“A CIÊNCIA DAS SOLUÇÕES IMAGINÁRIAS:
DIÁLOGO ENTRE PATAFÍSICA E TEATRALIDADE”
Alfred
Jarry (1873-1907) é uma das personalidades mais curiosas e importantes da
história do teatro universal. Encarnação máxima do anarquismo individualista
que permeia todo simbolismo, passados cem anos de sua morte, as provocações que
sua obra apresenta, não foram ainda totalmente processadas no quadro da
contemporaneidade.
Em
Setembro de 1896, publicou “Da Inutilidade do Teatro no Teatro”, no Mercure de France, denunciando, os
recursos estilísticos “horríveis e incompreensíveis” [1]
do teatro acadêmico, advogando uma nova lógica estética orientada pela economia
de expressão a par do exercício intrincado da síntese e com a recusa terminante
da utilização do telão pintado assim como o desprezo pelos efeitos de trompe-l’oeil, que “iludem aquele que vê
grosseiramente, ou seja, que não vê”[2]
Em
dezembro do mesmo ano, estreou
“Ubu-Rei”, sua obra mais reconhecida, no Théâtre de l’Œuvre, em Paris.
A peça, metáfora da opressão e do pai dominador, compõe uma série de
textos, juntamente com “Ubu no Morro”, “Ubu Cornudo” e “Ubu Acorrentado”, além
dos “Almanaques do Pai Ubu”. Este personagem emblemático é a caricatura
selvagem do burguês estúpido e egoísta visto através do cínico olhar de seu
autor. Ubu faz-se a si próprio rei da Polônia, mata e tortura a todos e é
finalmente banido do país. Ele é vulgar e brutal, um tipo monstruoso que
pareceu burlescamente exagerado em 1896, mas que foi profeticamente
ultrapassado pela realidade, em diversos momentos históricos ao longo do séc.
XX.
Há uma
divergência entre biógrafos e estudiosos, sobre a verdadeira autoria
dramatúrgica de “Ubu-Rei”: se foi escrito integralmente pelos Irmãos Morin,
colegas de colégio de Jarry, ou se houve uma criação coletiva entre os três. A
origem da peça surgiu a partir de uma brincadeira juvenil com Hébert, um
grotesco professor de Física que foi representado jocosamente e serviu como
fonte de inspiração para Pai Ubu, assim como a satirização de “Macbeth” de
William Shakespeare,.
L´enfant terrible, como era conhecido no meio
literário e teatral parisiense, andava pelas ruas com as mãos, braços e rosto
pintados na cor verde. Compareceu, certa vez, na platéia de um teatro com a
gravata desenhada no peito da camisa. Tinha também estranhos hábitos de andar
armado. Chegava a percorrer Paris de bicicleta, outro de seus fetiches,
equipado com dois revólveres e uma carabina em punho. Morou em um quarto
minúsculo com um pé direito tão baixo que não era possível ficar ereto no cômodo,
só agachado. Expressava-se sempre com um tom de voz monocórdico, escandindo em
um linguajar pseudo-aristocrático adotando a teatralidade criada para
“Ubu-Rei”. De um alcoolismo insaciável, teve final precoce aos 34 anos, morto,
na miséria, de meningite tuberculosa.
Ao
converter-se em personagem de si mesmo, encarnando no cotidiano Pai Ubu,
representou singularmente, um novo modo de relação entre obra de arte e vida,
símbolo e realidade, criação e delírio, promovendo um sistemático diálogo entre
estes níveis. Antecipou, deste modo, posturas artísticas que ocorreriam décadas
mais tarde.
A nova
teatralidade proposta , essencialmente deu-se em um transbordamento da cena
para o imaginário do espectador, chamando a atenção às interseções entre palco
e platéia, mais especificamente às evidências de que uma teatralidade cênica
provocadora deveria afetar o comportamento do público. Foi o palco pulando para
a vida, causando furor e indignação. Buscou a transcendência do teatro através
da aplicação de uma teatralidade pura, destituída de controle, amoral. Propôs
estabelecer o lugar teatral como o império abstrato da imaginação. Não defendeu
somente a primazia da ficção frente ao naturalismo, exaltou a teatralidade
despojada de recursos estéticos supérfluos, longe da psicologia e do drama
social. O fim maior seria uma resultante cênica que desembocasse em uma
teatralidade alardeada.
Em “Gestes et Opinions du Docteur Faustroll”
(1911), uma novela cuja natureza o próprio nome indica, meio Fausto, meio troll
, lançou as bases que fundamentaram sua teoria Patafísica. Originariamente, foi
Ubu que se doutorava em Patafísica, simplesmente porque Hébert fora um
professor de física. Mas o que fora a princípio uma “burla científica”,
tornou-se mais tarde a própria estética jarryana: “A Patafísica é a ciência das
soluções imaginárias que regula simbolicamente os lineamentos e propriedades
dos objetos descritos por sua virtualidade” [3] .
Seu desejo de construção destrutiva do teatro, demolição das linhas teatrais é
marcado pelo senso de negação de tudo., idéia que se torna o próprio
espetáculo. E quando não resta mais nada no palco que tenha vestígios da
tradição ou de algum tipo de figuração reconhecível, da verossimilhança, ainda
assim sobra o que de mais soberbo deve ser visto: a teatralidade. O palco
revela-se despudoradamente nu, livre, pronto para assumir variadas formas,
polifórmico.
Foi a
partir da publicação de suas Obras Completas e com a conseqüente fundação do
Colégio de Patafísica (1948) que Jarry deixou de ser encarado como um artista
pitoresco e sim veemente, radical e profundo. O Colégio de Patafísica, em
atividade até hoje, do qual Ionesco, René Clair, Raymond Queneau, Jacques
Prévert, Boris Vian foram, entre outros, membros fundadores, representou
importante papel, ressaltando o valor de Jarry como um dos principais
premonitores dos conceitos em que um grande viés da arte contemporânea está
baseada. Trata-se de uma “nova ciência” que propõe a superação da metafísica
buscando a “verdade das contradições e das exceções”. [4]
Ao fazer
valer o insólito, o irracional, o paradoxo que tanto escandaliza a razão,
devemos nos perguntar qual é a medida de resolução desse novo reino. Ubu
pretende transcender Ubu, seu imenso estômago, cuja função digestiva é sua
própria medida, mastigando e remastigando a sua própria excrescência. Para
Jarry a Patafísica através do instrumental imaginário, seria a ponte de
transcendência ilimitada.
A visão
Patafísica também toca a questão do fantástico que o senso comum define como
sendo uma violação das leis naturais, uma manifestação do impossível. Diz a
Patafísica que o fantástico não é uma violação, mas uma revelação radical das
leis naturais. Surge do contato direto com a realidade não filtrada através de
nossos juízos. É portanto um alargamento das leis naturais até onde os
preconceitos não permitem a chegada da fantasia imaginativa. Surge como uma
alternativa de apreciação de fenômenos naturais e humanos baseados
fundamentalmente na análise da irracionalidade concreta de tais acontecimentos
e praticados à luz do humor crítico e do acaso.
A
racionalidade Patafísica descobre que todo ato é defeituoso e traça
investigações acerca do lugar entre as coisas. É a lógica do contraditório.
Todo acontecimento, ainda que elementar,
resulta patafisicamente inesgotável e tolera uma série infinita de
operações que, em si, constituem o fim desta “ciência maior”.
Como
finalização, não poderia me furtar a apresentar alguns pensamentos que
insurgiram dentro de mim, como artista, pesquisador e professor, a partir do
contato com o universo de Alfred Jarry, possibilitando-me reflexões acerca de
alguns aspectos da realidade atual do teatro, assim como conjecturas e conexões
futuras para as artes cênicas. Dentre as questões que me ocorreram, destacaria
as seguintes:
1 - O bem artístico tem natureza distinta de qualquer outra mercadoria,
produto ou serviço. Não nasce de pesquisas de mercado, mas sim da necessidade
expressiva do homem: seus questionamentos, anseios e aspirações da alma. O
teatro caracteriza-se pela singularidade de cada representação, onde o único
elemento imprescindível é o homem – ator, personagem e público. Nenhuma
inovação tecnológica poderá, em tempo algum, substituir a magia da celebração
do instante, em que um indivíduo se coloca sobre um palco e vive outro, para
falar a um terceiro. O teatro constitui-se em uma tentativa de estimulação
metafísica da própria existência. Não existe a cópia, a repetição: tudo é
único. É o oposto da cultura globalizada, é a cultura singularizada.
2 - O teatro de amanhã não poderá escapar de sua tendência filosófica,
que nos ensine a viver e pensar o mundo, para nele encontrarmos nosso lugar.
Será um teatro sábio. Sabedoria acoplada à paixão.
3 - O conflito é a essência do teatro, como o é também da dialética. Mostrar
a luta dos contrários e sua tendência à unidade, de onde decorrem as
contradições existentes, e nascem as oposições e os novos conflitos, eis uma
tarefa apaixonante para o teatro.
4 - A herança Patafísica nos deixa um legado pedagógico para o teatro,
chamando a atenção para sua vocação como Escola de Imaginação, capaz de
estimular a sensibilidade estética e social, de ampliar os limites da
compreensão e da associação de idéias.
5 - Almejo um teatro que não duvide, que seja afirmativo, como preconizou
Jarry. Que saiba todo o tempo de que lado está.
6 - Anseio por um teatro, que mesmo em desespero, lance um grito de
alegria; que, mesmo enclausurado, aponte uma saída.
7 - Anseio por um teatro irresistível.
8 - Talvez o teatro não seja a coisa mais Bela que o homem inventou,
porém é a coisa que mais se parece com a vida. Alfred Jarry, percebeu
profundamente esta identidade e tentou fazer valê-la em todos os seus extremos
e recursos. Violou normas e cânones em prol de um infinito “Mundo Novo” : a imaginação
criadora.
BIBLIOGRAFIA DE REFERÊNCIA
BÉHAR,
Henri – Jarry: le monstre et la
marionnette, Paris, Larousse, 1973.
EVREINOV , Nicolás El Teatro En La Vida , Buenos Aires, Ediciones Leviatán , 1956 .
JARRY,
Alfred. Oeuvres Complètes d‘Alfred
Jarry,Edition du Livre, Lausanne, Montecarlo & Henri Kaeser, , 1948.
___________ Gestes et Opinions
du Dr. Faustroll, pataphysicien , Paris, Fasquelle, 1911.
___________.
Ubu Rei, Porto Alegre, LP&M,
1987.
Nenhum comentário:
Postar um comentário