terça-feira, 30 de junho de 2015

Teatro/CRÍTICA

"Beija-me como nos livros"

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Bela e original empreitada teatral



Lionel Fischer



"Beija-me como nos livros procura retratar o relacionamento amoroso e o seu desenvolvimento ao longo dos tempos, por meio de uma linguagem cênica criativa, amparada na expressividade vocal e corporal. A peça tem como premissa pensar o amor não como algo biológico e inerente à natureza humana, conforme costuma ser visto, mas como mais uma invenção do ser humano, sujeita a constantes alterações ao sabor das mudanças na política, na religião e na economia. É fato que a relação afetiva entre duas pessoas se modificou profundamente através dos séculos, até se estabelecer como a entendemos e praticamos nos dias de hoje".

Extraído do ótimo release que me foi enviado pela assessora de imprensa Daniella Cavalcanti, o trecho acima sintetiza as premissas que deram origem a "Beija-me como nos livros - um espetáculo sobre a história do amor", que acaba de entrar em cartaz no Teatro I do CCBB. Mais recente produção da companhia Os Dezequilibrados, "Beija-me..." chega à cena com direção e dramaturgia assinadas por Ivan Sugahara, estando o elenco formado por Ângela Câmara, José Karini, Claudia Mele e Julio Adrião - os dois últimos atores convidados.

A presente empreitada teatral gira em torno de quatro mitos amorosos - "Tristão e Isolda" (simbolizando o período medieval inglês), "Romeu e Julieta" (Renascimento italiano), "Dom Juan" (Iluminismo francês) e "Werter" (Romantismo alemão) - e o enredo mescla questões e traições de dois casais contemporâneos com cenas dos citados mitos. Quanto ao texto, este é proferido em uma língua inventada (gromelô), cuja apreensão decorre da sonoridade das palavras e da cadência e inflexão das falas. E cabe também registar que as palavras são, digamos assim, pronunciadas em um registro que remete ao "original" - em "Dom Juan", por exemplo, o sotaque é francês. Isto posto, vamos ao espetáculo.

Em primeiro lugar, julgo muito oportuna a possibilidade de se refletir sobre o amor, seja sobre o conceito de amor romântico, seja sobre a forma com que nos relacionamos. No presente caso, dos mitos selecionados, o de Dom Juan é o único que escapa de um contexto trágico, já que o empedernido fauno parece só ter se preocupado em copular com uma infinidade de damas - consta que se deitou com cerca de dez mil. Com relação aos outros, ainda que a carne tenha tido sua importância, os encontros amorosos a transcendiam e o fundamental era a identificação de almas. 

Quanto ao casal contemporâneo, embora os homens e as mulheres não exibam a ensandecida lubricidade do citado Dom Juan, o fato é que traem. Mas por que traem? Aliás, por que se trai? Eis uma questão que mereceria um ensaio de no mínimo oitocentas páginas. Em minha modesta opinião, os homens e mulheres traem não porque sintam imperiosa necessidade de variar de parceiro ou parceira por desgaste da relação, irresistíveis apelos externos ou meramente por enfado; para mim, tudo se resume a uma brutal insegurança, que resulta em uma permanente necessidade de afirmação que jamais se esgota - a menos que a pessoa se disponha a fazer análise...de preferência, com um bom analista. Digressão feita, voltemos ao espetáculo.

Antes de mais nada, quero registrar minha admiração pelo enorme trabalho de pesquisa realizado e pelo texto final apresentado, perfeitamente apreensível - não em sua totalidade, naturalmente, o que seria impossível. Mas eventuais lacunas de entendimento não comprometem a compreensão do essencial. E neste particular, fica sempre em aberto a possibilidade de cada espectador construir os seus significados, que variarão de acordo com sua sensibilidade e maior ou menor acúmulo de neuroses.

Com relação à dinâmica cênica, esta está em perfeita sintonia com os conteúdos implícitos. Cenas muito engraçadas se alternam com outras, de grande tragicidade, todas invariavelmente materializadas com inventividade e rigor formal. E me permito citar apenas uma, simplesmente deslumbrante, a que encerra o espetáculo. Nela vemos Romeu e Julieta em seu desfecho trágico. Um pouco atrás, um casal contemporâneo janta em uma mesa, afastados física e emocionalmente, sem trocar uma única palavra.  Romeu e Julieta morrem por amor; o casal, provavelmente, morrerá pela ausência dele.  

Com relação ao elenco, afora a capacidade de mergulharem visceralmente em todas as questões abordadas pelo texto, os intérpretes exibem notável expressividade vocal e corporal, conseguindo conquistar a plateia desde o início e ao longo de toda a montagem. Julio Adrião, Claudia Mele, José Karini e Ângela Câmara se dispuseram corajosamente a uma empreitada repleta de riscos e o resultado obtido evidencia não apenas suas qualidades enquanto intérpretes, mas também como artistas e pensadores do fazer teatral. A todos, portanto, agradeço a maravilhosa noite que me proporcionaram.

Na equipe técnica, Ivan Sugahara assina uma trilha sonora irrepreensível, assim como são irrepreensíveis as preciosas contribuições de Duda Maia (direção de movimento e preparação corporal), Ricardo Góes (direção vocal e pesquisa fonética), André Sanches (cenografia), Renato Machado (iluminação) e Bruno Perlatto (figurinos). Gostaria também de destacar a sensibilidade de Leandro Barreto (técnico de luz) e Luciano Siqueira (desenho de som).

BEIJA-ME COMO NOS LIVROS - Direção e dramaturgia de Ivan Sugahara. Com Ângela Câmara, Claudia Mele, José Karini e Julio Adrião. Teatro I do CCBB. Quarta a domingo, 19h.

 






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