terça-feira, 7 de abril de 2015

Teatro/CRÍTICA

"Consertam-se imóveis"

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Imobilidade sem conserto



Lionel Fischer



"A peça conta a história de uma família cuja trama é firmemente entrelaçada, figurando no centro um nó fundamental: a mãe, idosa e enferma. Ao se verem diante de situações inesperadas e de um iminente colapso, todos os seus membros se articulam em desdobrados esforços para poupar a matriarca de sobressaltos que podem ser fatais. Com relativo êxito, este controle dura até que alguns acontecimentos escapam novamente do roteiro inicial, obrigando-os a investir toda a energia em empreender novas mudanças justamente para que nada mais mude".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima resume o enredo de "Consertam-se imóveis", de autoria de Keli Freitas. Em cartaz na Sala Multiuso do Espaço Sesc, a peça chega à cena com direção de Cynthia Reis e elenco formado por Alonso Zerbinato, Jarbas Albuquerque, Raquel Alvarenga e Suzana Nascimento.

No programa distribuído ao público, tanto a autora como a diretora explicitam sua admiração por Julio Cortázar (1914-1984), escritor argentino que se notabilizou, dentre outras razões, por sua fantástica capacidade de investigar facetas inquietantes e enigmáticas do cotidiano. E como toda admiração comporta a possibilidade de influência, esta não deixa de estar presente nesta curiosa e original peça teatral. A começar pelo título.

Como jamais leio nada a respeito de uma obra que vou analisar, inicialmente pensei que a peça em questão poderia girar em torno de reparos em apartamentos - tal ponto de partida haveria de ser um tanto prosaico, certamente, mas cada um escreve sobre o que deseja. No entanto, e mesmo que durante o espetáculo o espaço cênico seja constantemente remodelado, aos poucos foi ficando claro para mim que o "imóveis" do título nada tinha a ver com moradias, mas sim com os personagens, aprisionados em um contexto que não conseguem alterar.

De acordo com o explícito no parágrafo inicial, os personagens empreendem imensos esforços para poupar a matriarca de revelações capazes de agravar seu estado de saúde, físico e mental. Mas agindo assim nada mais fazem do que perpetuar uma situação ilusória, daí resultando uma imobilidade coletiva sem a menor chance de conserto - não sei se esta avaliação está em sintonia com os objetivos da autora; caso esteja, fico feliz; em caso contrário, humildemente me desculpo.

Estruturado não tanto em torno do que é dito, no sentido literal, mas sobretudo por trabalhar as palavras de forma a produzirem novos e inesperados significados (e assim reorganizando e reinventando a realidade), o texto de Keli Freitas evidencia uma dramaturga de ótimo potencial, cuja produção merece ser acompanhada com grande atenção.

Com relação ao espetáculo, Cynthia Reis impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico. Valendo-se de marcas originais e criativas, e evidenciando notável sensibilidade no tocante aos tempos rítmicos, a encenadora consegue criar uma atmosfera sombria e inquietante, que eventualmente é rompida com inusitados momentos de humor.

No tocante ao elenco, Raquel Alvarenga está engraçadíssima na pele da tia que, além de falar compulsivamente sem se importar se está sendo ouvida ou não, o faz com um sotaque mineiro deliciosamente assombroso. Suzana Nascimento evidencia, como de hábito, excelente trabalho corporal e notável inteligência cênica, valorizando ao extremo tanto as passagens mais hilariantes (como as estranhíssimas aulas de inglês) quanto aquelas em que a dramaticidade predomina. Em papéis de menores oportunidades, já que os mesmos carecem de maiores surpresas, ainda assim Alonso Zerbinato e Jarbas Albuquerque exibem desempenhos seguros e convincentes.

Na equipe técnica, considero irretocáveis as contribuições de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - Lorena Lima (cenário e produção de arte), Bruno Perlatto (figurino), Paulo César Medeiros (iluminação) e Federico Puppi, que assina a composição e direção musical, e que imagino ser o instrumentista que toca violoncelo com maestria. E gostaria também de ressaltar o fato de que a presente montagem contou com orientação filosófica de Alexandre Mendonça, que certamente foi preciosa para o trabalho do elenco e da direção. E finalmente: são belíssimas as fotos do programa de Guga Millet e não menos belo o projeto gráfico de Raquel Alvarenga.

CONSERTAM-SE IMÓVEIS - Texto de Keli Freitas. Direção de Cynthia Reis. Com Alonso Zerbinato, Jarbas Albuquerque, Raquel Alvarenga e Suzana Nascimento. Sala Multiuso do Espaço Sesc. Sexta e sábado, 19h. Domingo, 18h.



   







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