sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Teatro/CRÍTICA

"Nem um dia se passa sem notícias suas"

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Comovente embate com a memória


Lionel Fischer


"Joaquim, um bem sucedido cirurgião, por volta dos 50 anos, acabou de perder o pai. E agora tem que se desfazer de todas as coisas que pertenciam a ele - a casa, a coleção de discos, todas as coisinhas. À sua volta, Joaquim tem seu irmão caçula, Juliano. Entretanto, nesse momento extremo de mudança, uma surpreendente revelação emerge. O tempo da peça é o tempo da memória. Joaquim vive um delírio antes que todo o seu passado, sua origem, o abandone de vez no presente. Nesse jogo entre atores e a platéia, teremos a possibilidade de repensar a família, suas mudanças e suas esperanças".

O trecho acima, extraído do release que me foi enviado, sintetiza o essencial da presente trama. E se mais não explicita, é apenas porque isso privaria o espectador de uma inesperada e impactante surpresa. De autoria de Daniela Pereira de Carvalho, "Nem um dia se passa sem notícias suas" acaba de estrear na Sala Tônia Carrero do Teatro do Leblon. Gilberto Gawronski assina a direção do espetáculo, estando o elenco formado por Edson Celulari e Pedro Garcia Netto.

Quem já viveu essa situação sabe o quanto é difícil retornar à casa paterna - no caso, recém vendida - quando todos já se foram. Cada objeto, cada canto da residência, o cheiro dos móveis, enfim, tudo contribui para o aflorar de lembranças, algumas agradavéis, outras extremamente penosas. Como todos sabemos, lidar com o real é sempre mais fácil do que com o impalpável, com a memória de coisas e afetos que, queiramos ou não, praticamente se materializam diante de nós. O que fazer diante de um tal quadro? Tentar manter a lucidez? Ou, ainda que involuntariamente, se deixar levar por uma espécie de delírio afetivo, capaz de tornar reais coisas ou pessoas que já não mais existem? É o que acontece com Joaquim, renomado cirurgião, especialista em transplante de corações, que não conseguiu salvar o irmão Juliano, que se matou aos 37 anos.

E aqui me vejo forçado a abandonar o enredo, pois, como disse ao comentar o release, ir mais além privaria o espectador de uma impactante surpresa. Mas posso, evidentemente, afirmar que Daniela Pereira de Carvalho escreveu um texto belíssimo, impregnado de múltiplas variações emocionais que muito me comoveram. E que certamente geraram um sentimento análogo nos que estiveram presentes à estréia. Bem escrito, contendo ótimos personagens e diálogos fluentes e emocionados - e eventualmente muito divertidos -, o texto se insere entre os melhores da atual temporada.

No tocante à encenação, Gilberto Gawronski investe todas as suas fichas no jogo entre os intérpretes, dispensando inúteis mirabolâncias formais. E justamente em função desta opção é que a inesperada surpresa causa um grande impacto, posto que não "preparada". Ou seja, o irreal se sobrepõe ao real de forma tal que se torna totalmente crível, o que só contribui para estimular nossa fantasia e capacidade de vivenciar experiências próprias com a mesma intensidade do protagonista. Além disso, e certamente pelo fato de ser um excelente ator, Gawronski extrai atuações maravilhosas dos dois intérpretes.

Na pele de Joaquim, Edson Celulari exibe aqui um dos melhores trabalhos de sua bem sucedida carreira de ator. Vivendo intensamente todas as emoções implícitas, mas sem jamais apelar para soluções melodramáticas, Celulari convence plenamente em todos os momentos. O mesmo se aplica a Pedro Garcia Netto, irretocável tanto em sua interpretação de Juliano quanto na do filho de Joaquim, a ambos impondo características totalmente diversas e sempre condizentes. Em resumo: uma ótima oportunidade para se aferir a beleza e profundidade de uma visceral contracena.

Com relação à equipe técnica, Nelo Marrese responde por figurinos em total sintonia com a personalidade e condição social dos personagens. Já a cenografia de Gawronski, embora contendo elementos condizentes com o contexto, lança mão de alguns objetos iluminados de forma feérica, por razões que não cheguei a compreender - é possível que a intenção tenha sido a de estabelecer um contraste entre o passado e o presente, mas ainda assim tal opção me soou um tanto estranha. Paulo César Medeiros ilumina a cena de forma sutil e delicada, exceção feita aos tais objetos, e aqui não tenho como saber se atendeu a um pedido do diretor ou foi sua a iniciativa. Rodrigo Marçal assina uma trilha sonora eficiente, mas que poderia, a meu ver, dispensar uma ou outra obviedade - batidas de coração, por exemplo, quando tal órgão é mencionado. Finalmente, Márcia Rubin presta preciosa colaboração na direção de movimento.

NEM UM DIA SE PASSA SEM NOTÍCIAS SUAS - Texto de Daniela Pereira de Carvalho. Direção de Gilberto Gawronski. Com Edson Celulari e Pedro Garcia Netto. Sala Tônia Carrero do Teatro do Leblon. Quintas, 18h (a partir de 15/09), sexta e sábado às 21h30, domingo às 20h.

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