sexta-feira, 6 de março de 2015

Teatro/CRÍTICA

"Boa noite, mãe"

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Doloroso e terminal encontro



Lionel Fischer



"A peça mostra uma noite na vida de uma pequena família: mãe e filha. Jessie, a filha, depois de tantos anos difíceis lutando contra a epilepsia, além de um longo acúmulo de dificuldades familiares, anuncia que decidiu se retirar da vida. Com um tiro na cabeça, hoje - mais tarde. Uma solução simples, eficiente e, para ela, bastante tranquila. A mãe, Thelma, ao receber a notícia, passa por um mundo de emoções: incredulidade no início, raiva e desespero mais tarde, até momentos de aceitação, enquanto tenta lidar com o que para Jessie é o inevitável: seu destino está finalmente seguro nas mãos dela".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o enredo de "Boa noite, mãe", da dramaturga norte-americana Marsha Norman. Em cartaz no Teatro Eva Herz, a montagem leva a assinatura de Hugo Moss, estando o elenco formado por Beth Zalcman (Thelma) e Thaís Loureiro (Jessie).

Incontáveis são as razões que levam alguém a decidir dar cabo da própria vida. E neste caso, Jessie possui inúmeras, como expresso no parágrafo inicial, ao menos do ponto de vista de alguém que, além de padecer de uma doença que considera humilhante, jamais conseguiu estabelecer fortes elos afetivos e muito menos profissionais. No entanto, e ao contrário do que imagino que acontece com a maioria das pessoas que resolve se matar, aqui nada se dá de forma súbita e intempestiva: Jessie não apenas planejou tudo em seus mínimos detalhes quanto expõe, à medida que dialoga com a mãe e não para de arrumar a casa, todas as prosaicas providências que ela deverá tomar uma vez consumado o ato.

Estaríamos, então, diante de uma personalidade marcada por extrema frieza? É possível. Mas o que importa destacar é que o recurso criado pela dramaturga - a enumeração de uma infinidade de tarefas que a mãe deverá cumprir após a morte da filha e a obsessão desta em deixar o lugar perfeitamente em ordem - gera uma tensão cênica que se acentua cada vez mais, sobretudo nos momentos em que a mãe tenta ser ouvida efetivamente pela filha, quase sempre sem sucesso. Mas é claro que às vezes há uma pausa na desvairada arrumação e então podemos ter acesso a uma história de vida marcada por contínuo sofrimento e por revelações feitas pela mãe que teoricamente poderiam contribuir para que Jessie ao menos adiasse seu plano funesto. Mas nem o desespero de Thelma, e tampouco suas argumentações produzem o efeito desejado.  

Bem escrito, contendo ótimos personagens e diálogos que prendem a atenção do espectador desde o início, "Boa noite, mãe" recebeu sóbria e segura versão cênica de Hugo Moss. Consciente de que um texto desta natureza dispensa inócuas mirabolâncias formais, o diretor investe sabiamente todas as suas fichas no trabalho das intérpretes. E o resultado desta opção revela-se plenamente gratificante.

Na pele de Jessie, Thaís Loureiro exibe desempenho irrepreensível, trabalhando com extrema sensibilidade o caráter algo fugidio da personagem - suas inflexões são quase sempre propositadamente monocórdias, como se qualquer ênfase já não tivesse mais sentido, assim como seu olhar dificilmente se fixa naquela com quem dialoga. Sem dúvida, uma atuação precisa e sofisticada, que evita o melodrama e consegue priorizar o que talvez possa ser definido como sereno desespero.

O mesmo brilho se faz presente na performance de Beth Zalcman, impecável do ponto de vista corporal e não menos sedutora em termos vocais - é impressionante o domínio que a atriz tem da voz, o que lhe permite conferir ao texto imprevistas e expressivas nuances. Cabe também registrar sua visceral capacidade de entrega às emoções em causa, assim como sua habilidade de extrair humor quando este se faz necessário. Sob todos os pontos de vista, uma das melhores performances da atual temporada.

Na equipe técnica, Aurélio de Simoni responde por uma iluminação sutil e delicada, só eventualmente pontuando momentos mais significativos da dolorosa relação entre as personagens. Hugo Moss e Thaís Loureiro assinam excelente tradução, sendo corretos os figurinos de Zalcman e Loureiro, assim como a cenografia de Moss e Luana Santos.

BOA NOITE, MÃE - Texto de Marsha Norman. Direção de Hugo Moss. Com Beth Zalcman e Thaís Loureiro. Teatro Eva Herzt. Quarta e quinta, 19h. 

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