13/09/2013 12h47 - Atualizado em 17/09/2013 20h31
Artigo: Paulo de Moraes fala sobre a
trajetória da Armazém Cia de Teatro
Construindo uma lógica interna
Por Globo Teatro publicada em 09/04/2012
Em 2012, o Armazém Companhia de Teatro completa 25 anos de trabalho.
Começamos em Londrina, no interior do Paraná, em 1987, e nos transferimos para
o Rio de Janeiro no início de 1998. E é curioso como essas efemérides sempre
nos levam a revisitar nosso baú de memórias. Se fosse contar a história do
Armazém, como num livro de memórias, talvez um capítulo tivesse que falar sobre
os encontros que definiram o nosso caminho. O encontro com a obra de Oswald de
Andrade, com a encenação e os atores do grupo peruano/alemão La Otra Orilla,
com a música de Arrigo Barnabé, com as HQs de Will Eisner, com Paulo Autran e
suas histórias e percepção do trabalho do ator.
Um outro capítulo ainda precisaria ser reservado para relatar as
atividades paralelas que fizemos para conseguir manter o grupo: animação de
festas, apresentações em shoppings, bares, supermercados, espetáculos
infantis, espetáculos sobre literatura em escolas, organização de shows,
desfiles de moda ou festas de fim de ano em nossos espaços. Tudo para conseguir
manter acesa a possibilidade de viver do ofício.
Mais de um capítulo teria que ser escrito sobre as viagens intermináveis
pelo interior de Paraná e São Paulo, quase sempre em micro-ônibus fretados
caindo aos pedaços, ou todo mundo apertado dentro de um ou dois carros viajando
de volta pra casa depois das apresentações pra economizar com hotel, ou ainda
quando voltamos de uma apresentação em Piracicaba (depois de um final de semana
apresentando dois espetáculos, sem nenhum dinheiro no bolso), numa pequena
caminhonete Fiat, com três de nós na boleia e mais três deitados junto com o
cenário na carroceria, mortos de medo de uma blitz policial.
Houve alguns momentos em que pareceu absoluta insanidade a determinação,
que alguns de nós tínhamos, de fazer daquele grupo de teatro não só um projeto
artístico, mas também um projeto de vida. Apesar de Londrina ter, nas décadas
de 80/90, uma vida cultural considerada rica, viver de teatro era difícil
demais. Muita gente boa ficou pelo caminho. Outros insistiram o quanto puderam.
Éramos um coletivo que moldava corpo, voz e pensamento, trancados numa sala de
ensaios durante horas, mas que também tinha que funcionar como produtor e
divulgador do próprio trabalho.
Quando – depois de seis anos de grupo – nós apresentávamos “A Ratoeira é
o Gato”, correndo de cidade em cidade pelo interior, havia o desejo de
apresentar o trabalho no Rio de Janeiro, já que (a gente entendia assim) havia
uma importância no espetáculo e uma maturidade na busca artística da companhia
que não podiam ser ignorados. Fiz uma viagem ao Rio, com um dossiê sobre a
montagem e algumas fitas VHS debaixo do braço, para tentar a tão sonhada
temporada carioca. Visitei todos os teatros públicos da cidade, tentando
conversar com os diretores artísticos e mostrar o trabalho. Fiquei dias na
cidade, mas não consegui ser recebido por ninguém. O dinheiro estava no fim
(sempre estava no fim), precisava voltar à Londrina. Como ninguém me recebia mesmo,
resolvi fazer uma carta razoavelmente agressiva e arrogante, falando maravilhas
do espetáculo e do grupo, e do equívoco que seria não nos oferecer um espaço.
Queria ver se assim, conseguia convencer alguém a, pelo menos, assistir aquela
fita com 15 minutos da peça. Nunca soube se a carta teve alguma importância,
mas o fato é que Lolly Nunes – que na época dirigia o Teatro Gláucio Gil –
gentilmente convidou o grupo para a primeira temporada no Rio de Janeiro.
Escrevo tudo isso de uma forma meio desencontrada, porque percebo como é
difícil reunir num pequeno texto 25 anos de trabalho. Fica uma vontade enorme
de que as pessoas realmente entendam como tudo aconteceu. E uma sensação
nítida, transparente, de que não tem como isso acontecer. Então, talvez, o que
importe sejam alguns fragmentos, alguns fotogramas da história de um grupo que
tinha desde seu início uma grande aspiração: reencontrar o poder simbólico que
o teatro teve em outros tempos.
No início de tudo, contaminados pela agitação cultural que tomava conta
de Londrina – e que produzia qualidade e vanguarda artística em teatro, música
e poesia –, éramos um bando de “canibais contentes”, devorando com imensa
alegria e curiosidade todas as informações que eram postas à mesa.
Absolutamente influenciados pela obra de Oswald de Andrade, queríamos criar um
universo teatral particular a partir de um cruzamento de referências que ia das
HQs a Shakespeare, dos filmes de Kurosawa à literatura de Guimarães Rosa, do
teatro de Beckett à poesia de Fernando Pessoa. A ideia era “misturar tudo num
caldeirão e ver no que vai dar”. Havia um mundo que queríamos refletir, mas a
forma de refletir este mundo (e sobre este mundo) tinha para nós a mesma
importância. Havia uma necessidade de que forma e conteúdo fossem uma coisa só
(o que pressupõe certa arrogância, eu sei). Portanto, para nós, o importante
não era tanto o gênero do teatro que fazíamos, mas a aplicação de um estilo
próprio. E este estilo, a gente sabia, só seria construído com o tempo, com um
espetáculo após o outro.
Quando ocupamos nossa primeira sede, um barracão de grandes proporções
(onde antes havia funcionado, curiosamente, um depósito de cerveja, uma rinha
de briga de galo e um rinque de patinação), a questão do espaço cênico começou
a ganhar mais importância. Fomos surpreendidos pelo espaço, pela possibilidade
de sair do palco tradicional, pelas novas formas que a gente percebeu que
poderiam vir dali e pelo jeito diferente de se relacionar com o público que o
espaço impunha. Isso criou um verdadeiro impacto para nós. E isso refletia no
resultado do nosso trabalho.
Quando saímos de Londrina e nos encontramos na Fundição Progresso, no
Rio, o impacto foi parecido. Isso fez surgir espetáculos como “Alice
Através do Espelho”, “Da Arte de Subir em Telhados”, “Pessoas Invisíveis”,
“Inveja dos Anjos”. A linguagem que a companhia foi construindo durante esse
tempo não pode ser considerada estática, ao contrário, é permanentemente
afetada pela entrada ou saída de um novo companheiro. Se quando fizemos “A
Ratoeira é o Gato” eram seis atores com um trabalho corporal muito homogêneo –
talhado durante meses para retratar a temática da violência –, hoje a
diversidade é mais nítida, sem que isso esvazie a premissa na qual o grupo
sempre acreditou, de um “ator criador”, que vá em busca de seus personagens e
que não seja um mero repetidor de movimentos.
Não é viável que um ator com poucos anos na companhia abarque a história
e as referências todas que vieram antes dele, mas é possível que trabalhe a
partir dos mesmos princípios e contribua dando a sua leitura disso. Assim, a
linguagem se desenvolve. Assim, é possível ainda trabalhar muitos anos, sem
cair numa fórmula pronta, mas sem abrir mão do que é princípio e síntese.
Que o Armazém tenha vida longa!
*Paulo de Moraes é diretor artístico do Armazém Companhia de Teatro
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