Breve panorama da prosa teatral
Da formação da identidade a partir dos anos 1910 à eclosão dos circuitos
alternativos, o teatro norte-americano buscou investigar as contradições dos
processos sociais da nossa época
Maria Sílvia Betti
O teatro
norte-americano começou a se diversificar e a ganhar características próprias,
na dramaturgia e nos espetáculos, a partir da primeira década do século 20: o
crescimento econômico e industrial, o gigantesco afluxo de imigrantes, a
expansão dos centros urbanos e a imensa malha ferroviária que cruzava o
território de ponta a ponta contribuíram para que o país atraísse investidores
estrangeiros, ampliasse extraordinariamente a sua capacidade de produção e se
consolidasse como potência hegemônica no quadro político internacional.
Dentro desse contexto,
Nova York tornou-se o grande foco irradiador de novas concepções dramatúrgicas
e cênicas. A Broadway, que concentrava as grandes casas de espetáculos, teve,
nas duas primeiras décadas do século 20, o seu período de apogeu: o gênero
florescente era o da revista musical, caracterizada por um alto custo de
produção, por elencos numerosos e por uma grande espetacularidade cenográfica e
coreográfica. Marcaram época, nesse período, as “Zigfeld Follies”,
musicais dirigidos pelo maior empreendedor do gênero, Florenz Zigfeld, além de
revistas como Shuffle Along, Chocolate Dandies, The
Plantation Revue e Runnin’ Wild, com elencos
compostos por artistas negros e músicos de jazz.
Paralelamente a esse
filão efervescente de teatro comercial, voltado ao grande público, Nova York
assistiu, nesse período, ao florescimento de um significativo experimentalismo
teatral através do trabalho dos Provincetown Players, grupo de artistas
e intelectuais formado originalmente em Cape Cod, no nordeste dos
Estados Unidos, e algum tempo depois estabelecido na McDougal Street,
uma das travessas da Washington Square, próxima ao Greeenwich
Village. No interior desse grupo (integrado entre outros nomes pelo
jornalista John Reed, autor de Dez dias que abalaram o Mundo),
viria a se forjar um dos grandes inovadores da dramaturgia norte-americana do
século 20: Eugene O’Neill (1888-1953). Filho do ator James O’Neill, Eugene
havia trabalhado durante vários anos na marinha mercante na década de 1910,
percorrendo o Caribe, a América Central e do Sul e a África meridional.
O’Neill aproveitou a
experiência de anos de convívio com marinheiros, foguistas e estivadores
dando-lhe expressão dramatúrgica através de uma série de peças curtas escritas
na década de 1910 e designadas como Peças do Mar. Nas duas décadas que
se seguiram, O’Neill viria a escrever algumas das mais marcantes peças da
dramaturgia do século 20, como “The Hairy Ape” (“O Macaco Peludo”,
1923), “Desire under the Elms” (“Desejo”, 1925), a trilogia trágica “Mourning
becomes Electra” (“O Luto cai bem a Electra”, 1933) concebida como uma
recriação da “Oresteia”, de Ésquilo, transposta para o período imediatamente
posterior ao do final da Guerra de Secessão norte-americana, e “Longa Viagem
Noite Adentro” (1941). Em 1936, O’Neill recebeu o Prêmio Nobel de Literatura e
tornou-se a maior celebridade do teatro norte-americano no século 20.
A efervescência cultural dos anos 1930
Durante a década de
1930, os Estados Unidos assistiram ao seu mais significativo e efervescente
projeto cultural: o Federal Theater Project, criado no bojo das
ações governamentais do governo Roosevelt com o intuito de impedir o desemprego
de milhares de atores e técnicos de teatro de todo o país. Fomentando não
apenas a atividade teatral, mas também a criação dramatúrgica, o projeto foi a
mais importante iniciativa cultural desse período. Nesse contexto, marcado por
florescente produção de esquerda, inúmeros grupos de teatro voltados ao experimentalismo
dramatúrgico e à militância de esquerda viriam a desempenhar um papel
particularmente relevante: o Labor Stage, o Theater of
Action, o Theater Union foram apenas alguns dos nomes
principais.
Se os anos 1920 haviam
se caracterizado pelos grandes musicais, a década de 1930, marcada pela
ascensão do fascismo, se caracterizaria, no teatro norte-americano, pelo
surgimento de grupos teatrais voltados a uma atuação politizada e crítica em
relação ao pensamento da classe dominante e ao capitalismo. A necessidade de
pensar sobre as questões sociais e políticas impunha a esses grupos a
responsabilidade de representá-las artisticamente, e isso levou muitos deles a
produzirem significativas inovações dramatúrgicas e cênicas.
No âmbito da
dramaturgia, a grande revelação desse período é Clifford Odets (1906-1963),
ator que se tornou dramaturgo dentro do Group Theater e que
inspirou a maior parte da dramaturgia norte-americana de esquerda desse momento
e da década seguinte. “A Vida Impressa em Dólar” (“Awake and Sing”),
escrita por Odets em 1935, viria a ser a primeira peça montada
profissionalmente pelo Teatro Oficina de São Paulo em 1961.
Outros nomes importantes
surgidos paralelamente na dramaturgia foram os de Paul Green (1894-1981), Irwin
Shaw (1913-1984) e William Saroyan (1908-1981), autores que introduziriam
transformações destinadas a equipar o teatro norte-americano para a
representação artística do conjunto de forças sociais e históricas inerente ao
contexto norte-americano. Essas transformações foram progressivamente
contribuindo para diferenciar esse setor do teatro norte-americano não apenas
do teatro europeu, mas também do teatro que caracterizava a Broadway.
Outra inovação de máxima
importância nos anos 1930 foi a aclimatação cultural e artística, através do
trabalho do Group Theater, dos princípios de treinamento
interpretativo de Konstantin Stanislavsky, pensador teatral e encenador do Teatro
de Arte de Moscou. Diretores egressos do Group Theater como
Elia Kazan (1909-2003) e Lee Strassberg (1901-1982) fundariam, algum tempo
depois, o famoso Actors’s Studio, núcleo de preparação de atores
cuja ressonância se faria sentir por várias gerações de atores e atrizes
norte-americanos e estrangeiros, e que se mantém em atuação até a atualidade.
As transformações sociais expressas no palco
Um dos traços
distintivos do teatro norte-americano foi sua capacidade de representar as
transformações sociais aceleradas e intensas que sempre caracterizaram o país.
Durante os anos 1940, após a entrada oficial dos Estados Unidos na Segunda
Guerra Mundial, surgiu a necessidade de apresentação de peças tanto para civis
como para soldados, valorizando-se nesse contexto também as encenações voltadas
ao entretenimento.
As décadas de 1940 e 50
foram marcadas pelas estreias de alguns dos mais marcantes musicais de todos os
tempos: “Oklahoma” (1943), “Carroussel” (1945), “South Pacific”
(1949), “The King and I” (1951), “My Fair Lady” (1956), “West
Side Story”(1957) e “The Sound of Music” (1959). Tais produções
foram grandes sucessos de público no gênero e trouxeram inovações
coreográficas, técnicas e cenográficas que seriam prontamente absorvidas também
pelo cinema.
Mas é na segunda metade
dos anos 1940 que iriam surgir, no campo da dramaturgia, dois nomes que viriam
trazer transformações marcantes para a forma do drama moderno a partir de
então, nos Estados Unidos e internacionalmente: Tennessee Williams (1911-1983)
e Arthur Miller (1915-2005). “Zoológico de Vidro” (1946) é uma das peças mais
características do estilo de Tennessee Williams, assim como “Um Bonde chamado
Desejo” (1948), “Gata em Teto de Zinco Quente” (1955) e a controvertida “Camino
Real” (1953). “Morte de um Caixeiro Viajante” (1949) é uma das peças mais
conhecidas de Arthur Miller, assim como “As Bruxas de Salém” (1953), “Panorama
visto da Ponte” (1955) e “Depois da Queda” (1964).
Desde muito antes da
década de 1940, o apego de autores e críticos a um teatro de molde realista e
dramático deixava necessariamente à margem da cena não apenas episódios de grande
impacto histórico e coletivo, como a guerra, mas também o impacto subjetivo das
grandes transformações sociais e materiais. Tennessee Williams e Arthur Miller
desenvolveram soluções formais e estratégias representativas que permitiram
avançar tanto num sentido como no outro.
Tennessee impregnou o
eixo da subjetividade de elementos tomados ao âmbito do épico: sua dramaturgia
está impregnada de elementos ao mesmo tempo épicos e simbólicos, como exemplo o
uso de fluxo narrativo e de memória, as projeções de slides, a
ruptura com a representação verossimilhante do espaço e a criação de uma
atmosfera determinada pela natureza da afetividade da personagem protagonista.
Miller, por outro lado,
vale-se da representação de fatos históricos ou de circunstâncias apoiadas em
acontecimentos verídicos para representar simbolicamente tanto as perseguições
políticas desencadeadas sob o macartismo como a tragédia do homem comum, que
descobre tardiamente ter investido sua vida e suas esperanças nas expectativas
associadas a um sistema que o transforma em sucata afetiva tão logo sua força
produtiva se mostre em declínio.
O papel dos circuitos alternativos
As décadas de 1950 e
1960 se caracterizaram pelo extraordinário florescimento de uma esfera teatral
alternativa em relação à Broadway. A proliferação de casas de espetáculos
localizadas fora do eixo físico da Broadway e do Theater District fez
surgir a designação off Broadway, rapidamente associada a
autores e repertórios que não teriam acolhida no circuito comercial. Alguns
anos depois, essa designação deixou de associar-se à localização física para
referir-se à capacidade das plateias desses novos teatros, que não excediam o
número máximo de 500 lugares.
Processo análogo se
verifica, na década seguinte, com o surgimento de um circuito alternativo em
relação não apenas à Broadway, mas ao próprio off Broadway: tratava-se
do off off Broadway, conceito que surge para designar as pequenas
salas de espetáculo localizadas em garagens, pubs e cafés do East Village e de
Tribeca, e que passou, pouco tempo depois, a designar espaços destinados a um
número máximo de 100 espectadores e voltados a repertórios radicalmente
experimentais tanto no sentido da concepção cênica como no da dramaturgia
propriamente dita.
O circuito de off
off foi o nascedouro de todas as mais marcantes transformações cênicas
e dramatúrgicas das décadas de 1960 e 1970, tendo sido responsável pela encenação
dos primeiros trabalhos de autores como Edward Albee (1929-) autor de “A
História do Jardim Zoológico” (1959), Amiri Baraka (1934-) autor de
“Holandês” (1965), Sam Shepard (1943-), autor de “Criança enterrada” (1979) e
de grupos como o Living Theater de Julien Beck e Judith
Malina, o La Mama Experimental Theater Club, de Ellen Stewart, e o Wooster
Group, de Elizabeth LeCompte e Willem Dafoe, entre tantos outros não menos
significativos.
No contexto do teatro
norte-americano, colocam-se elementos para a discussão de alguns dos mais
cruciais e instigantes desafios por parte dos que fazem teatro, dos que o
assistem de fora e dos que buscam na linguagem teatral elementos para
investigar algumas das principais contradições dos grandes processos sociais e
históricos da nossa época.
Nenhum comentário:
Postar um comentário