terça-feira, 3 de novembro de 2015

Teatro/CRÍTICA

"Cenas de um casamento"

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Bela encenação de adaptação ousada



Lionel Fischer



Inicialmente exibida na televisão sueca em seis episódios ("Inocência e pânico", "A arte de empurrar os problemas para debaixo do tapete", "Paula", "O vale de lágrimas", "Os analfabetos" e "No meio da noite em uma casa escura em algum lugar"), a série "Cenas de um casamento", de Ingmar Bergman,  acabou virando filme homônimo e de idêntico sucesso. O presente espetáculo é baseado no roteiro do filme e sua tradução e adaptação ficaram a cargo de Maria Adelaide Amaral.  Bruce Gomlevsky assina a direção do espetáculo (Teatro Ipanema), estando o elenco formado por Juliana Martins (Marianne) e Heitor Martinez (Johan).

Antes de tecer considerações sobre a montagem, julgo oportuno discorrer sobre a presente adaptação. No original, eram nove personagens. Aqui, apenas dois: o casal Marianne e Johan. Isso significa que muitas passagens importantes foram suprimidas, como a entrevista que ambos concedem a uma emissora de televisão para falar sobre o sucesso de seu matrimônio e a visita que recebem de um casal amigo que, durante o jantar, acaba revelando que seu casamento passa por gravíssimas dificuldades.

Isto posto, caberia a pergunta: a omissão de tantas cenas e personagens compromete a essência do projeto de Bergman? A resposta, em princípio, deveria ser sim - ao menos para aqueles que desejassem ver no palco uma transposição do filme. Ocorre, porém, que Maria Adelaide Amaral optou por centrar toda a ação na relação do casal e ao fazê-lo, é claro que de forma consciente, sabia que tal redução implicaria no sacrifício de muitas passagens importantes. 

Ainda assim, todas as reduções efetuadas não me impediram de me envolver profundamente com a trajetória do casal, com seus encontros e desencontros, suas tentativas desesperadas (sobretudo as de Marianne) de reverter um quadro irreversível, suas reflexões sobre o amor, a deterioração do sexo, a dificuldade de educar as filhas, a constante necessidade de aprovação por parte de suas famílias, a massacrante rotina, a inexorável passagem do tempo e assim por diante. Em resumo: não padeci de nenhuma orfandade com relação ao original e consegui usufruir plenamente o belíssimo texto de Bergman, que aqui mereceu ousada adaptação.

Com relação ao espetáculo, o maior mérito de Bruce Gomlevsky não se prende apenas à expressividade de suas marcações e à precisão dos tempos rítmicos, mas fundamentalmente à sua profunda compreensão do caráter, aspirações, carências e contradições dos personagens, o que certamente o ajudou a extrair ótimas atuações do elenco.

Na pele de Johan, Heitor Martinez consegue materializar, com grande sensibilidade, a curva emocional de um homem que, a princípio aparentemente conformado com sua vida e seu casamento, e sugerindo que jamais tomará qualquer atitude capaz de reverter uma situação que parece fadada a se perpetuar, mais adiante é aquele que age - arruma uma amante, sai de casa e tenta trabalhar no exterior. E ao empreender essa mudança, o ator materializa pertinentes alterações vocais, corporais e rítmicas, o que me leva a considerar irrepreensível sua performance.

Juliana Martins é uma atriz que sempre me dá a sensação de que considera perfeitamente possível que cada apresentação sua possa ser a última, ou seja: entrega-se sem reservas, de forma absolutamente visceral, nada economizando e ofertando ao público tudo o que de melhor possui. No presente caso, esse tudo é vasto: valendo-se de sua inteligência cênica e de seus muitos recursos vocais e corporais, a atriz nos brinda com uma composição cuja origem não advém de impulsos exteriores, mas parece surgir de suas entranhas. Sob todos os aspectos e sem sombra de dúvida, estamos diante de uma das melhores performances da atual temporada.

Na equipe técnica, considero excelentes a tradução de Maria Adelaide Amaral, a trilha sonora original de Alex Fonseca, a iluminação de Elisa Tandeta e o figurino de Ticiana Passos. Quanto à cenografia de Pati Faedo, só encontro uma explicação para a permanente mobilidade da mesma: uma tentativa de sugerir que, à medida que os personagens mudam, os espaços que ocupam também se alteram. Mas, ainda que tenha sido esta a ideia, não a considero relevante para a apreensão dos diversificados conteúdos em jogo.

CENAS DE UM CASAMENTO. Texto de Ingmar Bergman. Tradução e adaptação de Maria Adelaide Amaral. Direção de Bruce Gomlevsky. Com Juliana Martins e Heitor Martinez. Teatro Ipanema. Sexta a domingo, 20h.





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