segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Teatro/CRÍTICA

"Beije minha lápide"

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Apaixonada aproximação com Wilde



Lionel Fischer



Em maio de 1895, após três julgamentos, Oscar Wilde (1854-1900) foi condenado a dois anos de prisão, com trabalhos forçados, por "cometer atos imorais com diversos rapazes". No presídio escreveu, dentre outras obras, "A alma do homem sob o socialismo", "A balada do cárcere de Reading" e "De profundis". Esta última é uma carta endereçada a Bosie, apelido de Lord Alfred Douglas, a quem Wilde acusava de tê-lo arruinado - o pai de Bosie, o Marquês de Queensberry, foi quem levou o escritor aos tribunais.

O presente espetáculo não é uma versão teatral de "De profundis", mas o contexto tem a ver com o trágico e inconcebível castigo imposto ao autor. O protagonista Bala é um fã ardoroso de Wilde e, como expresso no release que me foi enviado, "está preso por quebrar a barreira de vidro que isola o túmulo do escritor no célebre cemitério de Père Lachaise, em Paris. Se o drama de Bala é fictício, a proteção da sepultura é real e foi colocada por conta de um curioso ritual que os fãs de Wilde faziam ao visitar o local, ao beijar a tal lápide".

Em seu confinamento, Bala empreende dolorosas reflexões sobre a vida, as convenções sociais e o amor, dentre outros temas, além de se relacionar com o guarda, com a advogada encarregada de defendê-lo e com  sua filha, que em passado recente teve um relacionamento amoroso com a advogada e, curiosamente, trabalha como guia turística no cemitério onde Wilde está enterrado.

Eis, em resumo, o enredo e o contexto em que se dá "Beije minha lápide", de autoria de Jô Bilac. Bel Garcia assina a direção da montagem, estando o elenco formado por Marco Nanini (Bala), Caroline Pismel (advogada), Júlia Marini (filha de Bala) e Paulo Verlings (guarda). 

Eventualmente inserindo pensamentos de Wilde, inteiramente adequados à atormentada, lúcida e irônica personalidade do escritor Bala, a presente obra faculta aos espectador uma pertinente e apaixonada aproximação com o caráter do protagonista e, por extensão, com o de Wilde, como se o encarcerado, ainda que provido de singularidade própria, possa também ser encarado - ao menos em alguma medida - como uma projeção do escritor irlandês. Estaríamos, portanto, diante de uma obra que, mesmo que inspirada em fatos reais, nos mostra o que pode acontecer com aqueles que ousam enfrentar a moral e os bons costumes, ambos ditados pelos detentores do poder e que só objetivam perpetuar seus privilégios.

Bem escrita, contendo ótimos personagens e uma ação que prende a atenção do espectador ao longo de toda a montagem, "Beije minha lápide" recebeu ótima versão cênica de Bel Garcia. Aproveitando com extrema sensibilidade todas as possibilidades expressivas da maravilhosa cenografia de Daniela Thomas (centrada, basicamente, em um cubo onde o protagonista está encerrado), a diretora consegue valorizar todos os climas emocionais em jogo, para tanto valendo-se de marcações tão imprevistas quanto criativas, afora ter extraído atuações irretocáveis do elenco.

Na pele da filha de Bala, Júlia Marini materializa não apenas a ironia da personagem, mas também todo o seu desamparo ao constatar que sua relação com a advogada parece definitivamente encerrada. Cabe também destacar seu diálogo final com o pai, um dos momentos mais tocantes do espetáculo. Caroline Pismel também convence plenamente vivendo a também algo irônica e intempestiva advogada, e me parece imperioso ressaltar a forma como a atriz trabalha os vários estados da personagem - ora desarmada, ora furiosa e, finalmente, encantada com o homem que lhe cabe defender. Paulo Verlings exibe presença e segurança, e também desenha de forma irrepreensível a transformação de seu personagem, que vai de incontida admiração para uma rejeição final de extrema dureza e insensibilidade.

Com relação a Marco Nanini, a cada vez que assisto a um trabalho seu já me imagino diante de crudelíssimos dilemas, sendo o principal o seguinte: de que novas palavras poderia me valer, se é que existem tais palavras, para novamente enfatizar minha irrestrita admiração por um ator que considero um dos melhores do mundo? Deveria novamente mencionar sua maestria no tocante à apropriação das palavras? Caberia novamente enfatizar a expressividade de seu universo gestual e sua extraordinária capacidade de fazer com que seu corpo traduza todas as emoções do personagem? Faria algum sentido novamente frisar a notável habilidade do ator no tocante à manipulação dos tempos rítmicos? Enfim...tudo isso já disse em muitas críticas. E torno a dizer, mesmo correndo o risco de me tornar enfadonho. 

Mas talvez ainda não tenha expressado (imperdoável descuido) minha total gratidão por este ator sublime, que a cada novo trabalho parece empenhado em enfatizar a definição de Peter Brook (maior encenador vivo) sobre o fenômeno teatral: "O Teatro é a Arte do Encontro". E mais uma vez tive um inesquecível encontro com Marco Nanini. Assim como o público, certamente, que deverá prestigiar de forma incondicional o presente espetáculo e, particularmente, aplaudir a performance deste intérprete absolutamente deslumbrante.

No complemento da ficha técnica, Beto Bruel responde por expressiva iluminação, que contribui de forma preciosa na enfatização de todas as emoções em causa. Antônio Guedes responde por figurinos em total sintonia com a personalidade e condição social dos personagens, sendo igualmente irretocáveis a trilha sonora de Rafael Rocha e a concepção e direção de vídeo de Julio Parente (também responsável pelo maravilhoso videografismo) e Raquel André.

BEIJE MINHA LÁPIDE - Texto de Jô Bilac. Direção de Bel Garcia. Com Marco Nanini, Carolina Pismel, Júlia Marini e Paulo Verlings. Centro Cultural Correios. Sexta a domingo, 19h.





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