sexta-feira, 30 de maio de 2014

Teatro/CRÍTICA

"Kalocaína"

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Instigante obra de ficção científica



Lionel Fischer



"Numa sociedade sem classes, onde não existem pobres, nem ricos, mas as funções e hierarquias sociais são bem delimitadas, olhos e ouvidos eletrônicos da polícia vigiam o interior de cada apartamento, mesmo à noite, através de raios infravermelhos. No metrô e nas ruas, cartazes advertem: 'Ninguém pode estar seguro! Quem está ao seu lado pode ser um subversivo!' Nesta atmosfera já asfixiante, Leo Kall, cientista da Cidade Química nº 4 - que acredita no Estado Mundial e em seus princípios - descobre a droga sonhada por todos os profissionais de informação: a Kalocaína".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima reproduz o contexto de "Kalocaína", em cartaz no Teatro Glaucio Gill. Baseado no romance da sueca Karin Boye (1900-1941) e contando com adaptação para o palco de Mauro Ventura Alves e Michel Bercovitch (com a colaboração do Núcleo de Investigação Cênica e Felipe Oquendo), o texto chega à cena em versão assinada por Bercovitch, estando o elenco formado por Alice Assef, Alexandre Varella, Louri Santos, Tatsu Carvalho, Tatiana Menezes, Felipe Martins e Henrique Neves.

A dita Kalocaína, mencionada no parágrafo inicial, possui a singular propriedade de fazer com que os indivíduos que a inalam digam somente a verdade. Assim, os cobaias recrutados pelos cientistas a serviço do Sistema respondem a tudo que lhes é perguntado, sem necessidade de serem submetidos às torturas de praxe em qualquer regime totalitário.

No entanto, os fatos confessados jamais são suficientemente claros para que os responsáveis pelos interrogatórios saibam exatamente o que está acontecendo. Parece estar implícito um movimento de rebelião, mas a natureza da mesma e seus objetivos permanecem obscuros. E como não existe, ao menos em princípio, nenhum cidadão acima de qualquer suspeita, a trama envereda para os escalões superiores, a partir da suposição do protagonista Leo Kall de que sua mulher, Linda, pode ter tido um caso com seu chefe, Edo Rissen, ou, pior que tudo, ainda o ame.

Como não li o original, não tenho como avaliar a presente adaptação. Mas certamente estamos diante de uma obra séria, pertinente e que certamente serviu de inspiração para outras de ficção científica, estruturadas a partir da assustadora premissa da existência de um Estado onipresente no qual o indivíduo não possui a menor relevância - seria apenas uma máquina (ou um número, como no presente caso) a serviço de uma engrenagem cuja lógica escapa à sua compreensão.

Com relação ao espetáculo, Michel Bercovitch impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico - suas marcações são secas e de fria objetividade, e uma permanente atmosfera de estranhamento permanece ao longo de todo o espetáculo. Cabe também salientar a precisão dos tempos rítmicos, assim como a expressividade obtida nos momentos em que as palavras se fazem ausentes.

No tocante ao elenco, todos os intérpretes exibem atuações seguras e evidenciam pleno conhecimento dos conteúdos em jogo. Ainda assim, me permito as seguintes observações. Quando alguns personagens são submetidos à mencionada droga, acredito que suas revelações poderiam ser expressas num tom menos coloquial, sem ser necessariamente robotizado. E acredito que Louri Santos, em seu longo monólogo final, poderia dispensar os arroubos de que lança mão, pois os mesmos minimizam a aterradora contundência das palavras que profere.

Na equipe técnica, Renato Machado assina sombria e claustrofóbica iluminação, determinante para a valorização do contexto em que se dá a ação. A mesma eficiência se faz presente na assustadoramente asséptica cenografia de Dina Salem Levy. Igualmente de bom nível a trilha sonora de Michel Bercovitch, o mesmo não podendo ser dito dos pouco expressivos figurinos de Henrique Neves e Bercovitch. Mauro Ventura responde pelas eficientes projeções, mas acredito que estas poderiam abdicar de momentos relacionados, por exemplo, ao julgamento de Nüremberg - qualquer espectador minimamente esclarecido percebe que a peça fala de um Estado totalitário, e o nazista proposto por Hitler certamente não é o único...

KALOCAÍNA - Texto de Karin Boye. Direção de Michel Bercovitch. Com Alice Assef, Alexandre Varella, Louri Santos, Tatsu Carvalho, Tatiana Menezes, Felipe Martins e Henrique neves. Teatro Glaucio Gill. Quinta se sexta, 20h.






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