Antígona de
Sófocles,
um resumo sobre o antigo
dilema da Justiça
Usando
o resumo da Antígona, o autor faz uma rápida análise das influências dos
direitos naturais no teatro grego clássico como forma de divulgação de uma
ideologia embrionária sobre os direitos humanos.
Texto enviado ao JurisWay em 13/10/2010.
“Parece preferível uma
sociedade de celerados tementes à lei, como diria Kant, a uma sociedade de
santos que viram a luz, pois estes só seguem a luz que descobriram” (ADEODATO,
2009, p.3).
No período clássico, as tragédias descreviam Thémis e Diké[1] comoconcepções
distintas de justiça, tal qual na tragédia grega de Sófocles (496–406 a.C.),
a Antígona. Esta obra-prima é o marco do surgimento da idéia
generalizada de direitos subjetivos independentes e acima do direito positivo,
que por um longo período foi difundida e posteriormente internalizada nas
constituições liberais. Drama porque estas entidades que
corporificam duas posições concebidas como legais se embatem dentro da alma
humana dos personagens da narrativa e os obrigam a tomar uma posição
excludente. De logo entenda-se Thémis, a partir do condensado dessa
trágica história e de alguns precedentes culturais, como um conjunto de leis
divinas, entendidas também como “naturais”, e Diké como um
conjunto de leis humanas, e ainda, segundo aquele imaginário grego, a opção por
uma poderia constituir a exclusão da outra. Atualmente, contudo, ainda que por
um longo período o jusnaturalismo tenha seguido distante do legalismo, a
evolução do direito proporcionou um encontro menos subvertido para ambos por
meio de ponderação e tolerância, efetivando complementarmente, a dignidade
humana.
Embora a essência legal observada se concentre, em sua
plenitude, nas linhas da Antígona, o relato histórico, se é que se
pode chamar de história a descrição de “fatos” dentro de uma obra literária
escrita para o teatro grego, se inicia na narrativa de outra obra, Édipo
Rei. Este drama será vivido por Antígona, filha de Jocasta com
Édipo, seu pai e irmão, sendo neta do amaldiçoado transgressor Laio, filho de
Lábdaco. Vale ressaltar como curiosidade que a Antígona foi escrita em 444
a.C., logo, antes de Édipo Rei, que foi escrito em 430 a.C. (JEBBS, 2008, p.
17).
Édipo foi um típico herói trágico. Sendo ingênuo acerca de
sua realidade e indefeso diante de seu destino, sobre ele pairou o justificável
e legítimo argumento de ignorar a verdade sobre suas origens e nada poder fazer
para fugir de seu inescapável destino, premissa cultural da obra, que foi
profetizado pelo oráculo de Apolo em Delfos, qual seja, o de matar seu pai e
desposar sua mãe, incorrendo numa irreversível transgressão à ordem natural e
trazendo sobre si um pecado familiar e sua conseqüente maldição.
Percebe-se, portanto, que, naquela visão grega, tais
transgressões infringiam leis naturalmente impostas pela divindade no coração
humano. Daí, tais ações foram consideradas verdadeiras aberrações já que, uma vez
desposando a própria mãe, tornar-se-ia irmão e pai de seus filhos, como
veio a acontecer, fusão de posições inconcebíveis para a natureza. O desfecho
de tal tragédia foi que Édipo não suportou a revelação de tamanha desgraça e
diante da imensidão de seu infortúnio, estando Jocasta também morta, furou os
próprios olhos e retirou-se da cidade (SOFOCLES, 2008, p. 70). Antígona o
amparou em todo o seu exílio de Tebas até a sua morte, como filha passional,
solidária e companheira que sempre foi.
Porém, Antígona possuía mais uma irmã, a ponderada e razoável
Ismênia, e ainda dois outros irmãos: Polinice e Eteócles. Estes últimos foram
amaldiçoados pelo próprio pai que rejeitaram, Édipo, e destinados a morrer um
pelas mãos do outro, o que não deixou de ocorrer, já que se rivalizavam pela
posse do trono vazio: Etéocles, a favor do tio Creonte, e Polínice, pleiteando
reaver para si o trono que fora de seu pai, colocou-se contra Tebas. O
fratricídio foi sangrento e não outro o resultado, extinguiram-se reciprocamente.
Com o trono vazio e sem os sucessores naturais para
pleiteá-lo, Creonte se impôs como déspota de Tebas, e personificando a tirania,
se apropriou, em benefício próprio, da Diké, as leis
escritas, para se manter no poder. Por elas, prestou honras
fúnebres a Etéocles, seu aliado, mas proibiu, sob pena de morte, que o corpo de
Polínice fosse sepultado, obrigando os restos daquele que selou aliança com os
argivos para conquistar o poder em sua terra a ficarem expostos às aves
carniceiras, justificando e legitimando seus atos, repita-se, pelo apego férreo
à "manipulável" lei dos homens (SÓFOCLES, 2008, p. 89).
Antígona, com seu comovente amor fraternal, considerou
injusta tal proibição e decidiu prestar a seu irmão o piedoso serviço de
enterrá-lo, uma vez que, de acordo com os preceitos olímpicos, muito mais
importantes que a morte em si, era a honra da sepultura, o justo merecimento
de, tendo sido benquisto neste mundo, obter a glória de ser bem recebido no
outro. O direito à sepultura consistia na certeza de poder ter um enterro
condigno, pagar a moeda ao barqueiro Aqueronte, fazer a travessia pelo Léthe, o
rio do esquecimento, e poder chegar ao insondável reino dos mortos, onde Plutão
e Perséfone imperavam, o misterioso Hades. Esse foi o heroísmo funesto de Antígona,
pois, uma vez tendo sido descoberta sua desobediência, o rei Creonte a condenou
a ser emparedada viva em uma caverna. As outras implicações da
teimosia e apego do soberano à sua lei também foram trágicas. Mesmo
cedendo ao fim, foi tarde demais, a heroína se enforcou. Seu filho Hêmon,
apaixonado por ela, também se suicidou, e até Eurídice, mãe de Hêmon e sua
esposa, inconformada com a morte do filho, igualmente deu cabo de sua vida
(SÓFOCLES, 2008, p. 120).
Instaurou-se o conflito quando se relevou o telos (propósito,
finalidade) da lei em prol da letra que beneficiava quem a aplicou. Confronto
entre Thémis e Diké, a lei dos deuses e a lei
dos homens, que só ocorreria quando esta última se impusesse desconsiderando a
primeira, quando os preceitos humanos desconsiderassem os divinos,
porquanto Thémis, imperativa, não violaria nem comprometeria a
natureza do homem. Portanto foi Antígona mesma, passional e abstraída do
torporoso poder, que ao refutar, em vão, a acusação de desobediência, selou seu
destino:
CREONTE – [...] tiveste a
ousadia de desobedecer a essa determinação?
ANTÍGONA – Sim, pois não
foi decisão de Zeus; e a Justiça [Diké], a deusa que habita com
as divindades subterrâneas, jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos;
tampouco acredito que tua proclamação tenha legitimidade para conferir a um
mortal o poder de infringir as leis divinas [Thémis], nunca escritas, porém
irrevogáveis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! E
ninguém pode dizer desde quando vigoram! Decretos como os que proclamaste, eu,
que não temo o poder de homem algum, posso violar sem merecer a punição dos
deuses! (SÓFOCLES, 2008, p. 96).
Certamente foi uma posição particular e com fundamento num
argumento abolido pela maioria das leis dos Estados modernos, a
auto-tutela. Sobre as conseqüências dessa postura é que, houve e
sempre haverá questionamentos. Aqui, o dilema estava dissociado entre duas
personagens, mas nos indivíduos, e em determinados sistemas legais, eles se
embatem numa mesma entidade. Portanto, questões sobre os limites da
autoridade do Estado, do direito positivo, sobre as leis do direito natural, as
leis não escritas, não são um mero posicionamento sobre o que é certo ou
errado, justo ou injusto. Ou seja, perguntar se Polínice deveria lutar pelo
trono deixado por seu pai, na sucessão natural, algo seu por direito divino (Thémis)
como acreditava, ou Creonte que agora rei, julgasse que devia aplicar suas leis
(Diké) a qualquer inimigo de Tebas. No caso, os parâmetros retóricos são
distintos e não fazem parte do mesmo silogismo, daí os resultados conflitantes
e inconciliáveis. Contudo, aí surgiu claramente a idéia generalizada de
direitos subjetivos independentes e acima do direito positivo que perdurou por
eras. Aceitando-se esse conceito, de fato, qualquer lado que se escolhesse
geraria a exclusão do outro. Daí a importância histórica da superação do
binômio universalidade-relatividade tão crucial para entender que, neste
dilema, poderia haver alternativas não excludentes, não desenvolvidas aqui.
Porém, Antígona não tinha dúvidas sobre qual lei seguir. Como
qualquer herói do teatro grego, ela dominou o phobos, o medo.
Destemida, ousada e indomável, atreveu-se a desafiar a tirania de seu tio
Creonte e, mesmo ciente da pena de morte que seu ato implicaria, recusou-se em
obedecer a leis civis, por achá-las inferiores aos desígnios divinos. Note-se
que ela descreveu as primeiras obras de Creonte do início do drama como
advindas de Thémis, embora, parciais: “[Creonte] sepultou a Etéocles,
com todos os ritos que a justiça [Thémis] recomenda, garantindo-lhe
assim um lugar condigno no Hades”, ação, que ela considerou, sagrada, pois
“nenhum dos dois [Creonte e seu decreto] é mais forte do que o respeito a um
costume sagrado” (SÓFOCLES, 2008, p. 84-85). Isso lhe deu mais força. Os
interesses pessoais e sentimentos egoístas de Creonte que pensaram limitar o
que era superior e mais amplo, não a afetaram. Pelo contrário, a
trama demonstraria quão acertada foi a convicção que tomou. O convencimento de
Creonte foi temporário, pois, embora inicialmente nem mesmo as palavras de seu
filho, Hêmon, com insistentes tentativas, o tivessem dissuadido, ao final, ele
mudou:
CREONTE – Miserável! O que
te leva a divergir tanto do teu pai?
HÊMON – É que te vejo
violar os ditames da Justiça!
CREONTE – E o que há de
injusto em sustentar minha autoridade?
HÊMON – Não é vilipendiando
os preceitos divinos que se sustenta a autoridade! (SÓFOCLES, 2008, p. 106).
Em adição a isso, ao sentimento de injustiça sobre aquele
decreto humano, outros personagens se manifestaram na tentativa de convencer o
rei; o Corifeu afirmou: “Eu, como muitos, sinto grande revolta contra esse
decreto”, Antígona agonizou: “Vede como, ignoradas as súplicas dos meus amigos,
iníquas leis me levam a um covil de pedra, a um túmulo de nova espécie!”
(SÓFOCLES, 2008, p. 108-109). Mas, tudo continuou o mesmo até que o Destino,
como representante da natureza, resolveu intervir. O velho adivinho cego
Tirésias, usando de seus sortilégios, conseguiu impingir um pouco de bom senso,
não sem ameaças místicas, ao rei tirano: “Errar é coisa comum entre os humanos,
mas se o homem sensato comete uma falta, é feliz quando pode reparar o mal
feito sem enrijecer em sua teimosia, pois esta gera a imprudência” (SÓFOCLES,
2008, p. 113).
Os interesses de Creonte mudaram e o custo de sua decisão e
decreto agora o atingiram pessoal e subjetivamente. O destino foi
implacável e como característica de uma tragédia de cujo desfecho nenhum bem se
pode esperar, pois nela não existem escritas certas por linhas tortas, “um erro
traz sempre um erro. Desafiado o destino, tudo será destino.” (SÓFOCLES, 2008,
p. 121). Porém Antígona, que se posicionou sobre o que considerou superior,
apesar do alto preço pago, despertou em todas as platéias, pelo menos, a
ponderação sobre a legitimidade das leis dos homens.
Assim, a partir de Sófocles, o mito de Antígona ganhou em
várias expressões culturais, o simbolismo de uma heroína, uma mulher capaz de
assumir os valores éticos mais elevados, mesmo com o risco de sua própria
vida. Posteriormente, também, a narrativa tornou-se um símbolo de
resistência às tiranias por representar a contradição que condenava a sociedade
grega à morte mediante a tensão entre os valores morais da cidade-estado e os
valores morais “naturais”. Contudo, foi no século XIX que ela ganhou uma
interpretação abertamente política, no conflito entre leis escritas e não
escritas, ou entre o indivíduo e o poder absoluto (JEBBS, 2008, p. 127).
Porém, como nenhum poder é absoluto permanentemente e o
indivíduo condicionou-se a uma medida de submissão ao Estado, tanto um como o
outro, para a plena eficácia da coexistência de ambos, tiveram que tomar como
imperativo um alto grau de ponderação e tolerância, a fim de que não se cresse
cegamente que qualquer conceito de fundamento ético, seja envolvendo direitos
subjetivos, direitos humanos ou a dignidade da pessoa humana e que estivessem
fora do direito positivo, por um lado, fossem considerados ilusórios e
disfuncionais. Por outro, apesar daquilo que se percebe atualmente
da leitura da Antígona e seus resultados, não se deveria
lastrear qualquer intolerância no também ambíguo conceito de que o direito
natural é o direito do “bem”, pois insurgido contra o direito positivo,
enquanto este é o direito submisso ao “mal”, aos poderosos de plantão
(ADEODATO, 2009, p.3).
Logo, coube ao direito positivado, absorver os conceitos
subjetivos, ditos naturais, para dirimir qualquer conflito intelectual emanado
da sociedade e estabelecer a base justa de sua legitimidade, pois as
particularidades que porventura existam entre os diversos direitos não devem
ser concebidas como antagônicas e excludentes, mas complementares à efetivação
da dignidade humana. A Antígona não é base para um sistema
jurídico paralelo, embora estes existam, mas exemplo de que, dilemas
milenarmente resistidos podem se incorporar no universo do direito positivo.
REFERÊNCIAS
ADEODATO,
João Maurício. A retórica
constitucional (sobre tolerância, direitos humanos e outros
fundamentos éticos do direito positivo). São Paulo: Saraiva, 2009.
JEBBS, Sir Richard. Perfil
Biográfico, Comentários e Apêndice. In: SÓFOCLES, Édipo Rei/Antígona. Coleção obra prima
de cada autor. Tradução de Jean Melville. v. 99. Martin Claret: São Paulo,
2008.
SÓFOCLES, Édipo Rei/Antígona. Coleção obra prima
de cada autor. Tradução de Jean Melville. v. 99. Martin Claret: São Paulo,
2008.
[1] Texto compilado por José
Lourenço Torres Neto, advogado, bacharel em Direito, a partir da Antígona de Sófocles, como parte
integrante do artigo Retórica Clássica e Direitos Humanos publicado no II Ciclo
de Estudos sobre a Efetividade do Processo e Realismo Jurídico em 2009 na FMN
em Recife/PE.
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