terça-feira, 5 de agosto de 2014

Teatro/CRÍTICA

"Da vida das marionetes"

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Dilacerada reflexão sobre a alma humana



Lionel Fischer



Peter é um empresário rico e bem-sucedido, casado com a fotógrafa de moda Katarina. Ambos vivem um casamento aparentemente perfeito. Aos poucos, porém, percebemos que ambos são emocionalmente impotentes, padecem de insônia e tédio, e a relação entre ambos está apoiada em destrutiva dependência mútua. Mas será que essa infelicidade conjugal poderia justificar o fato de Peter assassinar a prostituta Ka e depois sodomizar o cadáver? Ou será que o crime deve ser creditado à impossibilidade do protagonista estabelecer um equilíbrio mínimo entre sua persona social e os impulsos contraditórios que atormentam sua alma?

Tais respostas, evidentemente, não posso fornecer, ainda que mais adiante me permita formular uma hipótese. Mas certamente cada espectador chegará a uma conclusão após assistir "Da vida das marionetes", adaptação teatral do roteiro homônimo do filme de Ingmar Bergman. Em cartaz no Mezanino do Espaço Sesc, a peça tem direção de Guilherme Leme (codireção de Miwa Yanagizawa) e elenco formado por Arnaldo Marques (Tim, amigo de Katarina), Luiz Furlanetto (Jensen, psiquiatra de Peter), Milena Toscano (Katarina, mulher de Peter), Pedro Osório (Peter), Sandra Barsotti (Cordéia, mãe de Peter) e Claudia Mauro (Ka, a prostituta). 

Da mesma forma que no filme, a presente adaptação começa pelo crime - aqui não vemos a prostituta sendo morta e sodomizada, apenas Peter contemplando o cadáver, mesma imagem que encerra a montagem. A partir daí, a narrativa vai e volta no tempo, constituindo uma espécie de investigação sobre as possíveis causas que teriam possibilitado o bárbaro e aparentemente injustificado assassinato. Mas talvez uma das pistas esteja no longo monólogo de Tim. Homossexual confesso, assim ele sintetiza seu estado de espírito:

"Há forças que me movem e que não consigo controlar. Médicos, amantes, comprimidos, drogas, álcool, trabalho. Nada ajuda. São forças secretas. Têm nome? Não sei. Talvez seja o processo de envelhecimento. Não tenho controle sobre essas forças. Eu me aproximo do espelho e olho para a minha cara, que se tornou tão familiar. E chego à conclusão de que esta combinação de carne, sangue, nervos e ossos reúne duas pessoas incompatíveis. De um lado, o sonho de intimidade, de ternura, interesses comuns. Do outro a violência, a obscenidade, o horror e a morte. Às vezes penso que têm a mesma origem. Não sei. Como poderia saber?"

Peter não é homossexual, mas mesmo que fosse isso em nada alteraria a hipótese que formulo, pois o que está em causa não se atrela a opções afetivas, mas a algo que em muito as transcende. É possível que Peter tenha atingido o limite extremo de sua resistência frente aos contraditórios embates que o dilaceram e o crime tenha sido sua única alternativa de ao menos aliviá-los. E se Tim talvez jamais pratique um crime dessa natureza, nada me impede de acreditar que um dia possa criar circunstâncias para que venha a ser assassinado. Assim, e ao menos em alguma medida, ambos estariam irmanados, posto que impregnados da mesma pulsão de morte. 

Com relação ao espetáculo, Guilherme Leme impõe à cena uma dinâmica austera, com todas as cenas estruturadas em torno de uma grande mesa retangular. Ali os personagens dialogam, quase sempre sem se tocar, e a distância física reforça a quase que total impossibilidade de comunicação e entendimento. Outra proposta do encenador diz respeito ao tom com que são proferidos os diálogos, em geral em tom médio, como se maiores ênfases já não fossem capazes de produzir efeitos significativos em almas aparentemente conformadas com o próprio vazio existencial.

No tocante ao elenco, Pedro Osório compõe muito bem o atormentado Peter, contido em seus gestos e impondo à fala uma espécie de neutralidade que traduz o esgotamento interno do personagem. Milena Toscano materializa com segurança a frieza de Katarina, mas acredito que, nas raras passagens um pouco mais exacerbadas, ainda possa encontrar uma forma mais contundente de expressar os sentimentos da personagem, sem renunciar, evidentemente, à frieza que lhe é inerente. 

Na pele de Cordélia, Sandra Barsotti transmite com vigor as principais características de uma personalidade perplexa com o bizarro destino do filho. Luiz Furlanetto encarna com grande eficiência o brilhante, cínico e lúbrico psiquiatra, com Claudia Mauro valorizando ao máximo sua breve participação como Ka, seja no momento em que dança - o que acredito que poderá invadir os sonhos de boa parte da plateia - como nas falas em que evidencia seu estranhamento com Peter. Com relação a Arnaldo Marques, acredito que o ator exiba aqui o melhor desempenho de sua carreira, impondo ao dilacerado Tim doses equivalentes de humor e humanidade. 

Na equipe técnica, Fernando Alexim responde por cenografia que atende a todas as necessidades da montagem, a mesma eficiência presente nos figurinos de Ana Roque, na iluminação de Vitor Emanuel, na trilha sonora de Marcelo H - também responsável pela bela programação visual - e na coreografia de Rossela Terranova, de extrema e pertinente sensualidade.

DA VIDA DAS MARIONETES - Texto de Ingmar Bergman. Direção de Guilherme Leme (codireção de Miwa Yanagizawa). Com Arnaldo Marques, Luiz Furlanetto, Milena Toscano, Pedro Osório, Sandra Barsotti e Claudia Mauro. Mezanino do Espaço Sesc. Quarta a sábado, 21h. Domingo, 20h. 





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