GÊNIO E GÊNIOS – UM ESTUDO MAGISTRAL DE HAROLD BLOOM
O gênio Harold Bloom, professor universitário, teórico e crítico literário (New York, 1930.)
Um sefirah faz parte do conjunto dos sefirot. Estes, por sua vez, segundo Bloom “constituem o centro da Cabala, pois pretendem representar a interioridade de Deus, os segredos do caráter e da personalidade divina. São atributos do gênio de Deus, em todos os sentidos em que o termo “gênio” é empregado neste livro”.
O livro é todo ele cabalístico. Assim, o próprio autor define Lustro, que na Cabala possui um sentido especial: “Lustros, nesse sentido, refere-se ao brilho decorrente da luz refletida, o lustre, o esplendor de um gênio refletido em outro...” (p. 19).
Aqui seguem os 20 Lustros com seus correspondentes sefirah e os literatos neles incluídos (cinco por Lustro):
Lustro I: Keter - Shakespeare, Cervantes, Montaigne, Milton, Tolstói.
Poder-se-ia perguntar por que esses e não outros os literatos listados? Porém, temos de reconhecer que nenhuma lista com o número que fosse de autores iria contentar a todos. Esta parece incluir uma boa e criteriosa seleção, própria do nome do livro e do próprio autor, que é também um gênio. Saudado pelos grandes periódicos, Harold Bloom é: “Um gigante entre os críticos... Seu entusiasmo pela literatura é contagiante” (New York Times Sunday Magazine); “Um mestre do entretenimento” (Newsweek); “Bloom é simplesmente um sacerdote da grandeza humana” (The Iris Time).
Felizmente, nesta seleção de autores, a Literatura Brasileira conta com um representante, e, merecidamente, ele é Machado de Assis. Não poderia aí estar também um poeta, como, por exemplo, Carlos Drummond de Andrade? A nossa coirmã Literatura Portuguesa foi um pouco mais bem aquinhoada (3 nomes): Camões, Fernando Pessoa, Eça de Queirós. E por onde andará Padre Vieira, que não aparece nem na Portuguesa, nem na Brasileira?
Já que contamos com Machado de Assis incluído no Lustro XVII, regido pelo sefirah Yesod, vamos nos fixar neste grupo e especialmente no autor brasileiro. O nosso representante está ao lado do francês Flaubert, do português Eça de Queirós, do argentino descendente de portugueses e ingleses Borges, e do cubano-italiano Italo Calvino.
Por estilo de época, Flaubert foi o único verdadeiramente representante do Realismo. Eça de Queiros, embora também realista, é bastante influenciado inicialmente pelo Romantismo e depois pelo Impressionismo. Machado de Assis é um escritor que, embora classificado de realista, pouco tem desse movimento e está acima de qualquer classificação literária. Por isso, tem sido considerado um verdadeiro precursor de determinado tipo de Modernismo e mesmo de Pós-Modernismo, aqueles da introspecção, do psicologismo, do Existencialismo e, portanto, anunciador e muito próximo de autores muito recentes, como o português Virgílio Ferreira e a brasileira Clarice Lispector. Borges, por outro lado, pertence ao que se convencionou chamar de Realismo Mágico, Realismo Fantástico, ou, ainda, Realismo Maravilhoso, frequente em grande parte da literatura hispano-americana do séc. XX. Finalmente, temos Italo Calvino, fiel discípulo de Borges e de suas idéias, e também ele um seguidor do Realismo Fantástico e que segue rumo a uma literatura do absurdo.
Machado de Assis, como os outros do Lustro XVII, está sob o signo de Yesod, o safirah que, em tradução livre, segundo o autor, significa “fundação” e encerra dois significados afins: “o impulso sexual masculino e o mistério do equilíbrio entre o feminino e o masculino, nos processos naturais”. É também “a base da vida apaixonada”.
Da obra de Machado de Assis, depois de transcrever textos de Memórias Póstumas de Brás Cubas, disse Bloom: “O verdadeiro tema de Machado de Assis é a nossa mortalidade, o que não constitui assunto para descaso e gracejo; no caso de Memórias Póstumas de Brás Cubas, o tema enseja uma perspectiva, ao mesmo tempo, distanciada e hilária”.
Sobre o escritor Machado de Assis, assim se referiu o crítico Bloom: “O gênio da ironia propiciou-nos poucos exemplos à altura do escritor afro-brasileiro Machado de Assis, a meu ver o maior literato negro surgido até o presente”. E para concluir o seu parecer, brinca, como brincaria o próprio autor de Memórias Póstumas: “Machado de Assis teria desprezado a minha observação, como mais uma piada digna de Tristram Shandy”.
Sterne, citado por Machado de Assis, emprega uma linguagem constantemente carregada de ironia. Influenciado pelo modo de narrar do escritor irlandês e de um outro, o autor sardo de Viagem à Roda do meu Quarto, Machado de Assis os cita no início de Memórias Póstumas de Brás Cubas: “Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio”.
Foi assim que Machado de Assis no prólogo da 3.ª edição deMemórias Póstumas de Brás Cubas, acrescentou mais um “viajante”, o português Almeida Garrett, de Viagens na Minha Terra. Diz Machado que todos esses realizavam determinado tipo de viagem: “Xavier de Maistre à roda do quarto, Garrett na terra dele, Sterne na terra dos outros. De Brás Cubas se pode dizer que viajou à roda da vida”.
I - A OBRA
Um livro decididamente de peso nos dois sentidos é Gênio: os 100 autores mais criativos da História da Literatura, de Harold Bloom, publicado em 2002, pela Objetiva. Em mais de 800 páginas o autor enumera, segundo ele, os mais importantes escritores e poetas da Literatura Universal. Seria difícil tentar transcrever apenas alguns nomes, porque realmente todos são bem conhecidos e merecidamente famosos. A única solução é listá-los todos por blocos de Lustros, como fez o autor.
(Observação, aqui, como explica Bloom, Lustro não significa apenas espaço de cinco anos. Como na obra cada conjunto de dez se encontra regido por um sefirah, o Lustro, ou seja, a metade desse espaço, também está regido por esse mesmo sefirah). Portanto, são dez os sefirah, mas vinte os Lustros. Para cada dois Lustros de um mesmo conjunto de dez há um mesmo safirah.
Um sefirah faz parte do conjunto dos sefirot. Estes, por sua vez, segundo Bloom “constituem o centro da Cabala, pois pretendem representar a interioridade de Deus, os segredos do caráter e da personalidade divina. São atributos do gênio de Deus, em todos os sentidos em que o termo “gênio” é empregado neste livro”.
O livro é todo ele cabalístico. Assim, o próprio autor define Lustro, que na Cabala possui um sentido especial: “Lustros, nesse sentido, refere-se ao brilho decorrente da luz refletida, o lustre, o esplendor de um gênio refletido em outro...” (p. 19).
Aqui seguem os 20 Lustros com seus correspondentes sefirah e os literatos neles incluídos (cinco por Lustro):
Lustro I: Keter - Shakespeare, Cervantes, Montaigne, Milton, Tolstói.
Lustro II: idem - Lucrécio, Virgílio, Santo Agostinho, Dante, Chaucer.
Lustro III: Hokmah - O Javista, Sócrates, Platão, São Paulo, Maomé.
Lustro IV: idem - Samuel Johnson, James Boswell, Goethe, Freud, Thomas Mann.
Lustro V: Binah -Nierzsche, Kierkegaard, Kafka, Proust, Samuel Beckett.
Lustro VI: idem - Molière, Ibsen, Tchekhov, Oscar Wilde, Pirandello.
Lustro VII: Hesed - John Donne, Pope, Jonathan Swift, Jane Austen, Lady Murasaki.
Lustro VIII: idem - Nathaniel Hawthorne, Melville, Charlotte Brame, Emily Jane Brame, Virginia Wolf.
Lustro IX: Din - Emerson, Emily Dickinson, Robert Frast, Wallace Stevens, T. S. Eliot.
Lustro X: idem - Wordsworth, Shelley, Keats, Leopardi, Tennyson.
Lustro XI: Tiferet - Swinburne, Gabriel Rossetti, Christina Rossetti, Walter Pater, Hofmannsthal.
Lustro XII: idem - Victor Hugo, Gérard de Nerval, Baudelaire, Rimbaud, Paul Valéry.
Lustro XIII: Nezat - Homero, Camões, James Joyce, Carpentier, Octavio Paz.
Lustro XIV: idem - Stendhal, Mark Twain, Faulkner, Hemingway, Flannery O'Connor.
Lustro XV: Hod - Walt Whitman, Fernando Pessoa, Hart Crane, García Lorca, Luis Cernuda.
Lustro XVI: idem - Eliot, Willa Cather, Edith Wharton, F. Scott Fitzgerald, Iris Murdoch.
Lustro XVII: Yesod - Flaubert, Eça de Queirós, Machado de Assis, Borges, Italo Calvino.
Lustro XVIII: idem - William Blake, D. H. Lawrence, Tennessee Williams, Rilke, Eugenio Montale.
Lustro XVIII: idem - William Blake, D. H. Lawrence, Tennessee Williams, Rilke, Eugenio Montale.
Lustro XIX: Malkhut - Balzac, Lewis Carroll, Henry James, Robert Browl, Yeats.
Lustro XX: idem - Dickens, Dostoievski, Isaac Babei, Paul Celan; Ellison.
II - COMENTÁRIOS:
1. Há listas e listas
Poder-se-ia perguntar por que esses e não outros os literatos listados? Porém, temos de reconhecer que nenhuma lista com o número que fosse de autores iria contentar a todos. Esta parece incluir uma boa e criteriosa seleção, própria do nome do livro e do próprio autor, que é também um gênio. Saudado pelos grandes periódicos, Harold Bloom é: “Um gigante entre os críticos... Seu entusiasmo pela literatura é contagiante” (New York Times Sunday Magazine); “Um mestre do entretenimento” (Newsweek); “Bloom é simplesmente um sacerdote da grandeza humana” (The Iris Time).
Felizmente, nesta seleção de autores, a Literatura Brasileira conta com um representante, e, merecidamente, ele é Machado de Assis. Não poderia aí estar também um poeta, como, por exemplo, Carlos Drummond de Andrade? A nossa coirmã Literatura Portuguesa foi um pouco mais bem aquinhoada (3 nomes): Camões, Fernando Pessoa, Eça de Queirós. E por onde andará Padre Vieira, que não aparece nem na Portuguesa, nem na Brasileira?
2. O grupo do nosso representante
Já que contamos com Machado de Assis incluído no Lustro XVII, regido pelo sefirah Yesod, vamos nos fixar neste grupo e especialmente no autor brasileiro. O nosso representante está ao lado do francês Flaubert, do português Eça de Queirós, do argentino descendente de portugueses e ingleses Borges, e do cubano-italiano Italo Calvino.
Os três primeiros são fundamentalmente romancistas e contistas; o quarto, é mais especificamente contista e filósofo; e o último, além de ficcionista, também é filósofo e crítico literário.
Por estilo de época, Flaubert foi o único verdadeiramente representante do Realismo. Eça de Queiros, embora também realista, é bastante influenciado inicialmente pelo Romantismo e depois pelo Impressionismo. Machado de Assis é um escritor que, embora classificado de realista, pouco tem desse movimento e está acima de qualquer classificação literária. Por isso, tem sido considerado um verdadeiro precursor de determinado tipo de Modernismo e mesmo de Pós-Modernismo, aqueles da introspecção, do psicologismo, do Existencialismo e, portanto, anunciador e muito próximo de autores muito recentes, como o português Virgílio Ferreira e a brasileira Clarice Lispector. Borges, por outro lado, pertence ao que se convencionou chamar de Realismo Mágico, Realismo Fantástico, ou, ainda, Realismo Maravilhoso, frequente em grande parte da literatura hispano-americana do séc. XX. Finalmente, temos Italo Calvino, fiel discípulo de Borges e de suas idéias, e também ele um seguidor do Realismo Fantástico e que segue rumo a uma literatura do absurdo.
3. O nosso representante Machado de Assis
Machado de Assis, como os outros do Lustro XVII, está sob o signo de Yesod, o safirah que, em tradução livre, segundo o autor, significa “fundação” e encerra dois significados afins: “o impulso sexual masculino e o mistério do equilíbrio entre o feminino e o masculino, nos processos naturais”. É também “a base da vida apaixonada”.
De modo geral, neste Lustro XVII estão autores marcados pela ironia. Na outra metade, que corresponde ao Lustro XVIII, encontram-se autores que Bloom chama de visionários (William Blake, D. H. Lawrence, Tennessee Williams, Rilke e Eugenio Montale). Estes, porém, não serão tratados aqui.
Da obra de Machado de Assis, depois de transcrever textos de Memórias Póstumas de Brás Cubas, disse Bloom: “O verdadeiro tema de Machado de Assis é a nossa mortalidade, o que não constitui assunto para descaso e gracejo; no caso de Memórias Póstumas de Brás Cubas, o tema enseja uma perspectiva, ao mesmo tempo, distanciada e hilária”.
Sobre o escritor Machado de Assis, assim se referiu o crítico Bloom: “O gênio da ironia propiciou-nos poucos exemplos à altura do escritor afro-brasileiro Machado de Assis, a meu ver o maior literato negro surgido até o presente”. E para concluir o seu parecer, brinca, como brincaria o próprio autor de Memórias Póstumas: “Machado de Assis teria desprezado a minha observação, como mais uma piada digna de Tristram Shandy”.
Tristram Shandy é a personagem principal da obra homônima, de autoria do irlandês Laurence Sterne (1713-1768). Uma das características da personagem Shandy e da própria obra é a transcrição de documentos. Com isso, busca que o seu texto se pareça mais verdadeiro do que ficcional. Essa técnica mais tarde foi bastante empregada na ficção. Esse forma de indicação de fontes às vezes é feita de modo sério e outras vezes como se fosse uma brincadeira.
Sterne, citado por Machado de Assis, emprega uma linguagem constantemente carregada de ironia. Influenciado pelo modo de narrar do escritor irlandês e de um outro, o autor sardo de Viagem à Roda do meu Quarto, Machado de Assis os cita no início de Memórias Póstumas de Brás Cubas: “Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio”.
Paulo Sérgio Rouanet no estudo “Tempo e Espaço na Forma Shandiana: Sterne e Machado de Assis”, sobre “forma shandiana”, afirma: “Ela designa uma atitude entre libertina e sentimental, um sensualismo risonho, um humor afável e tolerante, capaz de perdoar transgressões próprias e alheias, mas também de zombar, sem excessiva malícia, dos grandes e pequenos ridículos do mundo”. Continua Rouanet: “É uma forma caracterizada 1. pela presença constante e caprichosa do narrador, ilustrada enfaticamente pelo pronome de primeira pessoa: "Eu, Brás Cubas ; 2. por uma técnica de composição difusa e livre, isto é, digressiva, fragmentária, não-discursiva; 3. pela interpenetração do riso e da melancolia; e 4. pela subjetivação radical do tempo (os paradoxos da cronologia) e do espaço (as viagens)”.
Foi assim que Machado de Assis no prólogo da 3.ª edição deMemórias Póstumas de Brás Cubas, acrescentou mais um “viajante”, o português Almeida Garrett, de Viagens na Minha Terra. Diz Machado que todos esses realizavam determinado tipo de viagem: “Xavier de Maistre à roda do quarto, Garrett na terra dele, Sterne na terra dos outros. De Brás Cubas se pode dizer que viajou à roda da vida”.
No fragmento, percebe-se a profundeza do velho Machado: o que pode ser mais profundo, difícil e irônico do que “viajar ao redor da vida”. Parafraseando Drummond - Entanto, viajamos “mal rompe a manhã”.
4. Final
Assim são os gênios. Assim é o gênio Machado de Assis. Em todos eles está representada “a interioridade de Deus”, e, portanto, em todos eles se encontra “o espírito de Deus”. E, por fim, deve-se lembrar de que "a arte aproxima o homem do seu Criador” (frase atribuída a vários pensadores do Renascimento e retomada recentemente pelo papa João Paulo II, na Carta aos Artistas): “A música, como todas as linguagens artísticas, aproxima o homem de Deus”.
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