terça-feira, 19 de junho de 2018

Teatro/CRÍTICA

"Nuon"

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Inesquecível encontro no Ipanema



Lionel Fischer



"Nuon é um espetáculo que fala sobre a guerra do Camboja e no entanto fala sobre todas as guerras. Todas as guerras são iguais na medida em que levam as pessoas à perda dos valores simbólicos que as estruturam enquanto indivíduos, seres civilizados e enquanto sociedade. Ainda que o assunto abordado possa sugerir uma forma épica, a encenação opta por um caminho intimista e constrói cenas que evidenciam a dor das pessoas no momento em que se dão conta de sua impotência frente ao caos gerado por decisões políticas e sociais das quais elas não participam".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza as premissas essenciais de "Nuon", que após cumprir ótimas temporadas em Curitiba e São Paulo, está em cartaz no Teatro Ipanema. Ana Rosa Tezza assina o texto e a direção do espetáculo, estando o elenco formado por Evandro Santiago (Arun, Kim, Sambath e Diretor do campo de refugiados), Helena Tezza (Bopha, Nuon e Ampeu Hengsaa), Janine de Campos (Príncipe Norodom Sihanouk, Nuon e Koylan), Marcelo Rodrigues (Tã e Mestre Viseth) e Regina Bastos (Nuon). Os atores compartilham a cena com os músicos Breno Monte Serrat e Mateus Ferrari.

Pensando nos espectadores que porventura desconheçam o terrível período vivido pelos habitantes do Camboja, explicito brevemente o trágico contexto. O que ficou conhecido como genocídio cambojano foi promovido pelo governo comunista do Khmer Vermelho, liderado por Pol Pot no Camboja, entre 1975 e 1979. Esse genocídio foi uma das conseqüências das ações tirânicas impostas no período com a aplicação de uma utopia agrária, que resultou em uma violenta repressão, marcada por trabalhos forçados, torturas e execuções. Estima-se que pelos menos 1,5 milhão de pessoas tenham morrido durante essa época nesse país asiático. 

Durante os anos em que Pol Pot esteve no poder, foi realizado o esvaziamento das cidades cambojanas a partir da migração da população para fazendas coletivas, onde era submetida a um regime de trabalho forçado. Além disso, houve o fechamento de hospitais, escolas, bibliotecas e monastérios, foram abolidos a propriedade privada e os salários, e foi iniciada um intensa perseguição contra minorias étnicas e grupos intelectualizados da sociedade.

No parágrafo inicial, como já dito extraído do release que me foi enviado, consta uma assertiva incontestável: todas as guerras são iguais. E por que são iguais, já que materializadas a partir de  diversificadas motivações? Em minha opinião, porque brutalizam o indivíduo a ponto de fazê-lo relegar a um plano secundário o que ele possui de mais essencial: sua humanidade. Em meio ao horror e ao caos que todas as guerras promovem, as pessoas quase sempre se veem obrigadas a fazer escolhas que jamais fariam em tempos de paz, posto que o essencial praticamente fica restrito à própria sobrevivência. Mas o que será que sobrevive naqueles que não são vitimados pela guerra? 

Eis uma pergunta difícil de ser respondida. É possível que muitos sucumbam à amargura e já não consigam mais encarar a vida como uma dádiva. É possível que outros encontrem forças para transcender o horror e a violência de que foram vítimas e sejam capazes de valorizar ainda mais o ato de existir. Seja como for, ninguém passa impune por uma guerra, essa execrável forma que os homens encontraram não para resolver conflitos, mas para exacerbá-los e assim inviabilizar qualquer possibilidade de entendimento. 

Já me desculpando pelas conjecturas acima, talvez um tanto longas, vamos ao que está acontecendo no Teatro Ipanema. Em primeiro lugar, o espectador é brindado com um texto belíssimo, impregnado de dor e poesia, habitado por reflexões da mais alta pertinência sobre os temas abordados. E quanto à dinâmica cênica, estruturada a partir de uma estética oriental, esta é simplesmente deslumbrante, tanto no que concerne à expressividade e originalidade das marcações como no tocante à precisão dos tempos rítmicos. Sob todos os pontos de vista, o público carioca está tendo a rara oportunidade de viver um momento teatral inesquecível. 

Com relação ao elenco, constitui realmente uma dádiva assistir a performance de intérpretes tão talentosos, que não merecem qualquer reparo, seja em termos vocais ou corporais. E mais: que evidenciam uma inteligência cênica e uma contracena só passíveis de existir quando todos confiam inteiramente uns nos outros e no projeto em que estão inseridos. A todos, portanto, parabenizo com o mesmo entusiasmo e a todos agradeço o maravilhoso encontro que me proporcionaram. 

O mesmo agradecimento estendo aos músicos Breno Monte Serrat e a Mateus Ferrari, pela perícia e sensibilidade com que tocam vários instrumentos - Ferrari é também responsável pela belíssima composição musical, fundamental para o fortalecimento dos diversificados climas emocionais em jogo. Quanto a Eduardo Giacomini (figurino), Fernando Marés (cenografia), Beto Bruel e Rodrigo Ziolkowski (iluminação) e Maria Adélia (plástica do personagem e máscaras), todos assinam trabalhos de altíssima qualidade. Finalmente, gostaria de destacar a precisão e sensibilidade de Jean Carlos Sanchez na operação de luz.

NUON - Texto e direção de Ana Rosa Tezza. Com Evandro Santiago, Helena Tezza, Janine de Campos, Marcelo Rodrigues e Regina Bastos. Teatro Ipanema. Sábado, domingo e segunda às 20h30.    








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