segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Teatro/CRÍTICA

"GALÁXIAS I: Todo esse céu é um deserto de corações pulverizados"

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Bela reflexão sobre o sentido da vida


Lionel Fischer


"Ao mesclar referências de ficção científica, de registros documentais e TEDs de ciência e tecnologia, o espetáculo acompanha as investigações distópicas de um professor-pensador que busca desvendar, através de uma série de cartas, palavras e vídeos, o enigma da existência da vida na Terra, assim como uma possível mensagem que o Sistema Solar teria enviado a toda a Humanidade. Em paralelo às buscas do professor, há o cotidiano do irmãos JP e Zooey, que também se relacionam com as buscas e descobertas desse pensador, refletem sobre as condições da vida na Terra e buscam, cada um ao seu modo, encontrar - ou inventar -sentidos que sustentem as suas próprias existências".

Extraído do ótimo release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o contexto em que se dá "GALÁXIAS: Todo esse céu é um deserto de corações pulverizados", baseada nos textos "Sol artificial", "Os eletrocutados" e "Floresceram os neons", do argentino J. P. Zooey, e em outros de Luiz Felipe Reis. Este responde pela direção e dramaturgia, sendo que a última contou com a colaboração de Ciro Sales, Fernanda Bond e Julia Lund. Mais recente trabalho da Polifônica Cia., o espetáculo está em cartaz no Mezanino do Sesc Copacabana. No elenco, Leo Wainer (professor), JP (escritor) e Julia Lund (atriz) - os dois últimos são casados.

Antes de iniciar a análise do presente espetáculo, permito-me explicitar dois momentos curiosos. O primeiro: tão logo me acomodei no lugar que escolhi, e pelo qual nutro particular afeto - a primeira cadeira da última fila -, o diretor Luiz Felipe Reis me sugeriu que sentasse "um pouco mais perto". Assim o fiz. Uma vez acomodado um pouco mais perto, ao contemplar o cenário meu olhar foi magnetizado por um cartaz de "A classe morta", espetáculo dirigido pelo polonês Tadeuz Kantor com o grupo Cricot 2. E isso me causou inesperada e emocionante regressão.

Estava em Paris, em 1977 (Meu Deus, como o tempo passa!), estudando improvisação com o alemão Wolfrang Mëring. Eis que se inicia o Festival de Outono, que me propiciou entrar em contato com dois gênios e as montagens que ali exibiram - Eugenio Barba ("O livro de danças") e Tadeuz Kantor ("A classe morta"). E como a vida às vezes se revela extremamente generosa, tive o privilégio adicional de ser aceito em seminários capitaneados pelos dois mestres. E, finalizando esta breve digressão, gostaria de dizer que ambos os espetáculos se inserem entre os melhores que já assisti. Mas voltemos ao Mezanino.

Qual seria a razão de constar da cenografia o cartaz de "A classe morta"?. Uma delas seria meramente prosaica: a personagem de Julia Lund é atriz e ela pode ter assistido a uma montagem da peça, ou tê-la visto em vídeo etc. No entanto, creio haver uma outra possibilidade. Dentre os muitos sentimentos em mim gerados pelo espetáculo de Kantor, talvez o principal tenha sido uma terrível sensação de inadequação, de impossibilidade de encontrar algum sentido para o ato de existir, ainda que recorrendo a conjecturas metafísicas, filosóficas ou religiosas. E aqui, ao menos em alguma medida, se dá algo parecido.

Se por um lado o professor busca desvendar o enigma da existência da vida na Terra, apoiando-se em uma possível mensagem do Sistema Solar, os dois outros personagens também tentam encontrar razões para o ato de existir, só que suas angústias estão mais atreladas ao real da vida. Ou seja: todos padecem de uma desesperadora ânsia que talvez jamais possa vir a ser saciada. No entanto, não renunciam a ela, postura que me parece extremamente salutar, posto que não existe nenhuma possibilidade de transformação que não tenha em sua origem um profundo desconforto.

Não posso precisar quais os textos do autor argentino e quais os de autoria de Luiz Felipe Reis. Mas isso é o que menos importa, já que o que nos é ofertado é de excelente nível, tanto nas passagens em que o casal dialoga quanto naquelas em que, isoladamente, expõem o que talvez possa ser definido como uma espécie de vômito existencial. A mesma e dilacerada contundência se faz presente nos solilóquios do professor, cuja comovente angústia me fez torcer  para que encontrasse a tão almejada resposta que buscava.

Com relação ao espetáculo, consta do release - e a cena confirma - que o diretor empreendeu uma pesquisa estética sobre o conceito de "polifonia cênica", que busca estabelecer uma relação não hierárquica entre diferentes formas de arte na constituição do fazer teatral. E as relações aqui estabelecidas entre dramaturgia, concerto, instalações de vídeo e luz colaboram decisivamente para o fortalecimento dos múltiplos climas emocionais em jogo, cabendo destacar que, exceção feita à deliciosa e bem humorada passagem em que a atriz entra em cena vestida de macaco vinda de um teste para um comercial, todas as demais, ainda que em graus variados, geram um permanente desconforto e nos levam a refletir sobre o que estamos fazendo com nossas vidas e com a vida deste curioso planeta que habitamos.

No tocante ao elenco, Leo Wainer exibe uma das melhores performances de sua carreira, extraindo do professor todas as possibilidades do excelente e complexo personagem. Ciro Sales também convence plenamente na pele de JP, tendo apenas que tomar um certo cuidado nas passagens mais intimistas, quando seu tom de voz se torna quase inaudível. No papel da atriz, Julia Lund evidencia mais uma vez seus notáveis recursos expressivos, cabendo também ressaltar sua visceral capacidade de entrega. Trata-se, sem dúvida, de uma das mais talentosas atrizes de sua geração.

Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo as colaborações de Ciro Sales, Fernanda Bond e Julia Lund (dramaturgia), Luiz Felipe Reis (tradução e adaptação dos originais), Lucas van Hombeeck (tradução adicional), Julio Parente e Reis (cenografia), Corja (projeções e iluminação), Pedro Sodré (direção musical), Sodré, Rogério da Costa Jr. e Rudah (composição, produção musical e banda), Luiza Mitidieri (figurinos), Bruno Drolshagen (design gráfico) e Gabriela Gaia Meirelles e Frederico Santiago (colaboração em vídeo). 

GALÁXIAS I: Todo esse céu é um deserto de corações pulverizados". Dramaturgia e direção de Luiz Felipe Reis. Com Leo Wainer, Ciro Sales e Julia Lund. Mezanino do Sesc Copacabana. Quinta a domingo, 20h.



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