quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Teatro/CRÍTICA

"Na selva das cidades"

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O homem e suas impossibilidades


Lionel Fischer


Ambientada em Chicago (1912-1915), a peça tem como ponto de partida o encontro entre Shlink, um negociante malaio de madeiras, de 51 anos, e o jovem George Garga, na livraria em que este trabalha. Com a desculpa de querer comprar um livro, Shlink oferece dinheiro a Garga para que dê sua opinião a respeito de um livro de histórias de mistérios. Este se recusa, deixando claro que suas opiniões não estão à venda. Mas Shlink já sabia perfeitamente disso e usou tal estratagema apenas para dar início ao "combate".

A partir daí, uma avalanche de fatos se acumulam: Shlink e seus capangas convertem Jane, amante de Garga, e Marie, sua irmã, em prostitutas. A primeira casa-se com George e a segunda apaixona-se inutilmente por Shlink. Este acaba passando seu negócio para Garga, que o arruína e acaba por ser preso. Na cadeia, Garga denuncia Shlink como sedutor das moças e traça um plano para que Shlink seja linchado no exato momento em que for posto em liberdade, após três anos de reclusão.

E mais situações poderiam ser citadas, mas suponho que estas facultem um razoável resumo do enredo de "Na selva das cidades", terceira peça escrita por Bertolt Brecht (1898-1956) e no momento em cartaz no Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil. Aderbal Freire-Filho assina a direção da montagem, estando o elenco formado por Daniel Dantas, Fernanda Boechat, Inez Viana, Joelson Medeiros, Leonardo Netto, Marcelo Olinto, Maria Luisa Mendonça, Milton Filho e Patrick Pessoa.

Muito já se escreveu sobre este texto e por críticos e ensaístas infinitamente mais competentes do que eu, tais como Robert Brustein, Martin Essling etc. Seja como for, e se reduzida à sua essência, a peça me parece ter como tema central a total impossibilidade que os homens possuem de estabelecer um real e enriquecedor contato entre si, em todos os planos: sexual, social e espiritual.

Temas pertinentes, sem dúvida, mas trabalhados de forma um tanto tortuosa e ambígüa. Afora o fato de o autor estender em demasia algumas cenas, mesmo quando muitas delas exibem diálogos que já deixavam claro serem fruto de um jovem que se tornaria, sem a menor dúvida, um dos maiores dramaturgos do século XX - ao longo de sua carreira, Brecht escreveu 40 peças.

Com relação à montagem, Aderbal Freire-Filho impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com as premissas básicas do autor, que fazia questão absoluta de retirar do teatro seu caráter ilusório, para tanto valendo-se de vário recursos - as cenas são anunciadas, os atores permanecem quase todo tempo no palco, mesmo quando não estão atuando etc. 

Isto posto, cumpre ressaltar a expressividade da maior parte de suas marcações, a precisão com que trabalha os tempos rítmicos e sua notável capacidade de extrair atuações fortes, seguras e convincentes de todo o elenco. Neste particular, e por uma questão de espaço - esta crítica será publicada no Jornal Folha Zona Sul - gostaria de destacar as performances de Maria Luisa Mendonça, Marcelo Olinto e Daniel Dantas.

Maria Luisa, que dá vida a Marie, irmã de Garga, nos oferece um retrato comovente da trajetória de uma jovem ingênua, romântica e sonhadora que é forçada a se prostituir, mas que mesmo com a lama até o pescoço, de certa forma ainda consegue manter limpas as unhas nas pontas dos dedos. A mesma eficiência se faz presente na performance de Marcelo Olinto - o ator materializa toda a complexa trajetória de seu personagem, que vai da  integridade até o mais selvagem desespero, sendo este impregnado de grande violência e não menor sarcasmo.

Quanto a Daniel Dantas, a primeira coisa a ser destacada é seu impecável trabalho corporal, que sugere sutilmente um chinês sem partir para nenhum tipo de caricatura. Outro aspecto importante, e sempre presente nos trabalhos do ator, é sua extraordinária capacidade de atuar em silêncio, sempre preenchendo-o de múltiplos significados. Finalmente, sua abordagem de Shlink traduz o que imagino que Brecht pretendeu ao escrever o papel: um ser dotado de grande inteligência, possuidor de fina ironia e capaz de desenvolver idéias e pensamentos dificilmente refutáveis, ainda que eventualmente cruéis ou repugnantes. Enfim, alguém que poderíamos considerar completamente amoral ou, se preferirem, absolutamente realista. Um trabalho brilhante, sem dúvida, que se insere entre os melhores da atual temporada.

Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo as contribuições de Aderbal Freire-Filho, Nehle Franke, Patrick Pessoa e Roberto Franke (tradução), Fernando Mello da Costa (cenografia), Juliana Nicolay (figurinos), Maneco Quinderé (iluminação) e Marcelo Alonso Neves (direção musical).

NA SELVA DAS CIDADES - Texto de Bertolt Brecht. Direção de Aderbal Freire-Filho. Com Daniel Dantas, Marcelo Olinto e outros. Teatro I do CCBB. Quarta a domingo, 19h.

                  

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