sábado, 18 de novembro de 2017

Teatro/CRÍTICA

"Carolina Maria de Jesus, Diário de Bitita"



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Belo e inesquecível encontro entre palco e plateia



Lionel Fischer



"Em cena, Carolina cata papel nas ruas de São Paulo para sustentar seus três filhos. Os objetos que vai encontrando pelo caminho a remetem aos acontecimentos marcantes de sua vida: a alfabetização, o primeiro contato com os livros, os sonhos da meninice, as festas populares, a enfermidade que a obrigou a mendigar, a prisão injusta, o trabalho na roça, o deboche dos meninos, a religiosidade, os laços afetivos, a mãe lavadeira, o pai ausente, o avô descendente de escravos, as madrinhas".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o contexto em que se dá "Carolina Maria de Jesus, Diário de Bitita", adaptação das obras "Quarto de despejo" e "Diário de Bitita", da escritora mineira Carolina Maria de Jesus (1914-1877). Após cumprir temporada no Teatro Dulcina, a montagem agora pode ser assistida na Sala Municipal Baden Powell. Ramon Botelho responde pela adaptação e direção artística, estando a interpretação a cargo de Andréia Ribeiro.

Dentre as muitas desgraças que podem acometer um ser humano, uma das mais atrozes é nascer no Brasil, ser mulher, pobre e negra. Que destino é reservado a alguém que reúna tais predicados? De uma maneira geral, a prostituição e/ou o envolvimento com drogas. Mas é claro que, embora o preconceito e o racismo continuem presentes em nossa sociedade, muitas mulheres negras e que nasceram pobres conseguiram superar as mencionadas barreiras, e materializar aspirações em princípio só destinadas às que nasceram brancas e não conheceram a pobreza. 

No entanto, existem casos singulares, como o de Carolina Maria de Jesus. Embora tenha nascido negra e pobre, não se prostituiu e tampouco se envolveu com drogas, mas também jamais conseguiu escapar totalmente do enorme contingente de pessoas que da vida só conhecem o seu lado mais amargo. Catou papel pelas ruas de São Paulo para se sustentar e aos três filhos. E incontáveis vezes passou fome. No entanto, quanto isso acontecia, tomava a seguinte decisão: "Quando não tenho o que comer, em vez de xingar ou pensar na morte, eu escrevo". 

A escrita, portanto, foi o antídoto encontrado por Carolina para combater o próprio desespero. E graças a isso, e à providencial ajuda do jornalista Audálio Dantas, que a descobriu em 1958, dois anos depois Carolina viu publicado seu primeiro livro, "Quarto de despejo" (no original, "Quarto de despejo: diário de uma favelada""), publicado em vários idiomas e que a tornou respeitada por escritores e poetas como Clarice Lispector e Carlos Drumond de Andrade. No entanto, e por um desses insondáveis mistérios que parecem só se materializar em nosso país, continuou pobre. Não mais miserável, mas ainda assim, pobre. Mas vamos ao espetáculo, pois tais digressões já me soam um tanto longas...

Ramon Botelho realizou um impecável trabalho de adaptação das obras mencionadas no segundo parágrafo e cujo principal mérito é o de refazer, de forma densa e poética, a trajetória da personagem à medida que ela manipula os objetos que encontrou nas ruas. Ou seja: não estamos diante de alguém que simplesmente nos conta sua história, e sim de alguém cuja memória é ativada por aquilo que constitui seu amargo presente. Sem dúvida, uma opção maravilhosa, plena de teatralidade. E esta também se faz presente na dinâmica cênica, impregnada de uma mescla constante de secura e lirismo, e eventualmente de saborosas passagens em que o humor predomina.

Com relação à performance de Andréia Ribeiro, esta se insere entre as mais expressivas da atual temporada. Exibindo irrepreensível domínio vocal e corporal, grande carisma, forte presença cênica e  total capacidade de entrega à personagem que interpreta, a atriz valoriza ao máximo todas as nuances contidas no texto, assim promovendo um belo e inesquecível encontro entre quem faz e quem assiste. 

Na equipe técnica, Paulo Cesar Medeiros ilumina a cena com sua habitual sensibilidade, reforçando de forma decisiva todos os climas emocionais em jogo. A mesma sensibilidade se faz presente nas colaborações de Marco Lyrio (trilha original), Wagner Louza (figurinos), Sinhá Recicla (adereços), Sidnei Oliveira (visagismo) e Ramon Botelho (cenografia).

CAROLINA MARIA DE JESUS - DIÁRIO DE BITITA - Texto de Maria Carolina de Jesus. Adaptação e direção de Ramon Botelho. Com Andréia Ribeiro. Sala Municipal Baden Powel. Quinta e sexta, 20h.





2 comentários:

  1. Assisti este espetáculo no Teatro Dulcina e saí bastante tocado com o empenho da atriz que arregaçou as mangas e fez este trabalho tomar corpo, bem como, pela sua entrega em cena. Termos urgência em falar das desigualdades sociais, pois o Brasil tende a piorar seus índices com a desmontagem do Estado Democrático de Direito. Parabéns pela crítica, Lionel. Obrigado!

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    1. Anderson amigo,

      te agradeço a gentileza na apreciação de minha crítica.

      abraços,

      eu

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