quarta-feira, 6 de março de 2013

Homo Sum


de Lionel Fischer


Personagens: Apresentador / Marilu / Rostaldo

Cenário: um auditório de TV. Dois microfones fixos.

(Escuta-se o prefixo do programa “Homo sum humani nihil a me alienum puto”. O Apresentador surge com os dois locutores. Ele agradece as palmas gravadas etc. Os locutores se colocam diante de seus microfones. O Apresentador fala segurando um microfone com fio)

APRESENTADOR - É isso aí, meus amigos: Homo sum humani nihil a me alienum puto! Ou seja: sou homem, nada de humano me é estranho! A tradução é feita, naturalmente, para aqueles que estão assistindo ao nosso programa pela primeira vez e que portanto desconhecem o nosso lema, o prefixo que origina e justifica nosso encontro semanal. Como de hábito, a nossa produção selecionou duas cartas, dentre as milhares que nos foram enviadas. E delas faremos uma leitura sintético-emocional e em seguida devolveremos a solução. Senhorita Marilu: estamos prontos?

MARILU (Lendo a carta. Fundo musical melancólico) - “Já não sei mais o que fazer. Estou desesperada. Minha convivência com papai atingiu um ponto insustentável. Mamãe morreu de parto e desde então temos sido nós dois, apenas. Nós dois no sentido literal. Ele me proíbe tudo, tem ciúmes de tudo. Embora seja riquíssimo, me obriga a viver praticamente na miséria. E como se isso não bastasse, ainda controla o meu dia nos mínimos detalhes. Já tentei inúmeras vezes escapar, mas ele equipou nossa casa com os mais modernos dispositivos de segurança, todos eles importados, o que me impossibilita a fuga. Essa é a maneira em que ele investe sua fortuna incalculável, com o objetivo de impedir que eu desenvolva as minhas potencialidades. Tenho sete anos de idade e já penso freqüentemente na morte. Um dia, em meio a uma crise de nervos, confessei-lhe toda a minha desdita. Ele, aparentemente comovido, disse que me amava. Não acreditei, pois toda a vida ele me mentiu. Logo em seguida ele caiu doente e nada se modificou. Atualmente ele desliza pela casa numa cadeira de rodas enferrujada, comprada numa liquidação, que faz um barulho insuportável. E mesmo assim, semi-inválido, continua atazanando a minha pessoa, já grotescamente perturbada. O que o senhor me aconselha? Devo ter ainda alguma esperança ou é melhor dar cabo de uma vez de minha existência fracassada?”

APRESENTADOR - Não, não, absolutamente! De jeito nenhum, minha jovem refém involuntária. O que está em jogo não é o fracasso da sua existência, mas o triunfo do poder econômico em sua expressão mais torpe. (Palmas) O seu pai sabe que bode só dá chifrada em quem anda a pé e se aproveita disso. Sabe que quem tem dinheiro toma até sorvete no inferno e se aproveita disso. Ele é avarento e se estivesse ao seu alcance acenderia o fogo atritando as unhas. Tudo isso é pra lá de óbvio. Mas o que fazer diante de um tal quadro, se todos sabemos que os cinzeiros e os ricos, quanto mais cheios mais sujos? A sua situação é verdadeiramente inquietante. E o estado de saúde de seu pai também me parece coerente, pois o mentiroso, quando diz a verdade, normalmente adoece. Ele afirma que a ama. Mas que espécie de amor é esse, afinal? Câmera 1 em mim. Só o meu rosto. (Muda de tom. Lento, sinistro) Agora eu me dirijo diretamente a você, industrial da clausura. Você sim, que tenho certeza que está me vendo e ouvindo num canto qualquer da sua masmorra medieval. Pare de deslizar pelo porão e fixe os seus olhos nos meus. (Mais rápido e agressivo) Eu sei que você é um inválido, mas isso não me serve de consolo, pois o diabo, mesmo quando descansa, amola as moscas com o rabo. Portanto, chegou o momento de tomar vergonha, demônio. Respeite esse querubim de asinhas chamuscadas pela tua prepotência! Fique sabendo que eu estou e estarei sempre ao lado dos que sofrem! (Palmas arrebatadoras. Entra o prefixo musical do programa) Obrigado, meus amigos. E embora eu saiba que recalcar um minuto de cólera equivale a economizar cem anos de arrependimento, diante de uma situação como a dessa pequenina mártir o fremir de indignação dá mostras de caráter. E eu fremi! Fremi ou não fremi? (Palmas ainda mais arrebatadoras) Vade retro, Satane! (Delírio sonoplástico. Depois de um tempo...) Vamos agora à nossa segunda carta. Senhor Rostaldo, estamos prontos?

ROSTALDO (Com fundo musical melancólico) - “Tenho atualmente 97 anos de idade. Há 14 me apaixonei por uma criatura. Isso significa que desde os 83 anos minha vida se transformou num verdadeiro calvário, com sofrimentos só comparáveis aos de Jó, como dizia o saudoso Nelson. Ela tem, no momento, 22 anos. Incompletos. O senhor acha que a diferença de idade é de fundamental importância num relacionamento de casal? O amor não teria o poder de reduzí-la a uma insignificância sem maior relevância? Afinal, o que são sete décadas de diferença quando existe um sentimento que transcende não só o tempo como o próprio espaço? Já não sei mais o que fazer. Tentei tudo. Comprei roupas na Company. Tornei-me ouvinte do Van Hallen. Até um baseado eu apertei outro dia, para usar uma expressão que lhe é cara - a ela, naturalmente. E o que consegui? Endividar-me por completo, comprometer os tímpanos e ficar mareado uma semana inteira. Ajude-me, por favor. Será que terei que completar um século carcomido por uma tal angústia?”

APRESENTADOR - Não, não, absolutamente. De jeito nenhum, meu fóssil querido. Meu papiro atônito. Tudo se arranja na vida. No seu caso, o mais recomendável é ter paciência, saber esperar, dar tempo ao tempo. Eu compreendo a sua situação: ela é de fazer chorar bacalhau em porta de venda. E eu sei que o senhor deve estar sofrendo mais que sovaco de aleijado. Mas eu lhe digo: sua missão é grandiosa, exemplar, atípica! Ao invés de enfrentar moinhos de vento, o senhor se propõe a colocar suspensório em cobra, não é mesmo? Mas eu lhe sugiro uma mudança de tática. Vade retro, Satane! Não se acanhe tanto. Não lhe faça todas as vontades. Trate-a com mais firmeza. Lembre-se que coices de garanhão para a égua carinhos são. E não se comporte como um patriarca. Seja viril, insinuante. Vai ver que ela também não tem grandes opções e quando a jabuticaba é pouca a gente engolhe o caroço, não é verdade? Mas se essa mudança de estratégia não der resultado, abandone esse projeto. Afinal, normalmente, homem velho e mulher nova, ou corno ou cova! E não fique deprimido. Sorria. Levante a cabeça, se os músculos do seu pescoço ainda o permitirem. E lembre-se, à guisa de despedida e de estímulo: há sempre um chinelo velho para um pé doente! (Palmas arrebatadoras. Entra o prefixo, o Apresentador agradece e em meio a piruetas sai de cena com os locutores)

FIM

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