Teatro/CRÍTICA
"A guerra não tem rosto de mulher"
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Horror e humanidade no Poeira
Lionel Fischer
"A narrativa das guerras é masculina. Na imensa maioria dos casos, conhecemos a história através de depoimentos de homens, sejam eles soldados, comandantes, capitães, presidentes ou historiadores. Recém premiada com o Nobel de Literatura, a escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévich entrevistou centenas de mulheres sobreviventes à Segunda Guerra e transformou os relados no premiado livro A guerra não tem rosto de mulher."
Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima resume o contexto de "A guerra não tem rosto de mulher", em cartaz no Teatro Poeira. Marcello Bosschar responde pela concepção e direção, também participando da dramaturgia coletiva com as atrizes Carolyna Aguiar, Luisa Thiré e Priscila Rozembaum.
Dentre as muitas frases que sempre me geraram perplexidade, duas em especial me incomodam desde a primeira infância: "Isso é coisa de homem" e "Isso é coisa de mulher". E qual seria a razão de tal incômodo? Exceção feita a detalhes anatômicos, e a umas poucas singularidades - homens não menstruam e tampouco engravidam, ao menos por enquanto -, tudo o mais é inerente ao humano, pouco importando as distinções de gênero.
No entanto, há que se reconhecer que, ao longo da História, as maiores atrocidades foram estimuladas ou praticadas por homens, mas não por possuírem pênis e sim porque, na maioria dos casos, detinham o poder. No caso da Segunda Guerra, homens decidiram (com a arrogância e imbecilidade que em geral lhes é inerente) que seus conflitos só poderiam ser resolvidos através das armas.
E quanto às mulheres? Permaneceriam em casa limitadas à esperança de um dia reverem seus pais, irmãos, esposos e amigos? Ou também se envolveriam, ainda que, suponho eu, se dependesse delas uma outra alternativa teria sido buscada? E no caso de se envolverem, estariam apenas destinadas a cozinhar e cuidar dos feridos, ou também iriam para o front? O presente texto deixa claro que as mulheres atenderam a todas as expectativas, sem no entanto renunciar à sua natureza feminina, ou seja, à capacidade que as mulheres possuem de encarar o trágico sem que isso as leve a excluir o amor e a compaixão, dentre muitos outros sentimentos.
Há passagens terríveis neste texto, como aquela em que uma mãe-soldado, imersa em um pântano com seus companheiros e companheiras - todos sitiados por tropas inimigas e tendo que permanecer no mais absoluto silêncio - não vê outra alternativa a não ser afogar seu bebê que chora, posto que do contrário seriam descobertos e mortos. Em outro momento, uma mulher-soldado recolhe feridos e de repente constata que há, entre eles, um soldado inimigo. Ela até pensa em matá-lo - um homem certamente mataria - mas finalmente decide salvá-lo, evidenciando não apenas compaixão, mas talvez a percepção de que, se matasse aquele homem, estaria matando dentro de si toda a sua humanidade.
Em contrapartida, há momentos de enorme alegria, como o surgimento de um amor em meio ao caos, a inenarrável sensação de, após um longo período, voltar a usar roupas íntimas, a felicidade advinda da crença de que as adversidades podem ser superadas e o inestimável poder da amizade. E é justamente esta alternância entre relatos atrozes e outros diametralmente opostos que confere relevância às memórias narradas ou vivenciadas, evidenciando um trabalho dramatúrgico de excelente qualidade.
No tocante ao espetáculo, torna-se evidente que o diretor Marcello Bosschar fez duas claras opções. A primeira foi a de impor à cena uma dinâmica totalmente centrada no trabalho das atrizes, dispensando qualquer aparato cênico - tal opção me pareceu totalmente acertada, como se verá mais adiante. A segunda foi a de excluir qualquer tipo de referência histórica ou geográfica, ainda que saibamos que tudo se passa durante a Segunda Guerra.
Em meu entendimento, tal opção nos faz refletir não apenas sobre os horrores de uma guerra específica, mas sobre o horror inerente a todas as guerras. E quanto à dinâmica cênica, há passagens mais vigorosas e expressivas do que outras, mas de uma maneira geral as virtudes predominam. Só me permito fazer uma singela sugestão: acredito que o espetáculo deveria terminar quando as atrizes começam a citar os nomes das mulheres que tombaram em combate, momento especialmente forte e emocionante, e não na alucinada dança que se segue, para a qual não encontrei o menor sentido.
Com relação ao elenco, Luisa Thiré optou por uma linha de atuação que prioriza o extravasamento de fortes emoções, não raro impregnadas de lágrimas. É comovente vê-la entregar-se de forma tão visceral, mas acredito que ao menos em algumas passagens a atriz poderia exercer um maior controle sobre as ditas emoções, o que talvez tornasse ainda mais contundente algumas de suas memórias. Carolyna Aguiar e Priscila Rozembaum também exibem visceral capacidade de entrega, mas tive a sensação de que, sem renunciar à via emotiva, também priorizaram algo que talvez possa ser definido como uma trágica serenidade, o que contribui para estimular indispensáveis reflexões.
No tocante à equipe técnica, Aurélio de Simoni ilumina a cena com austeridade, dispensando inócuas mirabolâncias luminísticas. Kika Lopes responde por figurinos idênticos e que sugerem uniformes de prisioneiras, ou algo parecido, fato que não entendi, posto que as personagens relatam fatos já ocorridos há algum tempo. Marcello Bosschar (trilha sonora), Carolyna Aguiar (preparação corporal) e Sonia Dumont (preparação vocal) contribuem de forma decisiva para o sucesso desta oportuna empreitada teatral.
A GUERRA NÃO TEM ROSTO DE MULHER - Texto de Svetlana Aleksiévich. Concepção e direção de Marcello Bosschar. Dramaturgia coletiva de Bosschar, Carolyna Aguiar, Luisa Thiré e Priscila Rozembaum. Com Carolyna Aguiar, Luisa Thiré e Priscila Rozembaum. Teatro Poeira. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h.
terça-feira, 11 de julho de 2017
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