quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Mestre ou louco?

Martin Esslen


          Poucos meses antes de sua morte, a "Radiodiffusion Française" pediu a Antonin Artaud que preparasse um programa para a série La Voix des Poètes; ele escreveu e gravou um poema radiofônico para quatro vozes, xilofone e percussão, que intitulou Pour en finir le jugement de Dieu (Para acabar com o julgamento de Deus). O programa deveria ser tansmitido a 2 de fevereiro de 1948 mas, no dia anterior, o diretor-geral da "Radiodiffusion Française" mandou cancelá-lo, alegando que era blasfemo e obsceno e representaria intolerável ofensa aos ouvintes.

          A intensão era claramente a de também destruir a gravação dessa produção escandalosa. Apesar disso, cópias clandestinas chegaram até nós. Uma delas - posteriormente reproduzida em fita cassete, o que muito prejudicou sua qualidade - está em meu poder. Assim posso ouvir a própria voz de Artaud a declamar seu texto estranho e violento e a soltar gritos selvagens, lancinantes, inarticulados - explosões de tão profunda intensidade da angústia para além das palavras, que fazem gelar o sangue: é como se todo o sofrimento humano, toda a carga acumulada do gênero humano, raiva frustrada, tormento e dor estivessem comprimidos nesses guinchos torturados, primários.

          Seria extremamente fácil desprezá-los como simples ulular demente de um louco. É fora de dúvida que contêm um elemento de insanidade mental; mas há neles muito mais do que simples loucura. Contudo, se não se trata apenas de loucura, o que será?

          Uma resposta a esta pergunta poderia fornecer explicação para o impacto imenso, surpreendente e dificilmente compreensível que Artaud tem produzido na geração formada após o seu falecimento em 1948, impacto que, sem dúvida, o credencia a ser visto como um dos "mestres modernos" e se manifesta em numerosas e diferentes esferas: certamente no teatro, mas também na poesia, na crítica literária, na psicologia, na ideologia política, na filosofia, no culto à droga e na busca de estilos de vida opcionais. A própria frequência com que o nome de Artaud é invocado na França, nos Estados unidos e em muitos outros países ocidentais faz dele uma figura cuja influência deve ser reconhecida entre as forças que moldam o pensamento e o sentimento do nosso tempo e, ao menos em certa medida, contribuem para o seu clima intelectual.

          Contudo, se Artaud forma entre os mestres modernos, não é nada fácil dizer em qual das categorias reconhecidas de realização cabe a sua contribuição. Ele não é um pensador, com o crédito da produção de um corpo coerente de conhecimento original ou de haver rasgado novos campos de pesquisa; nem foi um realizador, um homem de ação, herói manipulador de acontecimentos, influente sobre o curso da História; e embora tenha sido certamente um poeta de grande poder, não é sua poesia que lhe explica a influência.

          Seus escritos sobre teatro têm influído consideravelmente, mas sua obra existente neste domínio é geralmente reconhecida como um insucesso, e devendo ser visto antes como inspirador da obra dos outros do que como um grande orientador por seus próprios méritos. Neste ponto, parece-se com as poderosas figuras que, embora sem produzir algo como um sistema de pensamento tangível, comprovável, atuam como catalizadores e estímulo para os outros, ao desvendar novas áreas à especulação e dirigir a atenção para novas maneiras de ver - profetas de novas visões, como Nietzsche ou Marshall McLuhan.

          Assim como estes, Artaud foi pioneiro de um novo enfoque, inventor de novo vocabulário. Esta é uma contribuição verdadeira e importante; apesar disso, não explica a influência mais ampla e mais profunda de Artaud em áreas bem distanciadas do teatro.

          Acima de tudo, acho que Artaud é exemplo de outro e mais misterioso tipo de personalidade, com maior influência e impacto: um desses mestres cuja influência provém não tanto do que tenham logrado ou feito concretamente, em termos tangíveis, quanto daquilo que são e tenham sofrido. A influência de poderosas figuras desse tipo deriva, em última instância, da imagem própria que legaram e que se tornou, de alguma forma e misteriosamente, a encarnação encapsulada, nítida, sintética, de apreensão imediata, de todo um complexo de atitudes, idéias e preceitos contidos nessa imagem.

          Tais personalidades irradiam uma força imensa e exercem influência de longo alcance porque sua imagem se tornou um símbolo, metáfora poética concisa de sua vida inteira, de seu caráter e ensinamento. Ao pensar-se em Artaud, ocorre imediatamente essa sua imagem, melhor dito, uma entre as duas imagens que passaram a representá-lo e à sua experiência de vida: o jovem monge, belo e espiritual, ao lado de Santa Joana que é amarrada ao poste, no filme La Passion de Jeanne d'Arc, de Carl Theodor Dreyer, o rosto magro e ascético, os olhos inflamados de paixão, captados em close-ups irresistíveis; ou a face vincada, devastada do velho acabado e desdentado que nos fita dos auto-retratos feitos por Artaud nos últimos anos de sua vida, após emergir de uma década de confinamento em manicômios. Ambas essas imagens permanecem gravadas na memória. São inesquecíveis.

          Entre os grandes escritores e profetas, Artaud é único, porque foi ator de cinema e sua imagem viva, em movimento, permanece conosco, assim como sua voz gravada; isto contribui certamente para o surgimento de sua imagem como uma força a ser tida em conta e para sua crristalização como símbolo de uma atitude diante da vida. Que não se negue importância à aparência de uma tal figura.

          Artaud, teórico do teatro, incansável em acentuar o primado da realidade concreta do corpo sobre o simples e cálido sopro do discurso e do pensamento abstrato, representa ele próprio a concepção de que a aparência do homem pode conter e exprimir sua verdade essencial.

         Teria jamais Che Guevara, revolucionário malsucedido e pensador sem originalidade, adquirido a influência que exerceu entre os jovens da geração de 1968, não houvesse sua imagem - o belo rosto martitizado, de seu corpo assassinado - seduzido a imaginação e encarnado o complexo conjunto de doutrina, paixão e estilo de vida?

          Algumas dessas imagens-símbolos podem adquirir sua força por mero acaso. Não foi assim com Artaud. Ele moldou deliberadamente a própria imagem, com plena consciência do que fazia. Entre a face do jovem monge de 1928, cheio de sentimento, e o rosto do mártir, desdentado e devastado, de 1948, há toda uma vida de sofrimento que Artaud via como sua realização artística definitiva: Não me basta mais a tragédia no palco, vou transferi-la para minha própria vida.

          Ele planejou sua vida, assumiu e suportou seu sofrimento como uma criação proposital, uma obra de arte. E a dupla imagem que permanece conosco condensa e sumariza toda a sua existência, é, em certo sentido, aquela obra de arte ou, ao menos, uma metáfora dela.

          Imagens do Homem de tal complexidade interior, concisão e força expressiva são a matéria de que se fazem os mitos. Algumas dessas imagens são criadas pela própria História e a destilam em símbolos abrangentes, universalmente compreendidos: Santa Joana, a moça em uniforme de soldado cavalgando à frente dos exércitos libertadores; São Sebastião, crivado de flechas; Lenin, em pose oratória, a cabeça projetada à frente, o braço erguido num gesto ardoroso.

          Outras dessas imagens geradoras de mitos são criações deliberadas: Alfred Jarry feito Ubu, autor transmutado em sua própria ficção; ou Barbey d'Autrevilly, eterno dândi literário, a passear em Paris com sua lagosta pela trela; ou Chatterton, que se fez a imagem do jovem poeta martitrizado. Tais imagens-feitas-mitos podem tornar-se objetos de culto: o que todas elas, cada qual em seu próprio nível, têm em comum é, de fato, o mistério da encarnação - um corpo de idéias, preceitos, experiências tornadas concretas, feitas de carne; a história de uma vida e uma morte comprimidas numa única e memorável estampa, capaz de provocar imediata resposta emocional.

          Numa tal imagem, a palavra, o conceito é tornado palpável e ganha presença física. O Verbo encarnado, o Salvador na Cruz, é o maior e o mais poderoso de todos esse símbolos. O fenômeno existe, porém, numa multidão de níveis diferentes, até o mais humilde e trivial. No outro extremo do espectro, o último degrau da escada, estão as encarnações, criadas artificialmente, das aspirações da mente das massas, figuras de culto como James Dean ou Marilyn Monroe.

          Estranhamente, Antonin Artaud foi um ator e um profeta, imagem na tela tremeluzente e santo martirizado, figura na qual o fingimento e os vislumbres profundamente estéticos, filosóficos e humanos se mesclam: um rosto fino, um sábio, um mestre e um lunático, todos em um só.

          Com sua lucidez exepcional - a lucidez do louco, dizem alguns - o próprio Artaud jamais pôs em dúvida que seu impacto como artista e mestre dependia da própria capacidade de encarnar magistério e arte em sua personalidade - Onde outros buscam criar obras de arte, eu não aspiro senão a mostrar meu espírito...Não concebo uma obra de arte dissociada da vida - proclamava ele já em 1925, antes de chegar aos trinta anos de idade.

          Portanto, qualquer tentativa de apresentar ou compreender Artaud deve ter como ponto de partida a sua vida. Ele é o verdadeiro herói existencial: o que fez, o que lhe aconteceu, o que sofreu e o que foi são infinitamente mais importantes do que tudo quanto tenha dito ou escrito. Na verdade, suas opiniões são tão voláteis, tão contraditórias, que seria fácil provar, à base de citações de suas cartas e obras publicadas, ter sido ele um cristão profundamente devoto e praticamente, e também um ateu blasfemo que com isso se gloriava; que tanto pregava a revolução violenta, quanto rejeitava toda ação política declarada; via a salvação no excesso sexual e na mais louca indulgência dos sentidos, e encarava a sexualidade como fonte última de todos os males que assaltavam a humanidade; era um líder surrealista, e considerava os participantes desse movimento uma ralé de pretensiosos vigaristas; e ainda toda uma série de proposições contraditórias.

          Na verdade, cada um desses pronunciamentos somente pode ser compreendido a partir de uma situação da vida, do contexto existencial que o gerou. É ocioso argumentar, como fazem os que consideram Artaud útil escora para suas causas particulares, que ele estava lúcido e na plena posse de suas faculdades mentais ao expressar a opinião que lhes interessa citar, e completamente louco e alheio ao que dizia, ao externar ponto de vista oposto. A verdade é que sustentava todas as suas opiniões com idêntica e apaixonada sinceridade, no instante em que as expressava, e que é impossível traçar uma linha reta e nítida entre seus pensamentos de "sanidade" e os outros de "loucura", se realmente o conceito de loucura pode ser mesmo validamente aplicado a uma personalidade como a dele.

          Artaud, porém, encarna mais - e mais complexos - conceitos e problemas do que ele próprio jamais se daria conta. Seus sofrimentos, por exemplo, corporificam e exemplificam, de forma espantosamente clara e concentrada, uma das questões mais ardorosamente debatidas e significativas que surgiram em nosso tempo: Artaud fornece um foco e um exemplo primacial à controvérsia sobre a natureza da insanidade, na qual Michel Foucault, na França,  e R. D. Laing e Thomas Szasz, no mundo de fala inglesa, desempenham um papel tão proeminente, controvérsia que faz surgir problemas muito mais amplos que o da saúde mental e contém uma crítica fundamental de toda a nossa sociedade e modo de vida. Similarmente, Artaud, viciado em drogas e vítima delas, encarnou, muito antes de essas questões assumirem sua importância atual, todo o complexo e controverso problema das drogas e da cultura ligada às drogas.

          Houve ocasiões, durante os anos de sua internação em diversos asilos de loucos, em que Artaud esteve convencido de suportar literalmente o peso de todos os pecados da humanidade; de estar faminto porque o mundo comia seu alimento, de ser envenenado pelo esperma e pelo excremento que todo um mundo impuro despejava sobre ele. E quando, por fim, conseguiu reconquistar sua liberdade, identificou-se com Van Gogh, um grande artista confinado em manicômios e levado ao suicídio pela sociedade.

          Mais ainda do que Van Gogh, ele se tornou, para o nosso tempo, a encarnação do indivíduo solitário, perseguido e vitimado por sua individualidade e estilo de vida pelos defensores das convenções e do decoro. Daí seu apelo à esquerda radical, revolucionária. Perseguido, respondeu com a raiva de um implacável perseguidor. As imensas energias acumuladas da agressão sem limites que ressoam nos gritos selvagens e nos guinchos da minha fita gravada continuam a alimentar as forças da dissenção radical.

          Uma tal habilidade para preservar e liberar novamente enormes forças psíquicas é a marca distintiva do verdadeiro mito. Artaud, encarnação de uma multidão de ideias e experiências, é um dos heróis arquétipos, míticos - ou vítimas sacrificiais - de nossa época. A criação desse mito e a imagem que o corporifica é a realização de sua vida.

          Como ocorre com os heróis de todos os mitos, a única trilha de acesso à compreensão do que ele representa, do que a imagem significa, é acompanhar a história da vida, do martírio e da morte do herói.
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Extraído de Artaud, Editora Cultrix, Editora da Universidade de São Paulo, 1976.










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