terça-feira, 30 de setembro de 2014

CORPO E ESPAÇO NA OBRA DE PETER BROOK: MARAT/SADE E OS LIMITES DA REPRESENTAÇÃO
Gabriela Lírio Gurgel Monteiro
(UFRJ)
Resumo
Este artigo propõe investigar as relações entre corpo cênico e o uso do espaço em Marat/Sade, nas versões de Peter Brook para o teatro e para o cinema. Na peça, o diretor desconstrói o espaço cênico ao incorporar o espectador como parte inerente do espetáculo e ao explorar novas formas de representação da loucura, a partir do excesso e da investigação de ações coletivas. O objetivo é o de privilegiar a singularidade da criação de cada ator e, ao mesmo tempo, promover um diálogo com a História, ao se comprometer com a criação de uma linguagem comum que deflagra um ato político, coletivo, histórico. No cinema, adotando o espaço teatral como referência e em continuidade com a proposta anterior, Brook, ao utilizar três câmeras, amplia a sensação de ruptura com o espaço convencional, lançando os atores em uma experiência limite até a catarse final e a destruição do cenário.

É necessário que tudo se passe na maior claridade... que tudo seja o contrário de uma imagem da noite. É uma peça que é a celebração dos atos do teatro (BROOK, 1973: s/p).1
Imagem 1: Cena da peça - o momento do assassinato de Marat
A loucura e sua representação é o tema da peça de Peter Weiss – A perseguição e o assassinato de Jean-Paul Marat representados pelo grupo teatral do hospício de Charenton sob a direção do Marquês de Sade – adaptada por Brook para o cinema, mas antes experimentada nos palcos pelo diretor. A temática abordada por Weiss é o encontro entre dois importantes e revolucionários personagens da história: Marat e Sade. Ambos são internos no asilo para doentes mentais de Charenton, nas proximidades de Paris. Sade, por ordem de Napoleão, passa os últimos onze anos de sua vida confinado. M. Coulmier, diretor do hospício, um homem esclarecido e de espírito aberto a novas ideias, autoriza seus internos a montar peças de teatro para o público parisiense. Sabemos que, enquanto esteve preso, o Marquês de Sade escreveu e dirigiu dezessete peças dramáticas, uma dúzia de tragédias, comédias, óperas, pantomimas e peças de um ato2. A ideia de Weiss foi recriar uma dessas representações. A peça se passa em 1808, na sala de banhos do hospício.
Brook teve um primeiro contato com a obra aos 29 de abril de 1964, no momento em que iniciava um trabalho experimental com os atores do Lamda Theatre – grupo formado na Royal Shakespeare Company – buscando referências contemporâneas para suas pesquisas. Dividindo a direção com Charles Marowitz, Brook sugeria exercícios de improvisação, adotando técnicas respiratórias e corporais, constituindo o que nomeou O teatro da crueldade. A ideia se baseava nos escritos de Artaud, mas seguia um rumo novo, original.
Decidimos fazer um trabalho experimental [...] uma homenagem a Artaud. É por isso que nomeamos nossa primeira representação de ‘Teatro da crueldade’. Havia elementos baseados nas questões levantadas por Artaud. Mas isso não queria dizer que correspondesse a Artaud puro, porque Artaud puro era uma coisa completamente diferente (BROOK, 1973: s/p).   
Ainda no mesmo ano, Brook recebe o convite de Peter Hall, à época diretor da Royal Shakespeare Company, para co-dirigir a companhia, dividindo a função com ele e com Michel de Saint-Denis. A esse convite, ele responde com uma contraproposta: aceita o desafio com a condição de poder desenvolver, paralelamente, um laboratório teatral, sem que isso o obrigasse a encenar ou a produzir o que quer que fosse. A condição exigida, portanto, é a liberdade de criação sem nenhum tipo de intervenção externa. A mudança de orientação é radical, uma vez que a pesquisa, antes restrita à montagem de uma peça, se desvincula do espaço cênico, ganhando autonomia e, pela primeira vez, aprofunda-se no questionamento da linguagem e no significado da representação teatral.
O grupo buscava criar uma linguagem própria através de uma séria e dedicada pesquisa cênica, explorando a linguagem teatral como uma possibilidade de comunicação mais ampla e verdadeira entre público e atores. Os ecos da pergunta proferida por Brook – “Pourquoi le théâtre?” (BROOK, 1977: p.88) começavam a ser escutados e repetidos na prática diária de um trabalho coletivo. Três meses após a criação do Lamda, o grupo apresentou ao público sketches de som e movimentos, colagens de A Guilhotina e Banho Público, este último reprisado em Marat/Sade, cenas deParavents, uma colagem de Hamlet dirigida por Marowitz e Ars Longa, Vita Brevis. Rompendo com a tradição teatral de um passado repetitivo e de uma memória cultural paralisante porque presa a detalhes irrisórios e figuras emblemáticas, Brook afirma seu teatro como um teatro vivo, um “lugar de vida”, em contraposição ao teatro mortal, ao culto do “autor morto”, tão difundido até então. Esta proposta de ruptura se dá não somente no plano do repertório, que começa a ser questionado e modificado, mas também no modo como a pesquisa é encaminhada. Não interessava mais, por exemplo, a “relíquia de saber” dos atores: técnicas, impostações, truques e todo um saber do ofício pronto para ser repetido a cada novo trabalho. Os atores, ao contrário, passam a ser escolhidos, na medida em que apresentam uma abertura para o novo, para o desconhecido, para um aprendizado adquirido na prática, na relação direta com a platéia, sem subterfúgios e sem distanciamentos pré-impostos ao público.
As audições para a escolha do elenco eram realizadas a partir de exercícios de improvisação que, a todo o momento, exigiam dos atores que mudassem seus pontos de vista e se adaptassem a novas situações quase que imediatamente. Era um método eficaz de saber o grau de abertura individual e a capacidade de adaptação de cada membro que se candidatava a fazer parte do grupo. O conceito de “espaço vazio” era explorado pelo diretor com o intuito de absorver novas experiências ao desconstruir/desfragmentar o espaço teatral e, ao mesmo tempo, ao implodir internamente referências corporais dos atores, cristalizadas por anos a partir de uma prática desprovida de reflexão. O “espaço vazio”, portanto, denota um duplo encaminhamento: o corpo des-figurado de clichês, traumas, vícios repetitivos pode, com liberdade, vivenciar um outro estatuto: ao se deslocar de forma inteiramente nova pelo espaço, é capaz de se reconhecer em uma espécie de estranhamento proveniente da descoberta de novos músculos, ossos, pele, lançando mão de inovadoras possibilidades de representação. Recusando a tradição, Brook busca na ruptura e na pesquisa do novo, do que ainda está por vir, um retorno à origem, ao mito, ao ritual de um teatro vivo e em constante mudança. A obsessão pela busca de uma origem vai ao encontro da recusa de uma memória cultural cristalizada.
O que busco no teatro é um ato que não tem nome – talvez, possamos chamá-lo de um ato de comunhão – uma experiência de uma qualidade intensa reconhecível, mas que aparece somente em raros momentos, um momento que podemos chamar de mágico – a Flor (BROOK, 1974: p.275-276).
A origem mítica para a qual Brook orienta a sua busca – a Flor – é alcançada em cena a partir de uma construção e reflexão diárias. Percebendo o teatro como um lugar em que a vida é apresentada em uma espécie de combustão de forças, através da qualidade de ações dos atores, concentradas a um ponto máximo, a um limite da realidade, Brook introduz, na pesquisa que desenvolve, uma reflexão sobre o modo de pensar o teatro. Discurso e prática juntos formam um só corpo, uma unidade multiplicadora de outras vivências. Tudo o que é dito é praticado em cena cotidianamente. Artista e obra falam a mesma língua. Em Marat/Sade, de Peter Weiss, Brook ousa a criação de um espetáculo que se recusa a dar explicações, a fazer um balanço de si mesmo. Respeitando o texto de Weiss, imbuído de uma dupla reflexão sobre a historicidade da loucura e a loucura da história, Brook irrita-se com boa parte da crítica teatral que classificava a peça como uma espécie de síntese entre Artaud e Brecht. Sempre avesso às classificações reguladoras e limitadoras que, adotando “nomes” e “conceitos”, iludiam a conjugação de um léxico para suas criações, afirmava: “Acredito que o teatro, como a vida, é construído em torno de um conflito permanente entre as impressões e os julgamentos – a ilusão e a desilusão coabitam dolorosamente e são inseparáveis” (BROOK, 1992: p.74).    
Imagem 2: A adaptação cinematográfica de Peter Brook - privilegiando os espaços
Incorporando o ponto de vista proposto por Weiss em Marat/Sade –“O importante é que você se levante puxando seus próprios cabelos. Virando-se do avesso para ver o mundo inteiro com olhos novos” (BROOK, 1992: p.76) – Brook procurava não responder às críticas niveladoras, suscitando, por meio de sua resposta “aberta” para múltiplas leituras, novas perguntas sem resposta. Afinado com as propostas de Brecht, Artaud e Grotóvski, Brook cria um caminho singular: contestador da realidade, assim como Brecht; revolucionário no sentido empregado por Artaud; e rico, em contraposição ao teatro pobre grotovskiano, o que para ele significava praticamente a mesma coisa: “... busco um teatro rico tanto quanto Grotóvski busca um teatro pobre, porque para mim é quase a mesma coisa” (BROOK, 1992: p.76). A busca, a que se refere o diretor, é fundamental ao processo e reveladora das escolhas. O fato de ter optado por representar Marat/Sade significou um marco importante para o aprofundamento de uma certa liberdade cênica, calcada em pesquisas experimentais, que o levaria, alguns anos depois, à criação do Centre International de Créations Théâtrales (C.I.C.T), em Paris.
Brook monta inicialmente Marat/Sade no Aldwych Theater, para o público de teatro londrino. Apesar de o processo de criação ter se iniciado através de uma pesquisa baseada em improvisações, nenhuma ação ocorria ao acaso. A loucura era a mola da representação e difícil de ser apreendida, uma vez que se tratava de personagens-loucos representando personagens, ou seja, a temática era a peça dentro da peça. A intensidade do jogo cênico variava conforme o ritmo da ascensão da loucura de cada um, deslocando-se em um crescendo, desenhando no palco trajetórias múltiplas até a catarse final.

A encenação de Brook demonstra bem como o teatro é capaz de retirar da representação da loucura os efeitos mais impressionantes. A intensidade dos movimentos e dos jogos de cena, em Marat/Sade, se fundem nesta representação e se revelam na primeira imagem, na qual se vê os doentes que devem representar a peça de Sade dispostos em posição fetal, ou petrificados em transe, ou tremendo todos os membros, ou seguindo um rito obsessional... (SONTAG, 1966: p.137).
O processo de criação da peça teve como ponto de partida uma investigação sobre a loucura a partir de um estudo realizado através de visitas a hospitais psiquiátricos londrinos e a leituras do grupo sobre o assunto. Não estigmatizar a loucura foi uma premissa para o aprofundamento do espetáculo. Os atores buscaram a sua própria loucura em interação à loucura do Outro – dos personagens de Weiss e de seus colegas. A percepção de que traços psicóticos de comportamento são comuns a todos, liberou o elenco para explorar matizes distintos através de uma ampla dedicação ao estudo de movimentos repetitivos, olhares fixos, vazios, passando por uma investigação sobre a articulação das palavras, como o belo trabalho desenvolvido por Glenda Jackson na composição de Charlotte Corday, uma paciente melancólica que traduz, na fala desarticulada e fragmentária, um corpo pontuado por hesitações, que se locomove aos tropeços, arrastando os pés, girando o pescoço levemente para os lados. O alto rigor de elaboração dos personagens, independentemente de sua importância na peça (a freira, o guarda e outros coadjuvantes passaram todos pelo mesmo processo coletivo de criação de uma linguagem comum) se deve não só à compreensão de que a proposta política de Weiss tem ecos na análise da condição humana e na dificuldade, inerente a todos nós, em lidar com a realidade emergente de crises sucessivas, assim como também a um exercício livre de criação de uma linguagem coletiva que dialogasse com a História, com o passado e com o presente, e que fosse legítima à proposta do grupo.
    A loucura em Marat/Sade é a autêntica representação da paixão e se transfigura em expressão violenta. Os fatos históricos sustentam as cenas e evocam acontecimentos trágicos. Em um dos momentos principais da peça, Sade sentado em sua poltrona e Marat na banheira interrogam-se sobre o sentido da Revolução Francesa, sobre “as preliminares psicológicas e políticas da história moderna” (SONTAG, 1966: p.138). A obra de Sade, incluindo Diálogo entre um padre e um moribundo e A filosofia na alcova, expõe uma concepção dramática, na qual as análises e os diálogos filosóficos se alternam com uma encenação repleta de excessos corporais. Na proposta brookiana, os atores se deslocam permanentemente pelo espaço, ocupando lugares estratégicos, compondo uma dimensão circular da cena em que o excesso de movimentação é ditado por um coro sempre pronto a intervir nas mudanças provenientes dos acontecimentos principais. O coro – composto por bufões – traz o excesso na maquiagem, no figurino e na superatuação, mesclando traços histriônicos a uma irreverência presente em ações que trazem a marca de uma coletividade comicamente desafiadora. 
A confrontação imaginária entre Marat e Sade foi a temática escolhida por Weiss ao tomar conhecimento de que Sade teria escrito um elogio fúnebre ao revolucionário, por ocasião de sua morte. “Um discurso ambíguo, porque ele se pronunciou para salvar sua própria cabeça que, à época, [...] figurava na lista da guilhotina” (WEISS, 2000: p.111). O foco da peça é, portanto, o conflito entre o individualismo elevado ao extremo e a ideia de uma transformação política e social. Para Weiss, Sade concordava com a necessidade da existência da Revolução, com o ataque à aristocracia corrompida, mas recuava diante das medidas de terror tomadas pelos novos dirigentes. Ou seja, o Marquês foi fiel às suas ideias, que terminaram por serem reprovadas e taxadas de “monstruosas” pelo seu conteúdo eminentemente transgressor.
Marat, por sua vez, apresentava uma doença de pele psicossomática, motivo de grande sofrimento até o final de sua vida. A fim de amenizar seus efeitos, passava horas e horas dentro de uma banheira. Em 13 de julho de 1793, enquanto tomava mais um de seus longos banhos, morreu apunhalado por Charlotte Corday. Weiss procurou reproduzir os fatos históricos que narram este episódio. Na perspectiva adotada pelo dramaturgo, Marat foi um dos homens que trabalharam para modular o conceito de socialismo, apesar de suas teorias terem sido consideradas violentas e subversivas. Os diálogos entre o personagem e Sade são acrescidos de um sem número de detalhes referentes ao espaço, aos figurinos, ao cenário. “Tudo, na descrição do autor, visa instaurar uma rigorosa perspectiva [...] tudo contribui para transformar a cena em uma espécie de tribunal, onde a peça irá julgar o processo da História” (VEILLON, 1985: p.313). Brook decide transformar o espaço cênico em um círculo, um espaço concreto e metafórico, “um círculo de uma espiral que desce ao inferno” (VEILLON, 1985: p.313). O público, inserido no contexto da peça, é convidado a participar de forma ativa da representação. Diversos dramaturgos e diretores, nas décadas de 60 e 70, pressupunham-no como parte ativa do espetáculo. Ionesco, em A cantora careca, tencionava terminar a peça com um massacre dos espectadores.  Ao final de Marat/Sade, Brook dirigiu os atores da seguinte forma: ao receber os aplausos da platéia, eles respondiam com estranhos estalados de mãos, interrompendo, desta forma, as manifestações espontâneas do público, causando um desconforto generalizado. Os críticos foram duros tanto com a direção de Brook, quanto com a peça de Weiss, considerada de valor literário inferior, e, por este motivo inadequada para uma montagem. Outro aspecto era relativo à incoerência da composição dos personagens. Segundo a crítica, suas motivações deveriam ser mais inteligíveis, e, por último, a exigência era a de que os fatos fossem tratados sob a clave de uma “verdade histórica”, o que de forma alguma era a intenção primeira de Weiss.   
A peça é digna de admiração e o prazer que a representação me proporcionou não é evidentemente suficiente para provar sua qualidade [...] Por outro lado, as críticas, tanto as dos jornais cotidianos, como as das revistas mais especializadas, foram quase unânimes em formular reservas... (SONTAG, 1966: p.140).
Da peça ao filme, Brook aprofunda suas descobertas, mantendo-se fiel à concepção inicial, pesquisando os limites do que pode ser considerado representável na História: os limites da representação artística. O que pode ser transposto para a tela e o que inevitavelmente fica de fora? E ainda: quais são os limites entre as representações cênica e cinematográfica? Brook filmou a peça utilizando o mesmo cenário, os mesmos atores, o mesmo conhecimento do tema partilhado por todos. Desde o começo do projeto, houve problemas de produção. Mais uma vez, os recursos eram insuficientes e a solução foi filmar em apenas dezoito dias. Um recorde de tempo que modificou o espaço dos sets de filmagem, transformando-o em um ambiente que lembrava “uma luta de boxe”. Através dessa experiência, Brook adquiriu uma visão altamente subjetiva da ação.
Quando dirigira a peça, não buscara impor meu próprio ponto de vista à obra; pelo contrário, procurara torná-la tão multifacetada o quanto pudera. Como consequência, o público estivera continuamente livre para escolher, a cada cena e a cada momento, os aspectos que mais o interessavam. É evidente, no entanto, que eu também possuía minhas preferências e fiz, no filme, aquilo que um diretor de cinema não pode evitar, que é mostrar aquilo que seus próprios olhos vêem (BROOK, 1992: p.250).
O que chamou especialmente sua atenção foi a percepção da diferença entre os processos que ocorrem com o espectador no cinema e com o espectador no teatro. O poder da imagem no cinema faz com que, de certa forma, o espectador permaneça em uma posição mais passiva, sendo guiado pelo olhar-câmera do diretor. No teatro, o espectador pode variar sua atenção para um ou outro personagem com o qual tenha maior identificação e, caso deseje, pode prestar atenção a um detalhe do cenário, do figurino ou à iluminação. A distância entre espectador e espetáculo, portanto, é variável, dependendo de inúmeros fatores internos e externos. No cinema, não existe essa plasticidade de variação e são os closes, as tomadas panorâmicas, os fade-out e os fade-in, e demais recursos técnicos que mobilizam a aproximação e o distanciamento do espectador.
Outro fator observado por Brook é que a ação em Marat/Sade estimulava o público a exercitar a imaginação na complementação das cenas. Por outro lado, no cinema, este processo mostrou-se inviável: a realidade da imagem fornecia ao filme uma força expressiva extraordinária e também uma limitação. A literalidade da fotografia impossibilitava sugestões. A verossimilhança “cobrava” um outro posicionamento. Em contrapartida, Brook também observou que a força da imagem pode fazer com que o espectador não consiga libertar-se dela, daí a necessidade de dosá-la, de estabelecer o tempo de permanência de uma determinada cena, da atenção para que o conjunto de um filme não se perca pelo excesso de exposição de uma determinada ação.
No cinema [...] trava-se uma luta perpétua contra o problema da importância excessiva da imagem, que é intrusiva e cujos detalhes perduram muito tempo depois da sua necessidade ter desaparecido. Caso se tenha uma cena de dez minutos de duração numa floresta, nunca mais se conseguirá livrar-se das árvores (BROOK, 1992: p.253).
Sade se dedica a pronunciar longos monólogos e a observar todas as cenas, com um frio e sarcástico distanciamento. Marat, envolto em lençóis brancos, lança ao espaço um olhar fixo e ausente. Charlotte Corday dorme e acorda, lembrando-se e esquecendo-se do papel que deve representar e da ação principal da peça: o assassinato de Marat. O deputado girondino Duperret é interpretado por um jovem eretômano, magérrimo, alto e de topetes no cabelo. Simone Éverard, enfermeira e amante do revolucionário, tem dificuldades em se movimentar e parece, também, possuir um problema de visão. Há ainda o coro de bufões que fazem um contraponto à história, pontuando os diversos momentos de transição, cantando e tocando músicas, cujas letras refletem o ritmo das cenas. Além de outros internos – duas freiras sádicas, um homem amarrado a uma camisa de força, etc. – cada qual com uma espécie de “doença” particular. Os Coulmier – diretor do hospício, sua esposa e filha – representam a burguesia parisiense, deleitando-se em fazer parte de uma espécie de experiência exótica. À medida que o filme avança, porém, a família submerge à desorientação do grupo, passando de um leve incômodo ao excitamento, ao horror e à catarse final.


Imagem 3: Marat e Sade juntos refletindo sobre o destino da humanidade
Brook reproduz na tela o espaço teatral, incluindo a platéia. Há um plano geral da cena que representa o olhar do espectador da última fileira do teatro. Esta tomada de câmera é repetida diversas vezes ao longo do filme, a fim de sublinhar a existência do público como uma marca de teatralidade, aproximando as linguagens cênica e cinematográfica. Brook opta, ainda, por separar atores e público através do uso de grades. Os personagens permanecem por trás das grades, como se literalmente fossem prisioneiros da história e da encenação dirigida pelo Marquês de Sade.
Há um outro aspecto relevante ligado à separação do público e dos atores: Marat/Sade se inscreve na clave do risco, no tênue limite entre ficção e realidade. A todo momento, tem-se a impressão de que os atores poderão romper as grades, destruir tudo e se misturar com a platéia. Por inúmeras vezes, eles se lançam com violência ou lançam objetos que, por pouco, não atravessam os limites do palco. O risco é uma constante, e os personagens transitam no limiar entre a vida e a morte, no controle total de ações que podem, de uma hora para outra, se tornar incoerentes e fatais. A tensão avança até a cena da catarse final, na qual o grupo destrói todo o cenário. Brook, utilizando três câmeras, fez apenas um take da cena e o resultado é surpreendente: se a descontinuidade é explorada desde o início do filme, no final ela é alçada ao seu limite.
A montagem é o ponto forte de Marat/Sade, considerado um dos filmes mais cinematográficos de Brook. Apesar das marcas de teatralidade, o filme é repleto de efeitos, tais como a cena do pesadelo de Marat, em que a câmera reproduz o olhar do personagem: são sombras, imagens distorcidas, todo um universo onírico do sonho que adquire um tratamento especial. A “colagem” dos planos é cuidadosa e, ao mesmo tempo, ousada. Os planos são muito curtos e Brook reproduz o olhar do espectador de teatro: ao invés de privilegiar uma ou outra atuação, focaliza todos os personagens e seus múltiplos ângulos. Mesmo os secundários ganham destaque na montagem. São muitos os closes, planos fechados, planos abertos, planos de cima da cena que se alternam repetidas vezes. A descontinuidade é proporcional ao ritmo, que se acentua à medida que o filme avança; um ritmo histérico que ganha seu ápice na cena da destruição final.  
No teatro, a atenção de cada um muda constantemente de objeto. Às vezes, você focaliza a ação principal; às vezes, um ator no fundo da cena; às vezes um detalhe da cena; às vezes, você toma consciência da presença do público. Nenhuma câmera, nenhum microfone, pode recriar diretamente essas condições, mas pode orientar e focalizar sua atenção e mostrar também a ação secundária. O cinema pode produzir sua própria teatralidade (BROOK, 1966: s/p).
O cenário, com poucos objetos – alguns baldes, a bandeira francesa, uma mangueira de água e objetos de uso pessoal dos personagens – todos eles utilizados, apresenta calabouços de madeira em forma circular. Quando há necessidade de “limpar a cena”, os atores entram nos calabouços. Em outro momento, Marat transforma um deles em uma banheira. Os personagens bufões, por exemplo, cantam e tocam músicas que narram e pontuam os momentos de transição, além de realizarem diversas coreografias, entrando e saindo dos calabouços, desenhando no espaço pequenas ações. O grupo de atores, dirigido por Brook, apresenta um alto nível de precisão nas ações físicas; há uma sincronia impressionante, uma vez que se trata de um grupo grande, que permanece em cena praticamente o tempo inteiro.
A iluminação é outro elemento interessante de ser observado. Brook afirma ter optado por uma única fonte proveniente da lateral esquerda do palco, imitando a luz natural e regulada por tecidos na cor bege pendurados em uma espécie de varal. Deste modo, a cena é escurecida ou clareada conforme esses tecidos são expostos ou retirados. Brook se aproveita desse recurso, por exemplo, na cena do discurso de Marat: um plano fechado do personagem de perfil, quase na penumbra, sendo iluminado por uma luz tênue. Excetuando uma ou outra cena, de um modo geral,Marat/Sade é um filme realizado “às claras”, deixando o espectador com a sensação de ser testemunha do espetáculo dirigido pelo Marquês.
As câmeras são parte integrante da equipe e se misturam com os atores; não as vemos, mas é como se fossem coladas aos olhos dos participantes. Tal qual um terceiro-olho, elas preenchem os espaços, mostrando os diferentes universos de cada personagem. Nesse sentido, Marat/Sade é múltiplo, como é múltiplo o olhar do espectador de teatro, na liberdade de selecionar o fragmento que deseja ver/perceber. Essa é a maior contribuição da experiência teatral de Brook ao filme. Por outro lado, Marat/Sade é um dos filmes mais cinematográficos do diretor, diferenciando-se dos demais exatamente pela diversidade de tomadas de cena e pela ousadia da montagem, que tem como enfoque maior a descontinuidade.
Na última cena, os espaços cinematográfico e teatral se fundem através da destruição do cenário. O espectador não vê mais a peça dentro do filme. E não vê mais o filme dentro da peça. A impressão que se tem é de que Brook, exercitando-se no limiar entre as duas linguagens, alcança um espaço vazio, o espaço vazio tão desejado. Não sabemos se são os atores destruindo tudo ou se são os personagens, e isso é o que menos importa. Algo ultrapassou o limite e, por isso, nada mais resta. Fim do filme, fim da peça. Começo de uma nova pesquisa.
Filmamos a última cena no final das filmagens. Os atores que encenavam a peça há dois anos não aguentavam mais. E quando propus tudo demolir, tudo quebrar, tudo destruir, tivemos um dos happenings mais extraordinários a que assisti... Tivemos trinta minutos de selvageria e de destruição completamente alucinante... rodamos sem parar, com três câmeras, exatamente como em um motim. Os operadores de câmera iam pro lado para recarregar o aparelho e depois voltavam. Os atores saltavam, gritavam, punham fogo. Eles puseram fogo no cenário, depois vinham com água para apagar (BROOK, 1966: s/p).
Referências
BROOK, Peter. Entretien avec Denis Bablet. Travail Théâtral, n°10. Paris: Éditions de la Cité Lausanne, outubro/janeiro, 1973, s/p.
______. Depoimento dado ao jornal inglês The Guardian. Londres, 28 de junho de 1966, s/p.
______. Entrevista à Margareth Croyden. Lunatics, lovers and poets. The contemporary experimental theatre. Nova York: Mc Graw Hill Book Company, 1974.
______. L’espace vide. Paris: Seuil, 1977.
______. Points de suspension. 44 ans d’exploration théâtrale. 1946-1990. Paris: Éditions du Seuil, 1992.
SONTAG, Susan. Marat-Sade….Et Artaud. In: L’œuvre parle. Essais. Paris: Seuil, 1966.
VEILLON, Olivier-René. Marat/Sade: la célébration des actes du théâtre. Brook. Les voies de la création théâtrale, vol. XIII. Paris: CNRS, 1985.
WEISS, Peter. Notes sur l’arrière-plan historique de la pièce. Marat/Sade ou La Persécution et l’Assassinat de Jean-Paul Marat représentés par le groupe théâtral de l’hospice de Charenton sous la direction de Monsieur de SadeDrama em dois atos. Traduzido do alemão por Jean Baudrillard. Paris: L’Arche, 2000.




Notas

1 As traduções são de minha autoria.
2 De todas as suas peças, somente uma foi montada em um teatro, no período em que Sade esteve fora da prisão (1790 a 1801) –Oxtiern ou as desgraças da libertinagem. A peça, considerada um escândalo, foi retirada imediatamente de cartaz.
GABRIELA LÍRIO GURGEL MONTEIRO é Professora Adjunta de Direção Teatral na Escola de Comunicação da UFRJ. Possui graduação em Comunicação Social (Jornalismo/1995), Mestrado (1999) e Doutorado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2004), com estágio doutoral na Université Paris III Sorbonne-Nouvelle (2002). Sua tese de doutorado Teatro e cinema na obra de Peter Brook, co-orientada por Georges Banu, tem lançamento previsto para o ano que vem. É autora dos livros A procura da palavra no escuro (7Letras, 2001) e Interseções: Cinema e Literatura (7Letras, 2010). Pesquisadora do CNPq, desenvolve atualmente a pesquisa A teatralidade cinematográfica e o uso de novos dispositivos na produção de imagens (bolsas PIBIC-UFRJ/FAPERJ). Acaba de iniciar uma nova pesquisa intitulada Autobiografia na cena contemporânea: entre a ficção e a realidade.


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