quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Duas peças de Plínio Marcos

Décio de Almeida Prado


          1967 ficará como o ano no qual as companhias paulistas descobriram que representar Plínio Marcos é um bom negócio tanto artístico quanto econômico, tentando recuperar em alguns meses de intensa exploração da sua dramaturgia os longos anos em que se pensou justamente o contrário. Parece ter havido um remorso coletivo em relação a este escritor que os críticos não suspeitavam que existisse entre nós e que permaneceu congelado por tanto tempo.

          Agora, deu-se o degelo - e o rio das produções plínio-marquianas começa a avolumar-se, ameaçando transbordamento. Esta crônica dedica-se a duas de suas últimas peças, estreadas quase simultaneamente: Homens de Papel, no Teatro Maria Della Costa, e Quando as Máquinas Param, no Teatro de Arte, anexo (subsolo) ao Teatro Brasileiro de Comédia.

          Há sempre duas línguas coexistindo mais ou menos pacificamente no mesmo país: a que se escreve e a que se fala. Mas a literatura sente necessidade às vezes de uma reaproximação com a fala popular para não perder de todo o contato com as realidades diárias e concretas. O modernismo, entre outras coisas, significou um desses reajustes de linguagem.

          A primeira qualidade de Plínio Marcos é a de injetar no diálogo teatral, como Nelson Rodrigues havia feito antes dele, uma dose maciça daquelas sintaxes de exceção que Manuel Bandeira reclamava na sua Poética. As personagens de Homens de Papel e de Quando as Máquinas Param não falam português, e nem mesmo brasileiro: falam gíria.

          Mas a gíria, sendo uma linguagem completa em si mesma, não pode ser introduzida em porções moderadas, a título de exemplificação ou ornamento. Usada entre aspas, reduzida a citação, como se fosse uma palavra estrangeira para a qual faltasse equivalência, destoa, soa falso, traindo o caráter de concessão feita ao erro popular.

          Plínio Marcos usa a gíria sem nenhuma condescendência intelectual, sem olhá-la de cima para baixo, porque ela é a única linguagem que ele conhece e domina a fundo, a única capaz de exprimir o seu pensamento com vigor e naturalidade. As suas idéias já surgem moldadas pelas frases feitas, por essas saborosas locuções populares do momento que, nada dizendo de preciso, dizem tudo conforme a expressão e o contexto em que são empregadas.

          Parece que durante os trinta e um anos de sua existência ele não fez outra coisa senão ouvir e armazenar esse tesouro de modismos que faria inveja a qualquer folclorista profissional. Mas, tornamos a repetir, a gíria em seu teatro nunca se torna demonstração didática ou diversão erudita: brota sempre espontânea, viva, ligada à personagem e à situação dramática, fazendo o público rir - inclusive dos palavrões - por perceber com tanta clareza não só como o povo fala mas sobretudo como sente e pensa.

          É que ele domina igualmente uma segunda linguagem, sem a qual essa primeira pouco significaria: a do palco. As suas personagens recortam-se com facilidade e nitidez perante o público, as relações entre elas - de afeto ou desafeto, de superioridade ou inferioridade - definem-se prontamente, o jogo das segundas intenções reluz através das palavras e atos. É um teatro de ator, no sentido de ter sido escrito por um ator e também no de servir o ator: um teatro imaginado para o palco, na medida do palco, feito para ser representado.

          As suas duas últimas peças, no entanto, não nos parecem ter a força e a penetração de Navalha na Carne e Dois Perdidos Numa Noite Suja. Houve algum progresso - mas em extensão, não em profundidade. O quadro se alargou consideravelmente, escapando à peça de um só ato e dois ou três personagens, passando a abranger novos tipos humanos, novas regiões sociais, mas perdeu certamente em dois pontos capitais: densidade psicológica e tensão dramática.

          Homens de Papel traça um panorama pitoresco e amargo dos catadores de papel numa cidade desumana como S. Paulo. O conflito novamente se arma, como nas peças anteriores, em termos de personalidades fortes e personalidades fracas: verdugos e vítimas. O medo ante a força bruta (ou econômica), a astúcia que procura contornar o obstáculo sem atacá-lo de frente, ou então justificar com palavras a própria impotência e covardia, são os motivos dominantes dessa subhumanidade fisicamente e moralmente miserável. (É a Ralé, de Gorki, alguns degraus mais abaixo na escala social e sem as tiradas filosóficas. Na peça russa era gente decaída; aqui, gente pobre decaída).

          O princípio de revolta contra a injustiça e a opressão econômica só pode vir de fora, de uma família do campo ainda não contaminada pelo cinismo e pelo negativismo da grande cidade. Deveria ser este o fator positivo, do ponto de vista social e moral. Mas ao crítico cabe registrar a contragosto que Plínio Marcos não se revela tão convincente na virtude como no vício: a sua heroína peca por excesso de perfeições, por conter um elemento de idealização quase romântica - o campo visto por um homem da cidade como Plínio Marcos - que se choca com o realismo cru das outras personagens.

          Defeito que é ainda agravado pelo desempenho. Maria Della Costa tem a simplicidade camponesa, a fé ingênua em si mesma necessária ao papel, mas interpreta-o em escala de grandeza - uma espécie de Joana D'Arc das sarjetas - de dimensões já épicas. E diminui assim a veracidade da personagem, em confronto com os maus, com os viciosos, com os fracos, com os doentes, todos eles trabalhados em minúcia pelo texto, desde a debilidade mental de Walderez de Barros até a tortuosidade infantilóide de Oswaldo Louzada (uma das melhores criações do espetáculo), desde a sem-vergonhice simpática de Ruthinéia de Morais até a safadeza pueril de Sílvio Rocha, desde a brutalidade sem requintes de Elias Gleiser até a revolta sopitada e humilhada de Eduardo Abas. Fernando Balleroni, em contraposição, como homem  do campo, não chega sequer a existir em cena. Peças como esta, que exigem caracterizações aguçadas, não servem ao seu feitio plácido.

          A cenografia e figurinos de Clóvis Bueno e a direção de Jairo Arco e Flexa, ambas de boa qualidade, temperam o naturalismo do texto com uma nota mais colorida, mais teatral, chegando por vezes às proximidades do grotesco. O espetáculo lembra um pouco, pela vibratilidade, pela facilidade de comunicação, as primeiras encenações de Flávio Rangel (Gimba, O Pagador de Promessas).

          Quando as Máquinas Param é dirigida por Plínio Marcos numa linha menos imaginosa, menos plástica, mais apegada à realidade cotidiana. Também nesta peça, de apenas um ato e duas personagens, a virtude, representada pela mulher, parece menos autêntica, não diremos que o vício, mas do que a fraqueza masculina. No homem, nos seus movimentos ascendentes e descendentes de humor, nas suas explosões afetivas, na sua linguagem sempre correta, sempre figurativa, está todo o interesse da peça.

          Ele é o italianinho do Brás de Antônio de Alcântara Machado (e não importa que não seja italiano e nem more no Brás) em versão 1967: mais agressivo, mais desorientado do que há 40 anos, tentando sem sucesso encaixar a sua personalidade um tanto agreste, eco sensível das injustiças e sofrimentos do mundo, nos moldes pré-fabricados da vida moderna. O final pessimista e melodramático, em contraste com o equilíbrio entre alegria e tristeza das cenas anteriores, convence menos: é sempre difícil a passagem do psicológico ao social, do individual ao coletivo, de peça realista à peça de mensagem política.

          Entre Míriam Mehler e Luís Gustavo não há afinidades artísticas de temperamentos: temos a impressão algo disparatada de um operário da Mooca casado com uma mocinha de Perdizes. O texto indica esta diferença de educação, comum entre o homem e a mulher na mesma classe social - ma a encenação não precisava acentuá-la tanto. Ele é verdadeiramente neo-realista, no sentido italiano: um ator que consegue mostrar com total credibilidade a face real do povo. Ela tem de se contentar com a parte mais fraca: o texto só lhe reserva sentimentos impecáveis.

          Plínio Marcos tem aquela franqueza no falar que o público tanto apreciava em Abílio Pereira de Almeida. São autores sem papas na língua. Mas com uma diferença essencial: as personagens de Abílio frequentavam o Jockey-Club, ao passo que o protagonista de Quando as Máquinas Param torce para o Coríntians. Esta diversidade de clubes ocasiona volumes de análise social.
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Extraído de Exercício Findo. Editora Perspectiva.







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