quarta-feira, 20 de julho de 2022

 Cenas para Estudo


                        “A cerimônia do adeus” 

                                                    (Mauro Rasi)


(trecho da cena 1, ato I). OBS: aqui Juliano é ainda um adolescente

 (Juliano entra na sala, com ar de enfado. Aspázia precipita-se sobre ele, feito uma leoa, tentando fazê-lo abrir a boca.).

ASPÁZIA – Abre a boca! Abre a boca!

JULIANO – O que é isso? Me larga!

ASPÁZIA – Bebeu: tô sentindo daqui!

JULIANO – Foi gemada que eu tomei, com vinho do Porto.

ASPÁZIA – Cínico! Seu primo contou que você bebe na escola! (Agarrando a bolsa dele e remexendo.) Solta! Deixe eu ver o que tem aí dentro!

JULIANO – Não tem nada aí. Tem só caderno, lápis...

ASPÁZIA (Encontrando uma garrafa) – Conhaque? Então é verdade? Bebendo conhaque na escola, ordinário, cafajeste! E eu não queria acreditar...

JULIANO – Olha aí: tá deixando cair tudo...

ASPÁZIA – O que é isso aqui? (Folheando.) Cheio de vagabunda nua!

JULIANO (Tomando de volta) – Meu ‘Cahier du Cinema’.

ASPÁZIA – Fazendo seu pai gastar dinheiro: se não quer estudar, vai trabalhar, vagabundo! O que é isso aqui: ‘O Estrangeiro’? Isso é coisa da escola?

JULIANO – Foi a professora de francês que pediu, para fazer um trabalho sobre Camus...

ASPÁZIA – Vá atrás dessa gente, desses escritores: belas idéias tão te enfiando na cabeça! O piano tá lá: fechado! Nunca mais tocou nele. A freira me telefonou, dizendo que você nem aparece mais no Conservatório! Olha só pros seus dedos: tudo manchado de nicotina! E não era você que dizia que ia ser concertista, que ia ser um Rubinstein?

JULIANO – Desisti: agora quer ter a bondade de me devolver o Camus?

ASPÁZIA – Eu vou queimar isso!

JULIANO – Como já queimou os meus Ginsberg, os meus Faulkner, os meus Gide, os meus...

ASPÁZIA – Faço isso pro seu bem. Essa literatura está te deixando doente. Olha pro seu estado: amarelo, abatido, pálido, magro, cheio de olheiras de tanto ficar trancado naquele maldito quarto. Parece um velho!

JULIANO – Estou destinado à literatura! Quero ser ao mesmo tempo Spinoza e Stendhal.

ASPÁZIA – Vai namorar, menino! Vai se divertir! Vai sair com as moças! Larga essa vagabunda francesa...

JULIANO – Que ‘vagabunda francesa’?

ASPÁZIA – Essa tal de Simone de Buvuá. (Faz careta de desdém.) Ah, mas eu vou entrar lá dentro, abrir bem aquela janela, arejar bem aquele túmulo, pegar aquelas porcarias todas e fazer uma fogueira!

JULIANO (Erguendo, ameaçadoramente, a garrafa contra ela) – Pára! No meu quarto, ninguém entra!

ASPÁZIA – Ergue a mão pra sua mãe: ergue, indecente – que Deus te dá um castigo que você vai ver só!

JULIANO – Olha que eu queimo os seus livrinhos de sacanagem, hein? (Aspázia olha-o, surpresa. Ele confirma.) De sacanagem, sim, que a senhora lê e a tia Brunilde tem. E não adianta encapar eles e esconder não, que eu achei ‘O Garanhão’ e ‘Os Insaciáveis’ de Harold Robbins! Vocês já leram a obra completa dele!

ASPÁZIA – Tá querendo dar um show, tá? Dá: dá logo um show para a vizinhança toda ouvir e saber o demônio que você é.

JULIANO – Sua obscurantista! Sua Hitler!

ASPÁZIA – Ofende! Ofende que eu te dou um tapa na cara e ainda deixo a marca da minha mão no seu rosto, demônio!

JULIANO (Puxando) – Larga o meu livro, sua puta! (Aspázia dá-lhe uma bofetada no rosto.) Rasgou! Rasgou! Agora eu vou rasgar o seu! (Corre para apanhar o livro escondido.).

ASPÁZIA – Juliano: é da sua tia! Larga! Lar... (Dá-lhe várias bofetadas no rosto.).

JULIANO (Chorando) – É por isso que eu não gosto de voltar pra casa. Essa casa é um inferno! Um inferno! (Corre para o quarto.).

ASPÁZIA – Juliano! Juliano!... (Ele entra no quarto, que está totalmente escuro, fecha a porta, ofegando. Volta-se e acende a luz.).

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                                         “A lira dos vinte anos”

                                    (Paulo Cesar Coutinho)

Ato I, Cena 1

DIOGO – Lucas! Lucas!

LUCAS – Você não vem estudar?

DIOGO – Hoje não dá, ta uma lua incrível, desce aqui.

LUCAS – Amanhã tem prova.

DIOGO – Esquece um pouco esse vestibular, quero falar com você.

LUCAS – Peraí. (Desce)

DIOGO – Acabei de ler o Maiakovski. Os brocratas só podiam mesmo odiar um poeta daqueles, eles mataram o cara. Eu entendi tudo.

LUCAS – Tudo o quê?

DIOGO – Tudo. Olha que lua incrível. Eu quero essa luz pro meu filme. Você ama Godard? Eu amo, é um gênio, revolucionou o cinema.

LUCAS – Diogo, posso te falar uma coisa?

DIOGO – Claro, fala!

LUCAS – Você não acha que o mar tem a ver com liberdade?

DIOGO – Acho. Você já resolveu o que vai fazer na vida?

LUCAS – Diogo, eu quero fazer a Revolução.

DIOGO – Você não tem medo de morrer?

LUCAS – Não...tenho medo de não viver.

DIOGO – Por que você resolveu estudar História?

LUCAS – Pra entender as coisas. Você também, não é?

DIOGO – É, mas às vezes eu não sei se é por isso. A História deles é o contrário da vida.

LUCAS – Mas pra gente é uma arma. Outro dia perguntaram na prova em que ano caiu o Império Romano do Ocidente. Avaliando que a gente, os bárbaros,  já estamos às portas da Universidade, respondi que o Império vai cair agora, em 68.

DIOGO – Avaliando que quem corrije as provas é a civilização decadente, você vai é levar pau no vestibular. Cara, você voa durante as aulas, não sei como é que se dá bem. Quando entrei pro curso te achei muito estranho.

LUCAS – Eu também te achei diferente, tão sério com 17 anos...às vezes o professor tava lá falando e eu ficava te olhando...

DIOGO – Eu notava que você me olhava. Por quê?

LUCAS – Eu gosto de olhar as pessoas...mas você também me olhava. Por quê?

DIOGO – Também gosto de olhar as pessoas. Gosto de te olhar, sim. E isso me dá medo.

LUCAS – Por que medo?

DIOGO – Porque é novo, não sei definir, não sei aonde vai me levar...e de todo jeito eu quero ir.

LUCAS – Eu também tinha medo que você não sentisse assim, que a gente nunca fosse conversar sobre isso.

DIOGO – Uma vez, quando eu era garoto, meu pai me pegou abraçado com outro menino. Botou ele pra fora de casa e me deu uma surra. Nem sabia por que tinha apanhado, e nós nunca mais falamos nisso. Tive namoradas e gostava delas, mas nunca deixei de achar que o amor acontece com qualquer pessoa, assim...

LUCAS – É, o amor acontece assim...

DIOGO – E agora quero correr todos os riscos por você.

LUCAS – Me dá um beijo (Diogo beija Lucas na boca)

 

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As Guerreiras do Amor


(Aristófanes, adaptação de Domingos Oliveira)

 

CENA 11

 

(Cinésias entra)

 

 

CINÉSIAS - Oh! destino mau! Estou tonto de desejo. Não ando, latejo. Eu não sou eu, sou meu pau. (Mirrina  põe um pano sobre a cabeça)

MIRRINA - Bom dia, cidadão.

CINÉSIAS - Por piedade, vá buscar Mirrina. Sou o marido dela.

MIRRINA - Sua esposa não tira seu nome da boca. Quando tem fome, colhe no pé uma cereja e diz: “Ah, se Cinésias estivesse aqui...”.

CINÉSIAS - Ela fala assim? Vá chamá-la depressa.

MIRRINA (Tirando o pano) - Se eu for, o que você dá para mim?

CINÉSIAS - Mirrina! Sei de teu compromisso, mas tens de me satisfazer.

MIRRINA - Tire a mão de cima de mim. Não dei permissão.

CINÉSIAS - Mas nosso amor não te importa?

MIRRINA - Não enquanto continuar a guerra.

CINÉSIAS - Então acabamos com ela! Mas antes vem cá e deita comigo.

MIRRINA - Está bem. Mas onde poderíamos deitar. Aqui no chão?

CINÉSIAS - Nunca vi pedras tão macias.

MIRRINA - Mas aqui é descampado, vão nos ver...

CINÉSIAS - Então ali, na gruta de Pã.

MIRRINA - Depois de tantos meses, seria um desperdício. Espera, vou buscar o colchão. (Sai)

CINÉSIAS - Não precisa! (À platéia) Ela vai ceder!

MIRRINA (Volta) - Aqui está. Agora não falta nada. Já volto. (Sai).

CINÉSIAS - Mirrinha, tem dó.

MIRRINA (Volta) - Pronto, pode deitar. Meu Deus, será possível que nem um travesseiro você mereça? Afinal são dois meses de espera. (Sai)

CINÉSIAS - Pra quê que eu vou deitar a cabeça?

MIRRINA (Volta) - Pronto, agora já tem tudo, meu amo e senhor. Mas, por Zeus...estou tonta de emoção, como fui esquecer o cobertor? (Sai)

CINÉSIAS - Quem está com frio? Eu ardo!!!

MIRRINA (Voltando) - Não quer um pouco de perfume?

CINÉSIAS - Com esse vai e vem, temo a ejaculação precoce.

MIRRINA - Querido, agora está tudo aqui. Uma cama feita e uma mulher sabida. Você já me prometeu muita coisa que não cumpriu. (Sai)

CINÉSIAS - Puta que o pariu!   Não tem solução!

 

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                      OS SETE GATINHOS  

                                            

                                  (Nelson Rodrigues)

                                      

                                    CENA 24, um pouco reduzida

(Quarto de Silene)

AURORA – Quem é o cara?

SILENE – Viajou.

AURORA – Escuta: você confia em mim?

SILENE – Confio.

AURORA – Então quero saber tudinho!

SILENE – Depende.

AURORA – Depende, não senhora! Se você começar a me esconder os troços, eu largo você de mão e olha: depois do que houve quem é aqui tua amiga no duro e te defende?

SILENE – Eu sei que você gosta de mim, nunca neguei!

AURORA – Então me diz o nome dele.

SILENE – Se ele é casado e não pode casar outra vez? Que interessa o nome?

AURORA – Você é menor e ele tem responsabilidade!

SILENE – Faz de conta que eu digo o nome e vocês fariam o quê?

AURORA – É o seguinte: eu tenho um namorado que não custa pra dar uma surra, ou, até, liquidar um cara!

SILENE – Vocês então mandariam dar uma surra no meu...

AURORA – Surra, uma conversa! Um tiro! Uma bala!

SILENE – Matar?

AURORA – O cara leva um tiro sem saber como e fica por isso mesmo!

SILENE – Ele não tem culpa! A culpada sou eu!

AURORA – Abusou de você, uma menina, uma criança! É um canalha!

SILENE – Não! Não! (Abraça-se aos joelhos da irmã)

AURORA – Mas que é isso? Maninha, levanta! (Silene ergue-se)

SILENE – Aurora, agora eu sou mulher igual a vocês e até mais, porque estou grávida! Quero saber de ti o seguinte: você tem namorado. Gosta dele? É amor?

AURORA – Demais.

SILENE – Pois se você ama, eu também amo! Ele não é canalha, não! Fui eu que insisti e quis ter o filho!

AURORA – Ele te desgraçou!

SILENE – Pelo contrário! Eu não sou desgraçada! Você é desgraçada?

AURORA – Não, eu feliz!

SILENE – E eu também!  

AURORA – Escuta: o que ninguém entende é como você, interna, sem sair, e foi acontecer isso! Você conheceu o rapaz onde? Ou já conhecia?

SILENE – Não conhecia.

AURORA – É do colégio?

SILENE – Mora perto.

AURORA – Continua.

SILENE – O colégio dá fundos para a casa dele. Ele passava sempre pela calçada e, uma vez, me olhou.

AURORA – Bonito?

SILENE – Lindo!

AURORA – E vocês se encontravam onde?

SILENE – A gente conversava no muro, que é meio baixo. E um dia eu pulei o muro e...

AURORA – Mas que perigo!

SILENE – Fomos para a casa dele, pro quarto da empregada, que estava de folga. A mulher dele não sai da cama.

 AURORA – Que falta de juízo!

SILENE – Eu disse que ele é diferente dos outros, porque tem a lágrima mais linda que eu já vi!

AURORA – Já chorou na tua frente?

SILENE – Ele estava me beijando e, de repente, começou a soluçar, depois foi parando...e eu vi uma lágrima, aqui, no cílio...

AURORA – Uma lágrima? Ele chora por um olho só?

SILENE – E quando ele passa, na calçada do colégio, as meninas dizem: “Lá vem o homem vestido de virgem!”

AURORA – Por que “vestido de virgem”?

SILENE – Porque só usa terno branco!

AURORA – Anda de branco e chora por um olho só!

SILENE – E, na última vez, fomos a um apartamento em Copacabana e...

AURORA – Chega. Não preciso saber mais nada!

SILENE – Mas eu não te disse o nome dele.

AURORA – Não interessa o nome! (Vai para a porta)

SILENE – Tem um apelido gozado!

AURORA – Não quero saber, nem de nome, nem de apelido!

SILENE – Mas eu confio em ti!

AURORA – Deixa pra lá! Escuta: você não me sai do quarto, não fala, não diz nada. Resolvo tudo. Vou lá, invento um troço, digo que o homem viajou...

SILENE – Aurora, você é um anjo! E olha: você vai ser madrinha do meu filho, eu faço questão! (Aurora sai do quarto)

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                                 O Jardim das Cerejeiras

(Tchecov)

                                 

Cena de Ânia e Vária (Ato I)

 

Vária - Graças a Deus vocês chegaram! Até que enfim! Você, aqui em casa comigo. (Acariciando Ânia). Meu coração voltou, minha lindeza!

 Ânia - Eu já estava que não podia mais.

 Vária - Imagino!

 Ânia - Saí daqui na Semana Santa, fazia um frio! A Carlota falando sem parar, a viagem toda, fazendo mágicas. Por que é que você foi me arranjar essa Carlota?

 Vária - Uai, você não podia viajar sozinha, menina. Com 17 anos!

 Ânia - Chegamos a Paris. Frio, neve. Eu falo francês pessimamente, uma vergonha. Mamãe mora num quinto andar, eu chego e encontro uns franceses - senhoras, um padre velho com um livro, tudo cheio de fumaça de cigarro, tudo revirado. De repente fiquei com uma pena de mamãe, tanta pena. Me abracei com ela e peguei a cabeça dela nas mãos e não queria mais largar. Depois mamãe me abraçou e ficou chorando sem parar...

Vária (Entre lágrimas) - Não conte, não conte...

 Ânia - Já tinha vendido a casa perto de Menton, não sobrou nada! E eu também sem um níquel, mal deu para chegarmos lá. E mamãe não compreende! Fomos jantar no buffet da Estação, ela pedia os pratos mais caros, dava a cada garçon um rublo de gorjeta! E Carlota, a mesma coisa! E o Iacha também. Pedia um prato especial. Só para ele. Um horror! O Iacha agora é empregado de mamãe, tivemos de trazê-lo conosco.

 Vária - Eu já vi o malandro.

 Ânia - E então? Vocês pagaram os juros?

 Vária (Negando) - Qual nada.

Ânia - Ah, meu Deus, meu Deus...

 Vária - Em agosto a fazenda vai a leilão.

 Ânia - Meu Deus...

 Lopakhin (Olha pela porta e bale) - Mée...é...é...(Sai)

 Vária - Só queria dar uma surra nele! (Ameaça a porta com o punho)

 Ânia (Baixinho, abraçando-a) - Vária, ele já te pediu em casamento? (Vária sacode negativamente a cabeça) Mas ele gosta de você. Por que é que vocês não se explicam, o que é que estão esperando?

 Vária - Acho que não dá em nada não. Ele está sempre ocupado, não tem tempo pra mim, nem me percebe. Deixa pra lá, eu nem quero vê-lo. Todo mundo falando em nosso casamento, cumprimentando, e na realidade mesmo não existe nada...é como se fosse um sonho. (Mudando de tom) Que broche engraçado esse seu. Parece uma abelhinha.

Ânia (Triste) - Mamãe comprou. (Vai para seu quarto e fala alegremente, como uma criança) Em Paris eu subi de balão! Voei...!

 Vária - Meu coraçãozinho voltou, minha lindeza voltou! (Duniacha já veio com a cafeteira e prepara o café. Vária está perto da porta de ânia) E eu, meu bem, o dia inteiro lidando na casa, andando de um lado pro outro e sonhando. Sonhando que casava você com um ricaço e eu ficava descansada, ia fazer um retiro e depois saía em romaria, visitava Kiev, Moscou, todos os lugares santos, de um para o outro, a vida inteira, que felicidade!

 Ânia - Os passarinhos estão cantando no jardim. Quantas horas?

 Vária - Quase três. Você já devia estar dormindo, meu bem. (Entrando no quarto de Ânia) Que felicidade!

 

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