quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Teatro/CRÍTICA

"Adorável garoto"

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Pedofilia e incomunicabilidade



Lionel Fischer



"Vivendo sozinho desde os tempos da faculdade, Isaac, já adulto, volta à casa dos pais em busca de abrigo. O rapaz encontra um lar esfacelado pela incomunicabilidade e tudo se agrava quando ele expõe os motivos de sua volta, que desnorteiam os pais já em crise. O drama do filho, por vias inesperadas, acaba unindo o casal em torno de um objetivo comum: salvar e proteger o próprio filho, apesar dele ter quebrado um código moral absolutamente inquestionável".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima resume o enredo de "Adorável garoto", do norte-americano Nicky Silver. Maria Maya assina a direção do espetáculo, em cartaz no Mezanino do Espaço Sesc. No elenco, Leonardo Franco, Isabel Cavalcanti, Michel Blois, Mabel Cezar e Raquel Rocha.

Um dos dramaturgos mais importantes dos Estados Unidos e com várias de suas peças já encenadas no Brasil ("Pterodátilos", "Os altruístas", "Homens gordos de saias", "Criados em cativeiro"), Nicky Silver trabalha aqui dois temas principais: as conturbadas relações familiares e, talvez conseqüência das mesmas, uma brutal incapacidade de lidar com uma situação que foge ao previsível.

No primeiro caso, o autor trabalha muito bem a situação de um casal que insiste em manter um casamento falido, que pouco ou nada conversa, que praticamente se agride o tempo todo e que se mostra incapaz de refletir sobre o próprio passado e assim, quem sabe, reinventar o presente - Harry tem uma amante, Nan é alcoólatra e talvez também tenha tido casos e assim por diante.

Com o retorno do filho, o foco recai sobre algo até então impensado: professor há muito tempo, Isaac está sendo acusado de pedofilia. Inicialmente, Harry e Nan se mostram aterrados com a notícia e o pai, em especial, tenta entender as motivações do filho. Isaac se defende, sustentando que ama a criança em questão - um garoto de oito anos. Mas Harry não se conforma e, numa cena com a esposa, busca uma resposta para a questão: será que ambos, realmente, jamais haviam notado nada de estranho no filho? Ou será que Isaac já havia manifestado sua inclinação por crianças e eles não quiseram enxergar?

Até aí, uma reação normal de uma família obrigada a lidar com uma situação terrível. No entanto, como já dito acima, Harry e Nan se mostram totalmente incapazes de encontrar uma solução aceitável para o caso. E optam por...cegar o filho!?, que assim se veria impossibilitado de novamente vir a perturbar crianças.

Se entendida literalmente, essa opção nos leva a crer que Harry e Nan não passam de dois insanos, que não hesitam em perpetrar um crime ainda maior do que o cometido pelo filho. Se, ao contrário, encararmos o propósito dos pais como uma metáfora de uma sociedade que prefere a brutalidade da cegueira do que um lúcido olhar (ainda que doloroso) sobre a realidade, aí esta solução do autor passa a fazer sentido. E é provável que esta tenha sido a intenção, já que a peça começa com Isaac contando sua história e com ele termina.

Dúvidas à parte, é inegável a habilidade do autor na construção de uma trama que prende a atenção do espectador desde o início, que pode usufruir bons diálogos e os embates de personagens bem construídos. E a materialização cênica de Maria Maya, em sua primeira direção, merece ser considerada de ótimo nível - através de marcações expressivas e excelente domínio dos tempos rítmicos, a encenadora consegue valorizar todos os conteúdos propostos pelo autor.

Com relação ao elenco, Leonardo Franco exibe ótima performance como Harry, trabalhando com a mesma eficiência a virulência e perplexidade do personagem. O mesmo se aplica a Isabel Cavalcanti, capaz de impregnar de corrosiva ironia o desespero de Nan. Na pele de Isaac, Michel Blois defende com paixão um personagem difícil de ser defendido - por mais que Isaac sustente que ama o menino, torna-se literalmente impossível se estabelecer com ele um mínimo de empatia, sobretudo porque vivemos em uma época em que a pedofilia assume conotações epidêmicas. Raquel Rocha extrai todo o potencial humano e humorístico da simplória Delia, amante de Harry, com Mabel Cezar explorando com eficiência a hilária impaciência da Dra. Elizabeth Hilton. 

Na equipe técnica, Ronald Teixeira responde pela bela e eficiente cenografia, sendo também impecáveis os figurinos que assina. Adriana Ortiz ilumina a cena com sensibilidade, conseguindo enfatizar todos os climas emocionais em jogo. Cabe também destacar a ótima tradução de Gustavo Klien e a precisa direção de movimento de Vietia Zangrandi.

ADORÁVEL GAROTO - Texto de Nicky Silver. Direção de Maria Maya. Com Leonardo Franco, Isabel Cavalcanti, Michel Blois, Mabel Cezar e Raquel Rocha. Mezanino do Espaço Sesc. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h.










2 comentários:

  1. Obrigada pela linda crítica e pela menção á direção de movimento. Foi um prazer te-lo em nossa platéia. Um cordial abraço, Viétia Zangrandi

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  2. Vietia amiga,

    te agradeço as palavras tão gentis.
    beijos,
    Eu

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