quarta-feira, 26 de julho de 2017

Teatro/CRÍTICA

"Dois amores e um bicho"

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Dilacerado brado contra a intolerância

Lionel Fischer


"São três os personagens: pai, mãe e filha. Uma visita ao zoológico, onde a filha do casal trabalha, desencadeia uma história enterrada há quinze anos, quando o pai matou seu cachorro a pontapés por considerá-lo homossexual. Ao passarem pela jaula do orangotango, isolado dos outros animais por ter molestado outro macaco, a família relembra esse episódio traumático do passado. A lembrança desencadeia uma série de conflitos familiares, deixando manifestar o ódio cotidiano, intolerância generalizada, o fascismo e a animalidade que fazem parte do homem contemporâneo, transformando o zoológico cênico proposto pelo autor em uma metáfora de nossa própria sociedade". 

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o enredo de "Dois amores e um bicho", do dramaturgo venezuelano Gustavo Ott. Em cartaz na Sala Multiuso do Sesc Copacabana, a montagem da Notória Companhia de Teatro leva a assinatura de Danielle Martins de Farias, estando o elenco composto por Adriana Seiffert (Mãe), Lucas Gouvêa (Pai) e Julie Wein (Filha) - José Karini está no elenco como stand in de Gouvêa, e foi com ele que assisti o espetáculo.

Como explicitado no parágrafo inicial, uma prosaica visita ao zoológico onde Julie trabalha como veterinária desenterra conflitos supostamente sepultados no passado. De acordo com as normas do zoológico, se um animal molesta outros deve ser isolado. No presente caso, o Pai não chegou a molestar ninguém, mas sentiu-se ultrajado com a possível homossexualidade de seu cachorro e então matou-o a pontapés, ficando detido por 45 dias. 

Pois bem: e se, ao invés de seu cachorro, o pai descobrisse, por exemplo, que sua filha era homossexual? Será que também a mataria a pontapés? Isso jamais poderemos saber, mas certamente a bárbara violência cometida contra o animal traz embutida uma das mais terríveis mazelas que assolam a humanidade desde sempre, e mais ainda nos tempos atuais: a intolerância.

Diante do ocorrido, alguém poderia ser levado a crer que, ao matar seu cachorro homossexual, o pai poderia ter sido movido por um impulso inconsciente cujo objetivo seria o de matar sua própria e latente homossexualidade. Mas, não sendo este o caso, a que atribuir uma atitude tão descabida, perpetrada por um homem até então considerado normal? E aqui reside, em minha opinião, o cerne da questão.

Exceção feita a casos evidentemente patológicos, todos nós acreditamos piamente em nossa própria normalidade, e portanto não nos julgamos capazes de cometer ações que entrem em frontal desacordo com as normas que regem a sociedade em que estamos inseridos. Mas será que isso constitui realmente uma verdade? Ou será que, dependendo de uma ou mais circunstâncias específicas, todos nós também sejamos capazes de explicitar uma intolerância até então insuspeitada?

Particularmente, acredito que sim. E nisto reside o alcance da peça, pois do contrário tudo se limitaria à exposição de um caso específico, inerente a um homem subitamente tomado por um bizarro e injustificado furor homicida. Neste sentido, suponho que o objetivo do autor tenha sido o de, por um lado, manifestar seu repúdio contra qualquer forma de intolerância, e, por outro, lançar uma espécie de alerta a todos nós, posto que somos constituídos de tudo que é inerente ao humano, seja para o bem ou para o mal. E se nossas escolhas nos parecem corretas, isso não significa que outras também não o sejam, e aprender a lidar com as diferenças é essencial para o estabelecimento de uma fraterna convivência entre os homens. 

Com relação ao espetáculo, Danielle Martins de Farias impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico. Desde o início, e ao longo de toda a montagem, as marcações traduzem de forma altamente expressiva as tensões entre os personagens, aí incluindo-se as passagens em que eles se dirigem diretamente ao público. Outro ponto extremamente positivo a destacar é o vigor com que o texto é proferido, assim como a intensidade rítmica, fatores que contribuem decisivamente para manter a plateia em um estado de tensão semelhante ao dos personagens. Tais virtudes, naturalmente, têm que ser compartilhadas com o elenco, cuja atuação irretocável está à altura deste espetáculo que, sem a menor dúvida, se insere entre os melhores da atual temporada.

Na pele do Pai, José Karini exibe a melhor atuação de sua carreira, conseguindo valorizar ao máximo todas as nuances de uma personalidade dilacerada por suas próprias contradições. O mesmo se aplica a Adriana Seiffert, impecável tanto nas passagens mais agressivas quanto naquela em que sofre brutal agressão do marido. Quanto a Julie Wein, suas virtudes enquanto instrumentista (toca piano e violoncelo, além de cantar) se equivalem à sua performance, impregnada de dor, perplexidade e ferrenha determinação em esclarecer o sombrio episódio do passado. Aos três, portanto, agradeço o maravilhoso encontro que tivemos. 

Na equipe técnica, Felipe Habib responde por ótima direção musical, essencial para o fortalecimentos dos múltiplos climas emocionais em jogo, o mesmo aplicando-se à soturna iluminação de Renato Machado, estruturada a partir de contrastes de claro/escuro. Outra contribuição notável diz respeito à cenografia de André Sanches, que, basicamente composta de cubos cinzas e gaiolas vazias, estabelece sensível paralelo entre uma jaula e o apartamento da família. Cabe também destacar os excelentes figurinos de Raquel Theo e a magnífica direção de movimento de Toni Rodrigues.

DOIS AMORES E UM BICHO - Texto de Gustavo Ott. Direção de Danielle Martins de Farias. Com Adriana Seiffert, José Karini e Julie Wein. Sala Multiuso do Sesc Copacabana. Sexta e sábado, 19h. Domingo, 18h.

    








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