quinta-feira, 30 de agosto de 2012

O peixe dourado


Peter Brook

Tradução: Angela Hampshire

          Esclareçamos, antes de mais nada, qual é o nosso ponto de partida. Teatro é uma palavra tão vaga que ou carece de um significado ou cria confusão, porque uma pessoa fala de um aspecto e outra de outro completamente diferente. É como falar da vida. A palavra é importante demais para ser explicada. O teatro não tem nada a ver com edifícios, textos, atores, estilos ou formas. A essência do teatro se encontra num mistério chamado “o momento presente”.

          “O momento presente” é assombroso. Sua transparência é tão enganosa quanto um fragmento arrancado de um holograma. Quando se desintegra este átomo do tempo, todo o universo estará contido em sua infinita pequeneza. Aqui, neste momento, superficialmente, não acontece nada de especial. Eu falo, vocês escutam. Mas seria esta imagem superficial um reflexo autêntico de nossa realidade presente? É claro que não.

          Nenhum de nós se desvencilhou, subitamente, de toda sua vida real; mesmo que adormecidas por um momento, nossas preocupações, relações, comédias menores e tragédias profundas continuam aqui, como atores aguardando nos bastidores. Não somente nos acompanham os protagonistas de nossos dramas pessoais, mas também, como o coro de uma ópera, personagens secundários, dispostos a entrar e estabelecer um vínculo entre nossa vida privada e o mundo exterior. E em nosso interior, como um gigantesco instrumento musical disposto a ser tocado, estão as cordas, cujos tons e harmonias são nossa capacidade para reagir às vibrações do mundo espiritual invisível, que frequentemente ignoramos, mas com o qual entramos em contato cada vez que que inspiramos uma golfada de ar.

Explosão

          Se nos fosse possível liberar nossas fantasias e movimentos ocultos, súbita e abertamente nesta sala, como se fora um explosão nuclear, o caótico torbelhinho de impressões seria intenso demais para que um de nós pudesse absorvê-lo. Compreendemos, assim, porque uma ação teatral no presente - que liberasse o potencial coletivo de pensamentos, imagens, sentimentos, mitos e traumas - seria tão intensa e poderia se transformar em algo tão perigoso.

          A opressão política tem sempre rendido ao teatro o maior dos tributos. Nos países governados pelo medo, o teatro é a forma de arte que os ditadores vigiam mais estreitamente e a que eles mais temem. Por este motivo, quanto maior é a nossa liberdade, mais devemos compreender e disciplinar toda a ação teatral; para que esta tenha significado, deve-se obedecer a regras muito estritas.

          Em primeiro lugar, um caos seria produzido se cada indivíduo libertasse seu próprio mundo secreto. O aspecto da realidade que o ator representa deve provocar uma reação semelhante em cada espectador, para que o público viva uma impressão coletiva. Obviamente, a base que une a todos tem que ser interessante. Porém, o que realmente significa interessante?

Abraço

          Existe um modo de comprovar este fato. No instante de um milionésimo de um segundo em que o ator e o público se relacionam estreitamente, como num abraço físico, o que conta é a densidade, a espessura, a multiplicidade de camadas, a riqueza; em resumo, a qualidade do momento. Assim, qualquer momento pode ser frouxo e carecer de interesse ou, pelo contrário, ter uma qualidade suprema. Permito-me insistir que este nível de qualidade é a única referência para se julgar uma ação teatral.

          Passemos agora a estudar mais de perto o que queremos expressar, quando falamos de um momento. Este é o conjunto de todos os momentos possíveis e o que chamamos de tempo desapareceu. Entretanto, quando abandonamos as esferas exteriores nas quais existimos normalmente, vemos que cada momento de tempo está relacionado com o momento anterior, em uma cadeia infinita. Assim, em uma representação teatral, nos achamos diante de uma lei inevitável.

Fluxo

          Uma representação é um fluxo, que tem uma curva ascendente e descendente. Para alcançar o momento de maior significado, necessitamos de uma cadeia de momentos, que começam num nível simples, natural, nos conduzem até a intensidade e logo nos distanciam de novo. O tempo, que tão frequentemente é nosso inimigo na vida, será nosso aliado se formos capazes de compreender que um momento sem brilho pode conduzir a um momento resplandecente e logo a um momento de perfeita transparência, antes de cair de novo em momento de simplicidade cotidiana.

          Seguiremos melhor esse raciocínio se pensarmos em um pescador tecendo sua rede. À medida que ele trabalha, esmero e intenção estão presentes em cada movimento veloz de seus dedos. Entrelaça o fio, faz os nós e circunda o vazio com figuras, cujas formas exatas correspondem a funções exatas. Logo joga a rede à água, de onde ele a puxa de um lado para outro, a favor ou contra a maré, de muitas formas complexas. Cai um peixe na rede, um peixe não comestível ou um peixe comum nas mesas, quem sabe um peixe multicolorido, ou um peixe raro, ou venenoso, ou em momentos de graça, um peixe dourado.

Rede

          Sem dúvida, existe uma distinção sutil entre o teatro e a pesca, que deve ser sublinhada. No caso de uma rede bem feita, é questão de sorte que o pescador pesque um peixe bom ou um ruim. No teatro, aqueles que fazem os nós também são responsáveis pela qualidade do momento que acabam pescando em suas redes. É assombroso: a ação do “pescador” que faz os nós influi na qualidade do peixe que acaba em sua rede!

          O primeiro passo é mais importante e muito mais difícil do que parece. Surpreendentemente, não se concede a este passo preliminar o respeito que ele merece. Pensemos no caso de um público sentado, aguardando o início de um espetáculo, esperando se interessar, persuadindo a si próprio de que deve se interessar. Somente se sentirá irresistivelmente atraído se as primeiras palavras, sons ou ações do espetáculo libertem no interior de cada espectador um primeiro murmúrio relacionado com os temas ocultos, que aparecem gradulamente. Não se trata de um processo intelectual e muito menos racional. O teatro não é de modo algum uma discussão entre pessoas cultas. O teatro, graças a energia do som, da palavra, da cor e do movimento, pulsa uma tecla emocional, que por sua vez, faz estremecer o intelecto.

          Uma vez que o intérprete tenha estabelecido uma ligação com o público, o evento pode prosseguir de múltiplas maneiras. Existem teatros que pretendem apenas obter um peixe comum, que se possa comer, sem causar indigestão. Há teatros pornográfico, que pretendem servir deliberadamente um peixe com as entranhas cheias de veneno. Mas, suponhamos que a nossa ambição seja a maior de todas, que com o nosso espetáculo possamos pescar um peixe dourado.

Invisível

          De onde vem o peixe dourado? Nós não sabemos. Suponhamos que deva vir de algum lugar nesse mítico subconscinete coletivo, esse vasto oceano, cujos limites não foram descobertos, cujas profundidades não foram ainda exploradas suficientemente. E onde estamos nós, as pessoas comuns, que formamos o público? Estamos no mesmo lugar em que estávamos ao entrar no teatro, dentro de nós mesmos, em nossas vidas cotidianas. Assim, fazer a rede é como construir uma ponte entre o que somos habitualmente, sob condições normais, levando nosso mundo de cada dia conosco, e um mundo invisível, que só nos é revelado, quando a habitual incapacidade perceptiva é substituída por uma consciência infinitamente mais aguçada. Mas esta rede é feita de buracos ou de nós? Esta pergunta é como um koan1 e para fazer teatro, devemos conviver com ela de forma permanente.

          Não há nada na história do teatro, que expresse de maneira tão clara este paradoxo, como as estruturas que encontramos em Shakespeare. Em essência, seu teatro é religioso, já que leva o mundo espiritual invisível ao mundo material, de formas e ações visíveis e reconhecíveis. Shakespeare não faz concessões em nenhum dos extremos da escala humana. Seu teatro não vulgariza o espiritual, para que o homem comum possa mais facilmente o assimilar, muito menos rejeita a sociedade, a feiúra, a violência, o absurdo, nem mesmo a gargalhada da existência mesquinha. É um teatro que desliza sem esforço entre ambos, momento a momento, até o tempo em que sua grande empreitada feita adiante, intensifique a experiência que está se desenvolvendo, até que extraia toda a resistência e o público seja despertado, em um instante de aguda percepção da malha da realidade. Este momento não pode demorar. A verdade escapa à toda definição e compreensão, mas o teatro é uma máquina, que permite a todos os participantes saborear um aspecto da verdade em um momento; o teatro é uma máquina para subir e descer pelas escadas do significado.

Negociação

          Nós enfrentamos agora uma verdadeira dificuldade. Para captar um momento de verdade, é necessário que ator, diretor, autor e cenógrafo se unam em um grande esforço comum; nenhum deles pode fazer isso sozinho. Dentro de uma representação teatral, não pode haver uma estética diferente, nem objetivos controversos. Todas as técnicas artísticas e artesanais devem contribuir para o que o poeta inglês Ted Hughes chama de uma “negociação” entre nosso nível comum e o nosso nível oculto do mito. Esta negociação se expressa na união do que é imutável e o mundo sempre mutante de hoje, que é precisamente onde ocorre toda a representação. Estamos em contato com este mundo a cada segundo de nossa vida consciente, quando a informação reconhecida por nossos neurônios, no passado, se reativa no presente.

          O outro mundo, que permanece sempre aqui, é invisível, porque nossos sentidos não têm acesso a ele, embora possa ser percebido de muitas maneiras e em múltiplas ocasiões, através da intuição. Todas as práticas espirituais nos levam até o mundo invisível, o mundo das impressões, da quietude e do silêncio. Sem dúvida, o teatro não é o mesmo que uma disciplina espiritual. O teatro é um aliado externo ao caminho espiritual e existe para oferecer visões, inevitavelmente fugazes, de um mundo invisível, que se interliga com o mundo cotidiano e normalmente é ignorado por nossos sentidos.

Uniões

          O mundo invisível não tem forma, não muda, nem mesmo existe da maneira como nós o entendemos. O mundo visível está sempre me movimento, sua característica é o fluxo. Suas formas vivem e morrem. A forma mais complexa, o ser humano, vive e morre, as células vivem e morrem e da mesma maneira, as línguas, idéias e estruturas nascem, decaem e desaparecem. Em certos momentos únicos da história da humanidade, os artistas foram capazes de estabelecer uniões tão autênticas entre o visível e o invisível, que suas formas, sendo estas templos, esculturas, quadros, narrações ou músicas, parecem sobreviver eternamente, apesar de que devemos ser prudentes e admitir, que mesmo a eternidade morre; não dura para sempre.

          Um trabalhador do teatro pragmático, esteja onde estiver, é obrigado a abordar as grandes formas tradicionais, sobretudo às que pertecem ao Oriente, com a humildade e respeito que elas merecem. Estas formas o conduzirão mais além de si mesmo, mais além da capacidade inadequada para a compreensão e a criatividade, que o artista do século XX deve admitir, como sua autêntica condição. Um grande ritual, um mito fundamental, é uma porta. Esta porta não está aqui para ser observada, mas para ser experimentada e quem possa experimentar a porta dentro de si mesmo, a atravessará com maior intensidade. Portanto, não se deve desdenhar do passado, com arrogância. Porém, não queremos enganar a ninguém. Se roubamos seus rituais e símbolos e tentamos explorá-los em benefício próprio, não devemos nos surpreender que suas virtudes sejam perdidas e convertidas em adornos reluzentes e ocos. É nosso desfio constante saber discernir. Em alguns casos, a forma tradicional está viva, em outros, a tradição é a mão morta, que estrangula a experiência vital. O problema consiste em rejeitar o “método aceito”, mas buscar a mudança, apenas para mudar.

Forma

          A questão primordial, portanto, é a forma, a forma precisa, a forma certa. Não podemos passar sem ela, a vida não pode passar sem ela. Mas, o que significa forma? Por mais que me façam esta pergunta, inevitavelmente sou sempre conduzido à sphota, uma palavra da filosofia clássica indu, cujo significado se encontra em seu som: uma onda, que aparece subitamente na superfície de águas tranquilas, uma nuvem que aparece em um céu límpido. Uma forma é o virtual se manifestando, o espírito se encarnando, o primeiro som, o big bang.

          Na Índia, na África, no Oriente Médio, no Japão, os artistas que trabalham em teatro se fazem a mesma pergunta: qual é a nossa forma hoje? Onde devemos buscá-la? A situação é confusa, a pergunta é confusa e as respostas também são, embora tendam a se dividir em duas categorias. Por um lado, existe a crença de que as grandes potências culturais do Ocidente - Londres, Paris e Nova York - resolveram o problema e que basta usarmos sua forma, de maneira igual àquela que os países subdesenvolvidos fazem para adquirir processos industriais e tecnologias. A segunda atitude é exatamente oposta. Os artistas dos países do Terceiro Mundo têm frequentemente a impressão de que perderam suas raízes, de que estão presos à grande onda que vem do Ocidente, com sua imaginação do século XX e sentem, portanto, a necessidade de negar-se a imitar modelos estrangeiros. Isto conduz a um regresso desafiante às raízes culturais e às tradições ancestrais. Não é mais o refelexo dos grandes impulsos contraditórios de nosso tempo, exteriormente feito de unidade, interiormente feito de fragmentação.

Ressonâncias

          Sem dúvida, nenhum dos dois métodos produz bons resultados. Em muitos países do Terceiro Mundo, as companhias de teatro abordam obras de autores europeus, como Brecht e Sartre. Frequentemente não se dão conta de que esses autores trabalharam por intermédio de um complexo sistema de comunicação, que pertencia à sua própria época e lugar. Em um contexto completamente diferente, suas ressonâncias se perdem. As imitações do teatro experimental de vanguarda dos anos sessenta esbarram com a mesma dificuldade. Assim acontece que honestos trabalhadores teatrais de países do Terceiro Mundo, em um estado de orgulho e desespero, se lançam a pesquisar o seu passado e tentam modernizar os seus mitos, seus rituais e folclore, sendo o resultado de má qualidade, frequentemente uma mistura, que não é “nem carne nem peixe”.

          Como, então, podemos ser fiéis ao presente? Recentemente minhas viagens me levaram a Portugal, Tchecoslováquia e Romênia. Em Portugal, o país mais pobre da Europa ocidental, me disseram que “nós não vamos mais nem ao cinema, nem ao teatro”. “Ah! - eu exclamei, em tom compreensivo -, com a crise econômica, vocês não tem dinheiro pra ir”. “Em absoluto!”, foi a surpreendente resposta. “É exatamente o contrário. A economia está melhorando lentamente. Antes, quando o dineiro era escasso, a vida era muito cinzenta e sair de casa, tanto para ir ao teatro, quanto ao cinema, era uma necessidade, assim, as pessoas se apertavam para poder sair.

          Hoje em dia, a gente começa a contar com algum dinheiro, para poder gastar e tem ao alcance das mãos um amplo leque de possibilidades consumistas do século XX. Há o vídeo, fitas de vídeo, compact discs e para satisfazer a eterna necessidade de estar com outras pessoas, há os restaurantes, vôos charter ou viagens organizadas de turismo. Depois estão as roupas, os sapatos e os cabelereiros… O cinema e o teatro ainda existem, mas desceram muito na ordem de prioridades”.

Desespero

          A partir do Ocidente de orientação mercantilista, me dirigi a Praga e Bucarest. Lá, mais uma vez, como também na Polônia e na Rússia e em quase todos os antigos países comunistas, se eleva o mesmo grito de desespero. Há alguns anos as pessoas brigavam por um lugar nos teatros; agora, frequentemente apenas vinte e cinco por cento dos lugares são ocupados. Em um contexto social completamente diferente, nos deparamos de novo com o mesmo fenômeno de um teatro que não é atrativo.

          Nos dias da opressão autoritária, o teatro era um dos raros lugares onde, durante um curto intervalo de tempo, as pessoas podiam se sentir livres, ou fugir para uma existência mais romântica e poética, ou também, ocultas e protegidas pelo anonimato do público, podiam se unir aos risos e aplausos nas peças de desafio à autoridade. Nas entrelinhas, um respeitável texto clássico oferecia ao ator a oportunidade de entrar em cumpliciadade secreta com o espectador, graças à uma ênfase levíssima à uma palavra ou a um gesto imperceptível, expressando assim o que, de outra maneira, seria muito perigoso se expressar. Essa necessidade já não existe e o teatro enfrenta, sem remédio, uma realidade difícil de se aceitar: que a época gloriosa das salas repletas se devia a muitas razões válidas, mas que nada tinham a ver com a autêntica experiência teatral da obra em si.

Fertilidade

          Voltemos a situação da Europa. Desde a Alemanha até o Oriente, incluindo o vasto continente russo e também até o oeste, passando pela Itália, Portugal e Espanha, tem havido um grande número de governos totalitários. Toda forma de ditadura se caracteriza pela paralização da cultura. Qualquer que sejam as formas, as pessoas não tinham a possibilidade de viver e morrer, de uns tomarem o lugar de outros, segundo suas leis naturais. Havia um certo espectro de formas culturais, que se consideravam respeitáveis e que se insticionalizaram, mesmo que o resto das formas fossem consideradas suspeitas e, ou acabavam passando à clandestinidade ou eram completamente eliminadas. O período dos anos vinte e trinta foi uma época de animação extraordinária e de fertilidade do teatro europeu.

          As principais inovações técnicas - cenários giratórios, cenários abertos, efeitos de iluminação, projeções, decorações abstratas, construções funcionais - surgiram durante este período. Certos estilos de interpretação, certas relações com o público, certas hierarquias, tais como o lugar que ocupava o diretor ou a importância do cenógrafo, se estabeleceu então. O tempo passava rápido. À esta época se seguiram vários transtornos sociais: guerras, massacres, revoluções, contra-revoluções, desilusão, repulsão de antigas idéias, fome de novos estímulos e uma atração hipnótica por tudo o que fosse novo e diferente. Na atualidade, tudo isso foi superado, mas o teatro, confiando rigidamente nas suas velhas estruturas, não mudou. Já não faz parte de seu tempo. Como resultado e por múltiplas razões, o teatro está em crise em todo o mundo. Isto é bom e é necessário.

Necessidade

          É de vital importância se fazer um distinção clara. “Teatro” é uma coisa, mas “os teatros” é outra bem diferente. “Os teatros” são as salas, e uma sala não é o que ela contém, da mesma maneira que um envelope não é uma carta. Escolhemos os envelopes pelo tamanho e a distância de nosso correspondente. Tristemente, o paralelismo falha neste ponto, porque é fácil de se jogar um envelope ao fogo, mas é muito mais difícil se derrubar um edifício, sobretudo um edificio bonito, apesar que saibamos instintivamente, que seu momento já tenha passado. Mais difícil ainda é se desvencilhar dos hábitos culturais impressos em nossas mentes, de práticas de tradições artísticas e estéticas. Entretanto, o “teatro” é uma necessidade humana fundamental, mesmo que “os teatros”, suas formas e estilos, sejam somente salas temporais e permutáveis.

          Voltemos, então, ao problema dos teatros vazios e vemos que não se trata de uma questão de se reformar, palavra que significa exatamente refazer uma forma antiga. Mesmo que a atenção se encerre na forma, a resposta será puramente formal e decepcionante na prática. Se estou dedicando tanto tempo às formas, é para sublinhar que a busca de novas formas não é uma resposta em si mesma. Os países com estilos teatrais tradicionais têm o mesmo problema. Quando modernizar significa por o vinho velho em garrafas novas, a armadilha formal se fecha de novo. Se o que pretendem o diretor, o cenógrafo e o ator é utilizar reproduções naturalistas de imagens atuais como forma, descubrirão, com grande decepção por sua parte, que não irão mais além do que oferece a televisão hora após hora.

Relação

          Uma experiência teatral que viva o presente, deve estar em íntima relação com o ritmo de seu tempo, da mesma maneira que um grande desenhista de modas, que não busca cegamente a originalidade, mas que combina misterosamente sua criatividade com a superfície volúvel da vida. A arte teatral tem que ter uma faceta cotidiana; as estórias, situações e temas devem ser reconhecíveis, porque o ser humano se interessa antes de tudo pela vida que conhece. A arte teatral tem que ter também conteúdo e significado. Este conteúdo é a densidade da experiência humana; todo artista aspira captar este conteúdo em seu trabalho, de um modo ou de outro, e talvez consciente de que o significado surge da possibilidade de comunicar-se com a fonte invisível, que existe além de suas limitações normais e que dá significado ao significado. A arte é uma roca, que gira em torno de um eixo imóvel, que não podemos segurar nem definir.

          Qual é então nosso propósito? O que queremos é encontrar a essência da vida, nem mais nem menos. O teatro pode refletir todo o aspecto da existência humana, assim como toda forma de vida é válida, toda forma pode ter um lugar potencial na expressão dramática. As formas são como as palavras; só adquirem significado, quando são usadas corretamente. Shakespeare tinha o vocabulário mais extenso de toda a poesia inglesa e constantemente ele o aumentava, combinando os termos filosóficos obscuros, com as mais grosseiras obscenidades, até que acabou por ter mais de 25.000 vocábulos em mãos. No teatro há muito mais linguagens diferentes das palavras, através das quais se estabelece e se mantém uma comunicação com o público. Existe a linguagem do corpo, do som, do ritmo, da cor, do vestuário, do cenário e adereços, da iluminação, etc; e todos eles vão ser adicionados das 25.000 palavras disponíveis.

          Todo elemento de vida é como uma palavra em um vocabulário universal. Imagens do passado, imagens da tradição, imagens de hoje, foguetes à lua, revólveres, linguagem obscena, uma pilha de ladrilhos, uma chama, uma mão no coração, um grito desesperador, os infinitos matizes musicais da voz; são como substantivos e adjetivos, com os quais podemos criar novas frases. Sabemos utilizá-los corretamente? São necessários, são o meio pelo qual se faz mais vívido, mais penetrante, mais dinâmico, mais perfeito e mais autêntico aquilo que expressam?

Possibilidades

          Na atualidade o mundo nos oferece novas possibilidades. A este incomum léxico humano podem ser incorporados elementos que no passado nunca haviam estado juntos. Cada raça, cada cultura, traz a sua própria palavra à uma frase, que a une à humanidade. Nada existe de mais vital para a cultura teatral do mundo, que o trabalho conjunto de artistas de diferentes raças e origens.

          Quando se juntam tradições diferentes, a princípio existem barreiras. Logo, graças a um trabalho árduo, se descobre um objetivo comum e as barreiras desaparecem. O momento no qual as barreiras caem, os gestos e os tons de voz de todos e de cada um começam a fazer parte de uma mesma linguagem, expressando por um momento uma verdade compartilhada, da qual se inclui o público: este é o momento, que todo teatro deve conduzir. As formas podem ser novas ou velhas, vulgares ou exóticas, simples ou complexas, cultas ou ingênuas. Podem proceder das fontes mais inesperadas e dar a impressão de serem totalmente contraditórias, até o extremo de parecerem mutuamente excludentes. Enfim, se no lugar da unidade de estilo, as formas forem contraditórias, o resultado será saudável e revelador.

Inesperado

          O teatro não pode ser enfadonho. Não deve ser convencional. Deve ser inesperado. O teatro nos conduz à verdade através da surpresa, da excitação, dos jogos, da alegria. Converte o passado e o futuro em parte ao presente, nos permite nos distanciarmos do que nos rodeia em nossa vida diária e elimina a distância que existe entre nós, que, normalmente, é enorme. Um artigo de um periódico atual pode parecer, de repente, muito menos autêntico e menos íntimo, que outro de outra época, de outro país. É a verdade do momento presente que conta, o absoluto convencimento, que só pode aparecer quando entre o intérprete e o público existe um laço de união. Esta unidade aparece, quando as formas temporais cumpriram sua função e nos levaram ao único instante irrepetível, em que uma porta se abre e nossa visão se transforma.
___________________________
Nota de tradução:
1Advinhação, em forma de paradoxo, utilizada pelo Zen budismo, como ajuda à meditação e meio de se obter conhecimento intuitivo.








Nenhum comentário:

Postar um comentário