sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

 Breve ficção sobre algo abominável:

                            O Assédio

Lionel Fischer


Vamos imaginar, inicialmente, uma situação perfeitamente aceitável.  Digamos que eu seja um homem hétero e solteiro, e você uma funcionária igualmente hétero e solteira que trabalha na minha empresa como minha secretária. Um belo dia, eu me surpreendo apaixonado por você e confesso abertamente essa paixão. Na melhor das hipóteses, você também nutre por mim um sentimento análogo, e daí poderia surgir uma bela história de amor. No entanto, pode ser que você jamais tenha sequer cogitado em ter algum relacionamento amoroso comigo e deixa isso bem claro, naturalmente que de forma educada.

Pois bem: se eu for um homem destituído de graves patologias, encararei sua negativa como algo passível de acontecer e continuarei a manter com você um relacionamento saudável e respeitoso, em nada alterando nossa ótima relação pessoal e profissional. No entanto, posso não ser exatamente o que aparento e então o provável é que eu lide mal com sua rejeição. E comece a por em prática uma série de estratagemas visando reverter sua decisão.

A começar pela simulação de que lidei bem com sua recusa, fazendo absoluta questão de me mostrar ainda mais educado do que sempre fui, ainda mais gentil, acreditando que você não perceberá o que se oculta por trás desta perversa mudança de atitude. Mas o fato é que você percebe e começa a se sentir incomodada. Mas segue no emprego, porque precisa dele.

Com o passar do tempo, ao constatar a inutilidade de meu plano inicial, enveredo - sempre tentando ser sutil- para o campo de uma possível promoção, com óbvio aumento de salário. Como nada disso havia até então sido cogitado, é provável que você perceba que eu estou tentando fazer com que você reveja a anterior negativa - afinal, uma promoção é sempre bem vinda, assim como um maior ganho salarial. E seu incômodo aumenta, assim como sua ansiedade. Mas você segue no emprego, porque precisa dele. 

Até que um dia eu te convido para jantar. Não a sós, comigo, pois isso iria assustá-la, mas também com vários funcionários que considero especiais. Afinal, a empresa está aniversariando. No entanto, é possível que você intua o que se esconde por trás deste aparentemente singelo convite, pois você já está na empresa há vários anos e jamais houve qualquer tipo de comemoração coletiva. Mas você precisa do dinheiro que eu lhe pago, e ainda que indecisa e temerosa, você não encontra nenhum argumento crível para recusar tal convite. E vai ao jantar. 

E este transcorre alegremente. Até que chega o momento em que as pessoas começam a ir embora e você esboça o mesmo propósito. Mas eu te digo, sem que ninguém ouça, que teria o maior prazer em levá-la em casa. E, sem que ninguém perceba, afago discretamente sua mão. Nesse momento e já em pânico - ainda que consiga ocultá-lo -, imagino você repasse, numa fração de segundo, todo o esforço que fez para atingir o posto que ocupa na empresa, quantos sacrifícios se fizeram necessários, quantas renúncias se impuseram para que se mantivesse focada em estudar o mais possível para se tornar uma profissional de excelência. E, ao imaginar tais pensamentos, devo admitir que com eles me delicio. 

Alguns minutos se passam e cada vez mais se torna evidente o turbilhão de emoções que assola sua delicada e íntegra alma, como assolaria a delicada e íntegra alma de qualquer jovem mulher que lutou tanto para chegar aonde chegou e subitamente constata que tudo pode desmoronar se não ceder às pérfidas intenções de seu patrão. E, sem nenhum receio de exibir minha verdadeira natureza, mais uma vez me vejo obrigado a confessar o prazer que me dá vê-la nesse estado.

O garçom traz a conta, na mesa só restam eu e você. Eu entrego a ele meu cartão de crédito. Resta saber se você entregará a mim o que decidi que vai entregar. Imagino que sim. A não ser que você opte pela inevitável demissão. Se assim for, não me sentirei particularmente incomodado. Uma próxima secretária haverá de surgir e provavelmente será esperta o suficiente para perceber que, no mundo em que vivemos, certas abjeções se impõem como inevitáveis. 

 



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