quinta-feira, 15 de maio de 2014

Teatro/CRÍTICA

"Contrações"

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Inesquecível encontro no CCBB



Lionel Fischer



"A ação se passa em um único espaço: o escritório de uma grande corporação. A gerente convoca e solicita a Emma, sua funcionária, que leia em voz alta uma cláusula do contrato que proíbe aos funcionários qualquer relação sentimental ou sexual com outro empregado da empresa. Nos encontros seguintes, a gerente, amparada pelo poder que tem, libera suas diferentes facetas para manipular Emma. Para manter seu emprego, a funcionária acaba por se render e danificar sua vida privada".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima resume o enredo e o contexto em que se dá "Contrações", do dramaturgo inglês Mike Bartlett. Após cumprir excelente temporada em São Paulo, a montagem acaba de estrear no Teatro III do CCBB. Mais recente produção do Grupo 3 de Teatro, o espetáculo leva a assinatura de Grace Passô, estando o elenco formado por Débora Falabella (Emma) e Yara de Novaes (Gerente).

Salvo monumental engano de minha parte, creio que Franz Kafka assinaria o presente texto sem nenhuma hesitação. Sim, pois alguns de seus temas prediletos (o poder massacrante da burocracia, a alienação do indivíduo frente a um mundo cuja lógica soa incompreensível e o progressivo sentimento de solidão) são aqui trabalhados de forma magistral. 

E da mesma forma que Kafka, Mike Bartlett consegue o prodígio de mergulhar em um universo trágico sem abdicar do humor - quem não percebeu o humor que existe em Kafka, deve urgentemente reler sua obra, mas atentando para o fato de que seu humor nada tem a ver com gracinhas inconsequentes, mas destina-se a golpear ferozmente nossas entranhas.

Em "Contrações", Emma pode ser encarada como uma pessoa qualquer, o mesmo aplicando-se à gerente - a primeira seria apenas uma funcionária bem intencionada, e a segunda, uma profissional fria e manipuladora. No entanto, prefiro encará-las como símbolos de um tempo em que o indivíduo vai sendo progressiva e irremediavelmente destruído pelo sistema, mesmo que a ele tente adequar-se desesperadamente. 

E é exatamente o que faz Emma: ainda que estranhando as solicitações da gerente, mesmo que questionado-as eventualmente, acaba atendendo a todas elas e portanto termina aniquilada. Já a gerente chega ao fim da trama exatamente como no começo: imune à tragédia que impusera e absolutamente certa de que fizera o que deveria ser feito. O desespero e a aniquilação de Emma não a comovem. O sistema não conhece piedade, compaixão, e muito menos lágrimas. O sistema não chora: faz chorar.

Com relação ao espetáculo, Grace Passô impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico. Valendo-se de marcas imprevistas e criativas, criando uma atmosfera de permanente estranhamento, trabalhando magistralmente os tempos rítmicos, a encenadora possui o mérito suplementar de ter contribuído para que as duas atrizes exibissem desempenhos simplesmente inesquecíveis.

Neste quesito, poderia me restringir a enumerar os vastíssimos recursos expressivos de Débora Falabella e Yara de Novaes - vozes maravilhosas, a expressividade que impõem aos gestos, capacidade de entrega, inteligência cênica, poderosa contracena e assim por diante. No entanto, diante do assombro que me causaram, ouso supor que exista algo de intangível em suas performances, que transcende, como já dito, meras considerações técnicas. Mas, o que seria? Sinceramente, não sei.

Mas acredito que, em dadas circunstâncias, os sempre caprichosos deuses do teatro resolvem abençoar de forma incondicional um determinado projeto. E ao fazê-lo, possibilitam que se materialize na cena a melhor definição de teatro que conheço, proferida por Peter Brook, o maior encenador vivo: "O teatro é a arte do encontro". Ou seja: se não se estabelece algo de muito profundo entre quem faz e quem assiste, o fenômeno teatral inexiste. 

No presente caso, considero-me um privilegiado por ter estado ontem no CCBB e assim agradeço a todos que integram este precioso projeto a maravilhosa e inesquecível noite que me proporcionaram - e certamente a todos que lá estiveram.

Na equipe técnica, considero irrepreensíveis as contribuições de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - Silvia Gomez (tradução), André Cortez (cenografia e figurinos), Alessandra Domingues (iluminação), Morris Picciotto (trilha sonora), Anna Van Steen (caracterização) e Kênia Dias, esta última responsável pela notável preparação corporal das atrizes.

CONTRAÇÕES - Texto de Mike Bartlett. Direção de Grace Passô. Com Débora Falabella e Yara de Novaes. Teatro III do CCBB. Quarta a domingo, 19h30.









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