê um homem. Não um veado. Ele tem que ser bacana. Daí ele ocupa um lugar. E me ajuda. Aí, sim, a gente, eu e ele, mudamos o resultado do jogo. Já, eu agüento a mão, É preciso, Meu nenê
precisa, Mas eu vou dando os piás positivos. E dois é mais que um, Eu e ele vamos sair pra melhor. (Pausa) Sem mim, o que ele faz? (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 27).
Quando ela enuncia, somos impelidos à memória do discurso bíblico. Contudo, ela se posiciona contra esse discurso, contrapondo um novo discurso, o daquele que não quer mais admitir ser enganado e/ou oprimido:
Chega num tempo que tu funde a cuca. A gente tem que ter um troço pra gente se agarrar. Eu sei. Se eu não tivesse meu filho, já tinha feito um monte de besteiras. [...] Só aguentei a viração pelo meu filho. Vale a pena a dureza que eu encaro por ele. Um dia, eu e ele mudamos a sorte. Daí, eu vou poder ser gente. Ter gente por mim. (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 49).
Na fala do sujeito-enunciador, constata-se a busca da adesão do destinatário aos valores do ideário da mulher-mãe-ser humano, ao mesmo tempo em que se “espera” o pronunciamento de “uma sentença”, baseada nos valores de justiça x injustiça. Para a personagem (que não recebe as compensações substitutivas da sociedade, que oferece modelos ideais, mas limita o acesso a eles), resta a freudiana renúncia narcísica, que gera frustração e angústia. O texto garante, assim, seu significado político, já que delibera sobre algo que interessa, a princípio, ao mundo como coletividade, direcionando-se para dentro da realidade nacional, remetendo os excluídos a uma reflexão sobre a sua real condição. Essa reflexão percorre os caminhos do psicológico e vem dialogar com Neusa Suely, prostituta, personagem da peça Navalha na carne, que também questiona a posição dos excluídos diante de uma sociedade cada vez mais estigmatizante:
Às vezes chego a pensar: poxa, será que sou gente? Será que eu, você, o Veludo somos gente? (Triste) - Chego até a duvidar! Duvido que gente de verdade viva assim, aporrinhando o outro, um se servindo do outro. Isso não pode ser coisa direita. Isso é uma bosta! Um monte de bosta! Fedida! Fedida! Fedida! (PLÍNIO MARCOS, 1984, p. 39).
Estabelecendo um elo entre os dois textos, percebe-se uma nuance de moralidade que permeia as falas de ambas as personagens. Uma moralidade muito representativa na obra do dramaturgo, que, "Pelos padrões de uma certa ética absoluta, [...] se definiria como um verdadeiro moralista" (MAGALDI, 1998, p. 213). Plínio Marcos quer resgatar do limbo personagens de contundente apelo social e, conforme afirma o autor:
As prostitutas, na singeleza com que exemplificam posturas em face da realidade, ganham um significado de arquétipos. Pode-se vê-las como simples criaturas humanas, levadas por circunstâncias adversas a trilhar um caminho infeliz, e ao mesmo tempo como encarnações de comportamentos fundamentais. (MAGALDI, 1998, p. 214).
Outro dado que merece relevo nas falas de Dilma é a fixação no filho, que está no espaço “lá fora”, o que chama para o diálogo o discurso psicanalítico, particularmente a voz de Freud: evoca-se o mito de Édipo. Ela renuncia ao prazer, mas não recebe nada em troca, porque a sociedade não lhe garante o pacto edipiano.
A terceira personagem enfocada, com 129 falas, é Célia, cujo discurso é permeado de radicalismos e contestação. Inconformada com os desmandos do cafetão, a prostituta revela um caráter explosivo, que beira à irracionalidade. É a personagem que procura reagir contra o conformismo estabelecido naquele ambiente de exploração, porém seu discurso trai suas verdadeiras intenções. Embora se insinue como revolucionária, o que almeja é assassinar Giro e assumir o poder, tomando-lhe o “mocó” e os lucros, mantendo-se, portanto, no mesmo segmento de exploração, porém como a patroa. Seu discurso assume, então, a fórmula da prevaricação: “Cupincha é cupincha. Eles estão com quem está no mando. Se a gente fica em cima, eles bandeiam pro nosso lado” (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 28).
A bufunfa que ele pega da gente é demais. Não tá direito. Então, o negócio é a gente deixar certo. Cada vez que a bichona der uma folga, eu mando carteira dela. Só ali na furqueta. Mas, se ela desconfiar e quiser espernear, eu encaro ela de berro na mão. Aí o papo é outro. A bicha tem que segurar as pontas. (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 27).
Célia, como as demais prostitutas, configura o arquétipo do explorado, do oprimido, que, muitas vezes, movido pela frustração e angústia, procura a solução que julga mais rápida e eficiente: a violência. Ocorre que “Giro é apenas um instrumento do sistema e sua eliminação em nada mudará esse sistema” (PINTO, 2002, p. 15). Vítima do poder opressor, a personagem metaforiza, ao ser brutalmente assassinada ao final da peça, o desaparecimento dos “subversivos” durante o regime de exceção. Num período em que os delatores estavam por toda parte, Plínio Marcos soube, de modo peculiar, expor as atrocidades de um verdadeiro “tempo mau” e coloca a personagem Célia como um mecanismo que busca dissipar todas as mazelas provenientes de um país repleto de injustiças. Numa espécie de sacrifício, Célia é exposta e descartada por Giro, uma vez que foi delatada, mediante tortura, pela companheira de quarto, contra quem ela se manifesta:
Cagueta nojenta! Tu tá contente? Cagueta! Puxa-saco sem vergonha! Entregadora! Que tu pensa que vai ganhar com isso? Pensa que livrou tua cara? Tu vai continuar na merda. Vai continuar esparro. Vai se danar. Filha da puta! Nojenta! (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 58).
Apesar dessa faceta contestadora - predominante na peça - e de sua configuração de vítima, envolta num clima de constante tensão, ironicamente a personagem funciona, às vezes, como ponto de comédia, conforme observou Rosenfeld (1993, p. 145): “Por vezes ela [a obra] suscita o nosso riso, pelo sabor que lhe é inerente, mas ao mesmo tempo nos faz envergonhar-nos do nosso próprio riso”, uma vez que o riso irônico, por sua ambiguidade, seria uma arma “para sobreviver com risco”
GIRO – Qual é a graça?
CÉLIA – A tua cara de bicha velha é um sarro.
GIRO – Nojenta!
CÉLIA – Veadão, veadão, veadão!
GIRO – Vamos acertar as contas.
CÉLIA – Já ou agora?
GIRO – Quanto tu fez?
CÉLIA – Seis michês.
GIRO – Tu não quer nada mesmo.
CÉLIA – Deu pras pingas, tá bom.
GIRO – Pra mim, não.
CÉLIA – Tu acha pouco?
GIRO – Acho.
CÉLIA – Então vá à merda antes que eu me esqueça. Só tenho uma xoxota.
Acrescente-se que o riso liberta os instintos reprimidos – das personagens e do leitor-espectador –, tornando possível a satisfação destes, ainda que de maneira simbólica. O chiste, na concepção de Freud, é a busca do prazer que se afirma em oposição à realidade exterior desfavorável.
A quarta personagem, com 93 falas é Leninha, que, assim como as demais companheiras de quarto, está imersa em um universo capitalista baseado na propriedade privada. Personagem determinada por apelido no diminutivo, detém uma visão alienada, não se importa com sua condição, porque lhe “rende”. “Entrei nessa porque quis. É mole. Uns dois michês é mais que um mês de trampo legal” (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 49). Procurando sempre obter vantagem em tudo, a personagem parece estabelecer o fio que une as pontas da esperteza e malandragem.
Confiante em sua capacidade de ludibriar, Leninha representa a frieza das relações e, conforme observou Pinto (2002, p. 15):
Leninha é a própria ingenuidade. Entende que, através de uma boa conversa, pode mudar as formas do opressor e transformá-lo num ser dócil. Me lembra muito a esquerda festiva que quer reformar o país nas mesas de botequins, saboreando um bom e velho uísque escocês.
Outro fator relevante no discurso de Leninha é que este se identifica com um discurso de independência em relação ao gênero masculino, dialogando com o feminismo que surgia como prática e como discurso na época: “Tenho nojo de homem. São uns bostas. Eu quero é nada. Não ter satisfação a dar a ninguém. Tá? É isso que quero”.
Leninha também faz uso do discurso do senso comum para dar maior ênfase a sua ideologia, criticando de maneira contundente a companheira Dilma:
LENINHA – Bela merda! Tudo é grupo. As coisas que tu devia fazer tu não faz. E engana que é por causa do teu filho. Eu não entro. Tu não faz porque não é de fazer. Quem tem cu tem medo. E tu dá a desculpa do filho. Mas vai botar ele na merda. (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 49).
Por outro lado, mantém um discurso de alienação diante das situações com que se depara no “mocó”, sem tomar nenhum partido e permanecendo indiferente aos planos de Célia para eliminar o gigolô: “[...] Só quero que cada um trate de si. A vida de ninguém me interessa” (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 50). A personagem acredita que, por meio de uma boa conversa, conseguirá ludibriar o cafetão, representando assim o discurso da perfídia:
LENINHA – No papo se banha a bicha. Não viu como eu fiz ela comprar abajur novo, trocar lençol e tudo? E só na leve. Se ela aperta a gente, diz que tá de paquete. As três. A bicha vê que não vai ter grana e se arregla. Aposto. (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 50).
É por meio da boca de Leninha que o cafetão Giro consegue ouvir a delação. Ao que parece, a opção do autor pela voz delatora não ocorreu de forma gratuita. Escolheu justamente aquela que não possui nenhum tipo de comprometimento com pessoas, nem por qualquer
instituição. Para a personagem Leninha, o que realmente importa é viver à sombra do esforço alheio ou dos “frutos” da profissão que escolheu.
Mantendo a sua postura dissimulada, Giro declara para essa nova prostituta que ela terá tratamento diferenciado das demais e, portanto, poderá usufruir um ambiente com mais luz para que possa trazer maior rentabilidade (lucro) para o cafetão. Leninha quer, no entanto, um novo abajur, não para poder enxergar a totalidade das coisas, mas para ler revistas, mantendo-se, assim, alheia aos acontecimentos que a rodeiam:
GIRO – Tu vai no claro. Tu pode. Tu é nova. Tu, eu não ligo que vá de luz acesa. Só quero te ver malhando.
LENINHA – Papo furado, esse teu. Eu não ou dispensar o abajur. Não é por nada. É que eu gosto de ler.
GIRO – Mas, ler?
LENINHA – É. Grande Hotel, Capricho, essas porras. Manja? Sou vidrada.
Com isso, o autor deixa transparecer a sua crítica e, de forma metafórica, traz à baila a ideia de que muitos problemas sociais podem ter sua gênese na própria sociedade. Assim, parece eleger a personagem Leninha, pela sua impassibilidade frente à condição de suas companheiras e pela sua crença em poder reverter uma situação adversa com sua fala mansa e doce, como ícone de uma sociedade alienada que se depara com as vicissitudes negativas de um regime, mas que se acomoda diante dos problemas de natureza político-social.
Com 14 falas, a quinta personagem enfocada é Osvaldo, o ajudante de ordens de Giro, que, como uma peça dessa engrenagem de exploração, pratica as mais terríveis barbáries contra as prostitutas:
Osvaldo é o típico leão de chácara. Sempre pronto para cumprir as ordens do “patrão”, seja ele quem for. Desprovido de qualquer sensibilidade, esse personagem é o executor das desgraças que o opressor, que jamais gosta de sujar as mãos, determina que ele cumpra. (PINTO, 2002, p. 16).
Simbolizando a implantação de relacionamentos verticais e autoritários pós 64, Nas raras falas de Osvaldo, concentra-se a expressão da brutalidade dos torturadores, indivíduos incumbidos de fazer o serviço sujo para membros vinculados ao governo e de, por meio da coerção e da violência, manter a “lei” e a “ordem” estabelecida pelo cafetão: “OSVALDO – Ela desabou. Não aguentou o repuxo. (Ri)”
Capaz de criar situações desfavoráveis às prostitutas, como quebrar objetos do “mocó” para castigá-las – “Era muita coisa quebrada. Uma só não ia quebrar tanta coisa” (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 53) –, Osvaldo possui certo rancor em relação às prostitutas e funciona como um eunuco num harém. Numa forte crítica à chamada “linha dura” do regime de exceção, Osvaldo encarna os militares sádicos, de quem o dramaturgo parece extrair a virilidade, assim como Giro, o dono do “mocó”, suprimido de masculinidade, que representa o alto escalão militar. Segundo Magaldi (1998, p. 14),
Numa leitura ao nível do simbólico, os fatos aparentemente corriqueiros ganham nova dimensão. Plínio desmonta uma estrutura de arbítrio, em que certos indivíduos, de que Oswaldo é um símbolo, praticam ações condenáveis, para imputá-las a outros. O apoio de Giro na força irracional de Oswaldo gera injustiças irremediáveis. Compromete-se a legitimidade do poder.
Novamente, a linguagem da peça evoca princípios freudianos para o diálogo, como a explicar a violência: a frustração oriunda de tendências pulsionais recalcadas, decorrentes do assujeitamento do ser humano à civilização, faz que o psiquismo procure outras formas de relacionar-se com o social, revoltando-se contra o Outro.
3 Entre o ser e o parecer: o jogo de poder no palco de exceção
Na peça, tão forte quanto a crítica ao “regime” – e a ela intrincada – é a abordagem do binômio sexo/poder. Por meio dos tipos e dos motivos que os movem, do espaço em que transcorrem as ações, agressões, conflitos, unidos pelas leis da “variação qualitativa” e da “interdependência”, conforme as descreve Boal (apud PALLOTTINI, 1983), observa-se, ao lado da metaforização dos porões da tortura, um trabalho com as referências simbólicas de masculino e feminino: Plínio Marcos traz à luz aspectos ou manifestações da sexualidade reprimidos, interditados (a prostituição) e marginais em relação à sociedade oficial. O confronto entre as personagens Giro e Dilma, desde o início da peça, evidencia a crise em relação a referências sociais de gênero. As constantes agressões verbais de Giro parecem estar ligadas a uma possível projeção freudiana do rufião na figura feminina, algo frustrante para ele, pois não consegue ser como as prostitutas, o que gera raiva e ressentimento:
GIRO – Queria eu poder fazer michê. Não ia dar moleza. Fazia uns vinte michês por dia. E de cara alegre.
DILMA – Com a tua cara, tu ia morrer de fome.
GIRO – Claro, estou velho. Mas já tive meu tempo. Fui de fechar. Naquele tempo não tinha essas ondas de travesti. Era um nojo. Qualquer coisa era um escândalo. Mas, no Carnaval, só dava eu. Me badalava. E o que me salvou é que sempre tive juízo. Juntei um dinheirinho e montei esse mocó. Beleza acaba. Se eu não cuidasse de mim, hoje estava na rua da amargura. Por isso é que eu digo que tem que faturar enquanto pode. O que é bom dura pouco.
“GIRO – [...] Queria eu ter uma cona. Era um michê atrás do outro. Mas é sempre assim. Deus dá pão pra quem não tem dente. Eu, com uma xota, ficava rico. Que merda! Que merda! Que merda! [...]
“DILMA – [...]Tu fica nessa bronca de veado velho e pra se vingar pega no pé da gente. Vai ver que não tinha escarro nenhum nessa pia. E muito menos sangue. Tu é que inventa. Sei bem como tu é tinhoso”
Carente de referências, Giro deseja identificar-se com referências simbólicas que a sociedade atribuiu às mulheres; como não pode, porque a sociedade também criou a ilusão de que ele pertence a outro grupo, manifesta a situação edípica da rivalidade, que o conduz a confrontar-se com o sexo oposto: sentindo-se perseguido, assume o papel de perseguidor ou agressor, que condena e deprecia a prostituição feminina. Isso fica patente nas palavras do gigolô ao colocar em cena o discurso do Outro: “Toda puta sabe que na primeira sexta-feira depois do dia dez é que os cavalos do salário mínimo vêm pras bocas a fim de tirar o atraso”
Nesse constante jogo de ser/parecer, a voz do autor também faz ressoar, com um fino timbre de ironia, o período de exceção. Essa fala representa um discurso já cristalizado, segundo o qual a necessidade de reconhecimento social "dificulta o surgimento do novo, do revolucionário, e assim a ordem vigente se vê assegurada”
Um dos aspectos mais significativos da peça está relacionado ao papel do homossexual: o gigolô. Ao que parece, não era muito comum à época, no universo da prostituição, encontrar um homossexual desempenhando essa função. Talvez essa fosse uma ideia estética de Plínio Marcos para desqualificar os indivíduos ligados à ordem política estabelecida, uma vez que o militarismo representaria o lado másculo do poder e estava estreitamente vinculado a uma cultura machista, que necessitava (e ainda necessita) manter a imagem do rigor. Esse antagonismo representado pela figura gigolô/homossexual denota uma contundente crítica à hipocrisia que permeia a sociedade e, especialmente, a uma instituição que procuraria preservar severamente preceitos éticos e morais. É interessante frisar que, segundo o discurso machista, associar Giro com a homossexualidade é revesti-lo de certa fragilidade, é depreciar a figura do cafetão e, por extensão e de forma metafórica, a figura do poder opressor representado pelos militares.
Ao que parece, na história nunca houve, de forma efetiva, uma perseguição contra as prostitutas, ao passo que contra os homossexuais a perseguição parece sempre ter sido mais forte. E é justamente nessa esteira que o autor procurou trabalhar sua obra, colocando, como personagens centrais da trama, representantes de uma camada social tipicamente excluída: as prostitutas, que figurativizam a população, e o rufião/homossexual, que figurativiza o poder opressor vigente naquele momento histórico do país.
Com um viés crítico, Plínio Marcos desmitifica o gigolô, que se vale da figura de seu truculento ajudante de ordens Osvaldo para que possa realizar todos os seus desmandos, retirando-lhe a condição de virilidade, desqualificando-o e ridicularizando-o, como se pode observar neste diálogo entre Giro e a prostituta Leninha:
LENINHA – Que Osvaldo é esse?
GIRO – Um homem. Ele me ajuda. Faz a parte pesada. Arrasta móvel e... às vezes...
LENINHA – Te dá umas garibadas?
GIRO – Que nada!
LENINHA – Diz pra mim. Ele é teu gorgota?
GIRO – Não. É uma pena. Ele é tão bonito. Mas não quer saber. Nem de homem, nem de mulher.
LENINHA – Mas é brocha.
GIRO – Uma pena, uma pena. Mas me ajuda bem. Às vezes, o mulherio fica muito assanhado e eu mando ele botar elas na linha. Ele gosta de bater, Ele é mau. Se uma puta cai nas mãos dele, sofre paca. Ele não tem dó. É forte e mau. Um tesão.
É necessário salientar que a prostituição também está vinculada a um processo de dominação do gênero masculino no decorrer da história da humanidade, aliada quase sempre à aquiescência ou à submissão do gênero feminino. Tal dominação está ratificada por meio de instituições políticas e econômicas que, de uma forma ou de outra, mantêm a prostituição como um dos símbolos da relação dominador/dominado entre os gêneros feminino/masculino. Esse é um fato que tem sido constatado como dado antropológico, no predomínio das sociedades patriarcais, e como dado cultural, na dimensão da sexualidade e na desvalorização da atitude produtiva considerada como "vocação" feminina: o trabalho doméstico, que se realiza fora do processo capitalista de produção e circulação de riquezas.
Com base nessa representação do imaginário social, atribui-se o predicado "forte" ao papel masculino (encarnado por Osvaldo) e "fraco" ao feminino (representado pelas prostitutas e pela ilusão produzida na homossexualidade de Giro).
Ocorre, todavia, que, se a força física é o suporte para a dominação masculina, a astúcia e a equivocidade são as armas do feminino. Giro encarna essa ambiguidade e, mais que isso, finge não ser ambíguo, usando essa dualidade como arma de combate: amparado pelo poder da força masculina que lhe serve e pela posse do prostíbulo, explora de forma quase escrava as prostitutas, desencadeando, assim, um verdadeiro combate ideológico entre masculino e feminino, poder e não-poder.
Ancorado no discurso popular de cunho autoritário "Quem pode mais chora menos", o autor faz da sexualidade uma arma de combate, por meio da qual o homem inferioriza a mulher, representada na constante presença do binômio cafetão-prostituta, "e tenta inferiorizar os outros homens, negando-lhes a sua condição de machos" , configurada na homossexualidade de Giro e na impotência sugerida de Osvaldo.
Conforme as categorias de sujeito descritas por Stuart Hall (2003), pode-se afirmar que o sujeito que se apresenta em O abajur lilás não é unificado e previsível, mas se confronta com outras múltiplas identidades possíveis, deslocando-se e produzindo diferentes posições, diferentes identidades. E essa mudança de identidade decorre do modo como o sujeito é interpelado ou representado: ora é o dominador quem fala sobre o dominado; ora é o dominado quem se confronta com o dominador, produzindo-se formas alegóricas e modos indiretos de protesto, à medida que a nova ordem autoritária avançava suas práticas restritivas da liberdade:
A grande força de mobilização catártica no teatro só acontece verdadeiramente quando no palco desfilam arquétipos do inconsciente coletivo e/ou social, e nas peças de Plínio sempre estão nervos expostos de todas as mazelas do nosso relacionamento. A correlação entre temáticas, como loucura e poder, feminismo e repressão, homossexualismo e violência, está estranhamente presente na peça. Sua estrutura coloca de um lado os homens opressores, e de outro as mulheres, exploradas. O homossexualismo de Giro, por um lado, e a impotência de Oswaldo, por outro, acentuam a vinculação sexo e poder.
A função que a linguagem alcança na peça é fator determinante para estabelecer as relações de poder entre o rufião e as prostitutas. A ideologia subjacente ao discurso das personagens ganha dimensão por meio da linguagem porque, como afirma Lagazzi (1988, p. 26), "A linguagem é lugar de poder e de tensão, mas ela também nos oferece recursos para jogar com esse poder e essa tensão. O poder procura, no entanto, eliminar as possibilidades que a linguagem nos dá para fugir ao controle que ele quer absoluto".
Embora não se encontrem, explícitos no texto, enunciados de cunho eminentemente político, em decorrência da forte censura, pode-se entrever o Estado como formação discursiva institucional, ou seja, como lugar da subserviência, da submissão do indivíduo ao poder, como organização coercitiva (representada por Giro/Osvaldo), caracterizada pela liberdade decretada (e não pela liberdade compartilhada, como a que desejava Plínio Marcos), em que a obediência é vista como alienação (Leninha) e em que não existe liberdade individual (as três prostitutas dependem do cafetão) e sim a presença do sistema moralista (representado por Dilma). Na passagem abaixo, Plínio Marcos retrata, pela voz de Dilma, o mundo do agenciamento de prostitutas, que alegoriza “o sistema”: “[...] O que tu pensa? Essa raça maldita é toda combinada. Uma cafetina dá cobertura pra outra. E com essas e outras, a gente é que se entruta”.
Ocorre que, embora critique o “pacto”, ela já o assimilou como saída para a situação miserável:
DILMA – A gente tem que ser junta. Uma batota só.
CÉLIA – Mas pra apagar a bicha.
DILMA – Não. Pra juntar grana e comprar um mocó. Sem cafetina, sem dono, sem dono, sem mumunha. A gente trabalhando pra gente.
Sempre alegando a necessidade de cuidar do filho, o que de certa forma é uma tentativa de amenizar sua culpa (pela profissão “vergonhosa”), ela acaba por usá-lo como arma. Ainda assim, ao deixar entrever a imagem segundo a qual as crianças seriam o “futuro da nação”, que ela parece (astuciosa ou ingenuamente) interpretar ponto de apoio para a transformação e construção de uma nova sociedade:
“DILMA – [...] Os nenéns não têm culpa dessa putaria que é o mundo. E por isso, eu vou virar o jogo. E disso, tu não duvida, tá?”
Do ponto de vista discursivo, é Célia quem representa, no entanto, o discurso da contestação. Fazendo uso do poder verbal para tentar mudar a sua situação naquele ambiente de exploração, a prostituta busca, com o apoio da companheira de desventura, investir contra Giro e, consequentemente, contra toda a ordem estabelecida:
CÉLIA – Que jogada, porra nenhuma! Sei o que ele quer. Que eu vá pra rua, me vire, me vire, até ficar arrombada. Aí eu fico no bagaço e a bicha, contente. Aqui, oi! Cansei de chala e de milonga. Vou endoidar a bichona.
DILMA – Aí o cupincha dele te arrebenta.
CÉLIA – Pago pra ver (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 26).
Para Célia, o uso da força é essencial para que ocorra uma mudança radical em suas vidas. E essa força ganha maior dimensão na figura de uma arma de fogo que ela pensa adquirir, o que remete à ilusão do poder, já que está ligada a um grupo supostamente mais frágil. A posse do revólver como símbolo de poder representa uma crítica ao militarismo e ao capitalismo, cuja força e pretensa superioridade concentrar-se-iam nas armas e no dinheiro:
CÉLIA – Tu me empresta a grana. Eu compro uma draga. Sei quem vende a preço bom. Daí, a gente vira a mesa. Fica tudo no taco.
DILMA – Tu tá batusquela!
CÉLIA – Tu tem medo? Se é isso, deixa pra mim. Faço a bicha com alegria. Antes do veado ciscar, dou-lhe um teco na lata. Mando o puto pro beleléu. É só tu entrar com a grana, o resto é meu.
Para as prostitutas, a força, a corrupção, a chantagem que lhes surgem pela voz de Giro (o oponente que figurativiza o poder e alegoriza o Estado), tornam-se a primeira arma de combate. Protagonizando os mesmos discursos, a que se acrescenta o discurso da união, as personagens buscam certo grau de comprometimento “ideológico” que garanta o alcance do objeto: a união (ou o ajuntamento) poderá constituir um movimento consistente, capaz de exercer influência sobre a situação de exclusão e marginalização social. Ocorre, no entanto, que, ao não escamotearem seus sentimentos, não se movimentando “por fingimentos ou amoralismos”, essas personagens não demonstram aquela consciência política que marcava “o malandro idealizado pela esquerda engajada”. Elas são conduzidas unicamente pelo ódio e pela violência, compondo “uma certa poética da crueldade, que se volta intensamente contra a outra, uma evidente vontade implícita de destruir a outra”.
Célia procura manter firmes os seus "princípios" para mudar a ordem das coisas e não se conforma em apenas tentar resolver as situações adversas por meio do diálogo. Dilma, ao contrário, teme uma possível retaliação, representando o indivíduo que obedece às ordens estabelecidas para não ser punido, ou seja, o povo submisso. Assim, na voz da personagem Dilma, prevalece um discurso de acomodação/não-reação ao statu quo:
CÉLIA – Mas se tu ficar se arreglando, não vai dar outra coisa. No papo, não vai mudar é nada. Tem que ser na congesta. De arma na frente. Se a gente ferra o puto, isso fica nosso. Tu vai poder dar o bem-bom pra tua cria. Vai. Vai mesmo. E aí é que é bacana.
DILMA – Tu pensa que é no “toma lá, dá cá”. E o resto? E a cana? E os cupinchas da bicha? Tu acha que todo mundo vai se fechar em copas? Que eles vão largar um pesqueiro desses assim no mole? Que nada! Vai ter um puta escarcéu. E a gente fica no toco.
Invocando o aspecto social, toda e qualquer violência é praticada em diferentes níveis, mas todas se materializam em decorrência de um estado de tensão entre duas (ou mais) forças antagônicas que se manifestam. Plínio Marcos estabelece uma comunicação sensível com o espectador, uma compreensão gramatical direta, uma transmissão do sentimento do horror Nesse segmento, o teatro faz parte de todas as sociedades, pois, ao explorar as facetas das personas, busca uma identificação com os traços marcantes da personalidade humana. Cada personagem se mantém viva de acordo com a capacidade de se aproximar do público; quanto mais profundamente tocar aquilo que é comum no ser humano, mais longe pode levar sua identificação com o mundo.
4 À sombra de um abajur lilás: traços e retratos no Brasil do “regime”
Merece destaque, na peça, o abajur que a personagem Célia quebra para pressionar Dilma a compactuar com a ideia de eliminar o rufião. O título da obra provoca no leitor a expectativa das situações dramáticas que se sucederão, tanto no plano da fábula, quanto no do espetáculo, permitindo-lhe relacionar-se de forma absoluta com a percepção de mundo apresentada pelo autor:
Na prática, o título nos interessa como ‘primeiro sinal’ de uma obra, intenção de obedecer ou não às tradições históricas, jogo inicial com um conteúdo a ser revelado do qual ele é a vitrine ou o anúncio, o chamariz ou o selo de qualidade. As informações que ele fornece, por mais frágeis que sejam, merecem ser consideradas.
O abajur, símbolo que remete, numa primeira instância, ao medo do escuro, aponta para a representação da “luz no fim do túnel” num período de obscurantismo na história recente do país, significação que vem aliar-se à simbologia da cor lilás: a cor da espiritualidade, que alçaria o espírito a patamares mais elevados e projetaria o homem a um tempo de mudanças e transmutações. Se, por outro lado, observar-se que o objeto abajur retém a luz para focá-la em determinada direção, delimitando o espaço e só deixando à mostra aquilo que é predeterminado, pode-se considerar que ele alegoriza o comportamento de quem detinha o poder no período da ditadura militar: focada, a luz restringe a capacidade de visão/observação das pessoas. E, para o regime de exceção, interessava exatamente que a população enxergasse apenas parte das coisas e nunca sua totalidade. Com o foco de luz direcionado para num único ponto, incapaz de projetar imagens nítidas do todo, o abajur pode metaforizar, ainda, um país decadente, mergulhado nos porões obscuros da ditadura, dominado por sua ideologia, bem como a uma população alienada, de olhos vendados pelas sombras da repressão.
Uma vez quebrado o abajur por uma personagem insatisfeita com a sua situação, pode-se reproduzir, por um lado, o desejo de enxergar tudo o que ocorre por trás de um regime que usa a repressão para manter a sua força: Célia não quer apenas enxergar o que lhe permitem ver; ela deseja enxergar as coisas com muito maior transparência e justiça. Ocorre, no entanto, que a quebra do abajur traz de volta o escuro e o medo do escuro daí decorrente, provocando a morte daquele que transgrediu a ordem e abortando a possibilidade de mudança insinuada pela cor do objeto: a destruição da ilusão. É longe do alcance da visão de quem está “lá fora” que o autor também põe a nu as injustiças que ocorrem em nome da “lei” e da “ordem”, e é com a luz apagando-se que termina a peça.
Outra leitura poderia mostrar a quebra do abajur como a metáfora da rebelião, vista como uma ponte para a liberdade, objetivo das personagens marginalizadas, excluídas, e apontar, dada a insignificância desse objeto, para a banalização dos motivos que podiam levar um “suspeito” para os porões da ditadura.
Independentemente da leitura escolhida, pode-se reiterar que o autor traz para a dramaturgia as relações de poder que os exploradores exercem sobre os explorados. Em um claro acerto de contas, o rufião quer saber qual das mulheres foi a responsável pela destruição do abajur lilás. O desejo do algoz é conseguir uma delatora: ele quer, com a conivência de Osvaldo, ouvir da boca de Dilma (a mais “pura”) o nome da responsável pelo ato, sob a ameaça de descontar o valor de um abajur de cada uma delas, num evidente caso de chantagem, característico do processo de extração de confissões:
GIRO – Diz quem foi.
DILMA – Mas eu não sei. Vou dizer o quê?
GIRO – Então desconto.
DILMA – Não pode! Não pode! Não pode, Giro!
GIRO – Posso. Posso, sim. Não posso, Osvaldo?
OSVALDO – Pode e deve descontar.
Assim procedendo, Giro vai esculpindo a metáfora do ditador, com seus poderes constituídos e instalados no “mocó”, onde exerce a autoridade com a tutela de Osvaldo, seu capataz, que, com mão de ferro e a qualquer custo, é responsável por garantir a ordem e a segurança do recinto, exercendo tarefa análoga à do torturador.
Diferentemente de Dilma e Leninha, Célia representa o discurso da contestação radical, que deseja, por meio da força, atingir os seus objetivos: “Nessa a gente vai levar a vida toda. É mais fácil não conseguir nada. Agora, a gente pode apagar a bicha e tomar isso pra nós”.
A voz contestadora de Célia tenta impor sua ideologia para conquistar a adesão das demais companheiras de quarto. Por meio de um pensamento calcado no radicalismo, Célia é o retrato do inconformismo que encontra forças para poder lutar contra a opressão de Giro e de seu truculento ajudante:
“CÉLIA – Chegou a hora de dar uma decisão com a bicha. Ou entram na minha e a gente encara o veado e o brocha, ou as duas se arreglam com a bichona. Não tem mais deschavo. Não quero ninguém fazendo média”.
Irascível e adepta do confronto armado direto contra o poder para dele se apossar, objetivo dos grupos de guerrilha, Célia poderia compor a metáfora do guerrilheiro, o “porra-louca”; firme em seu propósito, não desiste de sua obsessão em possuir uma arma. Também encarna a figura do subversivo quando desafia o poder para desencadear a desordem e conseguir a cumplicidade de Dilma na insurgência contra a repressão:
(Célia agarra um abajur e joga no chão.)
DILMA – Pra que isso?
CÉLIA – Pra ver a bicha endoidar.
DILMA – Ele dá o troco pra nós.
CÉLIA – Eu sei.
DILMA – Essa que é a tua? (PLÍNIO MARCOS, 1969, p. 52).
Na sequência, é a voz de Leninha que se faz ouvir, numa recorrente manifestação de sua inocência, numa tentativa dissimulada de safar-se sem que tenha de delatar a companheira de profissão: embora saiba que Giro não quer a sua confissão, mas a delação da autora do “delito”, ela incorpora o discurso da inocência: “Eu não sou cagueta. Também sou limpa. Mesmo que soubesse, eu não dava o serviço.” Para obter a resposta para o seu questionamento, o cafetão manda seu ajudante colocá-la num pau-de-arara, porém, na iminência da tortura, Leninha não suporta a pressão psicológica e delata a companheira Célia.
Giro deixa à mostra suas verdadeiras intenções: desfazer o pacto da união: “Só quis que ela te dedasse pra todas ficarem sabendo que não podem se fiar umas nas outras”.O objetivo da tortura não seria, pois, extrair informações, mas obter o consentimento forçado da vítima por meio de sua traição aos seus valores ou às relações humanas e afetivas; enfim, o objetivo do torturador é disseminar um clima de terror, no qual a busca de informações tem importância secundária. A destruição moral é a grande sequela do processo e dialoga com a descrição apresentada por G. Orwell, no último capítulo de seu livro 1984, da destruição moral de suas principais personagens, que não resistem à tortura e atendem ao objetivo do sistema: a destruição moral do torturado, a destruição de qualquer resquício de moral coletiva.
Assomam ao texto os discursos da coerção (Giro assegura a obediência de Célia pela ameaça de privação), do pacto (Célia se dispõe a compactuar porque "reconhece" a necessidade de garantir a vida), da força (Giro alcança seu objetivo ao despojar Célia da opção entre obedecer e não obedecer), da manipulação (Giro induz Célia a alterar seus comportamentos discursivos) e do poder. Conforme afirma Gaspari (2002, p. 39):
A teoria da funcionalidade da tortura baseia-se numa confusão entre interrogatório e suplício. Num interrogatório há perguntas e respostas. No suplício, o que se busca é a submissão. O "supremo opróbrio" é cometido pelo torturador, não pelo preso. Quando a vítima fala, suas respostas são o produto de sua dolorosa submissão à vontade do torturador, e não das perguntas que ele lhe fez.
Mantendo uma forte relação com o regime de exceção, a voz do rufião sintetiza o acobertamento das sessões de tortura e das ameaças, como um silenciador das atrocidades do período militar.
Ânimo, gente. Que merda! Que merda! Que merda! Vai, Osvaldo, vai buscar coisas limpas, limpa toda essa droga. [...] Leninha, Dilma, reage, gente! Esqueçam tudo. Vamos se virar. A Célia mereceu. Só aprontava. Vão pra rua. Vão se virar. Na volta, ninguém mais se lembrará dela. Juro. Quando chegarem aqui com fregueses, o Osvaldo já limpou tudo. Vão meninas. A putaria é assim mesmo.
No fragmento, esboça-se um diálogo com o discurso popular segundo o qual “lavou tá novo”, que retoma “A água lava tudo”. Aliada à repetição, a passagem ganha uma grande força dramática: “Vão meninas. A putaria é assim mesmo. É assim mesmo. É assim mesmo. Que merda! Que merda! Que merda!”.
Tanto a personagem Dilma como a personagem Leninha representam, ao final da peça, o discurso da incerteza diante do futuro: “Onde vamos? Onde vamos?” remetendo, diretamente, à condição de miséria social imposta pela situação do país. Talvez a resposta esteja nas próprias palavras do autor, que sempre dizia de forma poética: “Não sei para onde vamos, só sei que é preciso ir”. De acordo com Magaldi (1997, p. 307),
A postura do autor, que se intitula maldito, é a da revolta explosiva, sem colorido partidário. A indignação que o sustenta transmite a seu teatro um vigor de sinceridade inaudita. As peças destinam-se a incomodar o pacato repouso burguês. Plínio não propõe soluções, subentendendo-se que o anima a idealidade apta a subverter a ordem instituída, como um todo.
Em O abajur lilás, pode-se dizer que o enunciador atualiza seus pontos de vista no discurso do autor e no objeto da encenação: atrás das falas e das histórias das personagens, há a palavra, as intenções e a história do autor. Um autor que concebeu o prostíbulo como um espaço que lhe permitiu tomar parte no debate político, sinal seguro da história. Isso não significa que Plínio Marcos tenha construído a peça em torno de sua ideologia; ele a dissemina em meio às demais, discutindo com suas personagens, dando maior força de convicção a uma ou outra e produzindo um texto em que as personagens encarnam princípios e concepções de mundo, sem perder a identidade.
Em outras palavras, sem que sejam simplesmente porta-vozes do autor, representam algo de suas próprias lutas interiores, suas dúvidas e angústias e figurativizam, pois, a humanidade heterogênea, multiforme. Assim como Brecht, Plínio Marcos “não decidiu reabilitar a prostituta no interior de uma sociedade aristocrática, como Hugo o tentara, nem mesmo no mundo burguês, mas no interior de um mundo [...] onde é necessário não deixar que as injustiças do passado tenham força” (TOUCHARD, 1970, p. 169)4.
Considerações
Parece que, para Plínio Marcos, o sofrimento e a dor causados pela marginalização social vêm revelar-se como um novo padrão de tragédia, porque a obra aborda possibilidades morais do comportamento dos seres humanos. O enredo da peça mostra seres envolvidos num clima de ameaça à segurança e à vida que se estende à comunidade onde se desenrola a “tragédia” e culmina no destino hostil do (anti) herói-vítima, que pode conduzir o público a participar das sensações de piedade, solidariedade, medo, horror, reações que as grandes tragédias encerravam em si.
Num texto que parece dialogar com o jornalismo, como é o caso de O abajur lilás, encontra-se o retrato de um Brasil nem sempre visível a olho nu e inenarrável pela grande imprensa, criando para o escritor uma imagem que oscila entre a marginalidade semelhante à das personagens por ele representadas e o heroísmo de alguém que se posta ao lado dos subalternos, ao compor uma obra que aproveita a matéria histórica (o real empírico) para produzir ficção, procurando cumprir um compromisso radical com os seres humanos que a sociedade deixa à margem. Concebendo a “literatura como missão” (para empregar a expressão de SEVCENKO, 1985), utilizou os recursos de seu poder criador, fazendo que suas
4 O comentário de Touchard é referente à obra de Berthold Brecht, mas aplica-se perfeitamente à peça analisada. peças se transformem em evocação de vidas humanas, ricas de ação física e verbal, com uma estrutura artística desenvolvida por meio de uma linguagem despida de torneios embelezadores; tecida de imagens e símbolos universalmente conhecidos.
domingo, 11 de fevereiro de 2018
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