Teatro/CRÍTICA
“Maravilhoso”
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Montagem imperdível no Glaucio Gill
Lionel Fischer
“Considerado símbolo cultural da modernidade, o Fausto, de Goethe é um poema de
proporções épicas que apresenta um homem das ciências que, desiludido com o
conhecimento de seu tempo, firma um pacto com o demônio em troca de uma energia
que o impulsione ao progresso. Maravilhoso
foi se delineando como a história de um homem sem perspectivas que encontra na
figura de um bicheiro e dono de Escola de Samba a possibilidade de dar outro
rumo aos seus anseios e vontades”.
O trecho acima, extraído do release que me foi enviado, explicita a premissa que deu origem ao texto e resume seu enredo. Mas acredito que a influência de Fausto talvez tenha sido utilizada mais como ponto de partida, pois só os conhecedores da obra do genial autor alemão conseguirão fazer uma analogia com o presente texto. Seja como for, a peça que está em cartaz no Teatro Glaucio Gill exibe potência teatral suficiente para envolver completamente o espectador, por razões que detalharei em seguida.
Com direção assinada por Inez Viana, “Maravilhoso” chega à cena com elenco formado por Carolina Pismel (Wanda), Paulo Verlings (Henrique, marido de Wanda), Márcio Machado (bicheiro Diaz) Debora Lamm (Estrela, filha de um milionário corrupto) e Felipe Abib (Miguel, jornalista empenhado em denunciar toda a podridão que assola a cidade).
Costuma-se dizer que não há ninguém que não tenha o
“seu preço”. Ou seja, por mais íntegra e ética que seja uma pessoa, dependendo
das circunstâncias tais predicados podem ser completamente esquecidos. Não sei
se isto é totalmente verdadeiro, mas não hesito em afirmar que, no caso dos
menos favorecidos, daqueles que estão à beira da miséria, renegar seus mais
preciosos valores às vezes equivale à própria sobrevivência.
É o caso de Henrique, que tem um filho pequeno com Wanda, está desempregado e decide fazer o que for preciso para transcender a desgraça que atinge sua família.
No extremo oposto, temos a personagem Estrela. Filha
do milionário corrupto, obviamente que não tem sua sobrevivência ameaçada por
questões financeiras. No entanto, sua patológica vaidade, associada ao desejo
de exibir-se, a leva a lançar mão dos mais espúrios expedientes para conseguir
desfilar como destaque na Escola de Samba do bicheiro Diaz. Este, ao contrário
do que acredito que ocorra normalmente, embora evidencie a prepotência e frieza
das pessoas que ocupam um cargo como o seu, ao mesmo tempo é acossado por
questões de natureza filosófica, mesmo que não formuladas de forma acadêmica. E
em meio a esse turbilhão de anseios e contradições, o personagem Miguel é o
único que mantém intacta sua lucidez e firmeza de propósitos, realmente
disposto – como já dito – a trazer à tona todo o lodo momentaneamente ofuscado
pelo frenesi do Carnaval.
Bem escrito, contendo ótimos personagens e uma ação
que progride de forma avassaladora, “Maravilhoso” é sem dúvida um texto
brilhante, extremamente valorizado pelas participações de todos os envolvidos
no projeto. A começar pela direção de Inez Viana.
Impondo à cena uma dinâmica virulenta e exacerbada,
mas nem por isso isenta de dolorosa poesia, precisa no tocante aos tempos rítmicos
e exibindo marcações da mais alta criatividade, a encenadora consegue valorizar
ao máximo todos os conteúdos em jogo, obviamente que contando com a inestimável
colaboração de todos os intérpretes.
Na pele de Wanda, Carolina Pismel extrai o máximo de uma personagem simplória levada ao extremo desespero pela situação em que se encontra sua família. Debora Lamm faz uma Estrela abominável, conseguindo expor com inteligência e sensibilidade um caráter execrável. Paulo Verlings está irrepreensível nas duas fases do personagem, sendo realmente notável sua transformação quando assume o cargo de, digamos, assessor direto do bicheiro. Este é vivido por Márcio Machado de maneira irretocável, tanto nas passagens mais violentas quanto naquelas em que o personagem revela suas angústias e contradições. O mesmo brilho se faz presente na performance de Felipe Abib, cujo obstinado idealismo e não menos obstinada vontade de denunciar o que precisa ser denunciado nos leva a supor que nem tudo possa estar perdido neste país.
Na equipe técnica, Luiz Henrique Sá responde por uma cenografia composta de andaimes, passarelas e praticáveis, que aqui sugerem um contexto que só a muito custo ainda se equilibra. A mesma eficiência se faz presente na dramática iluminação de Paulo César Medeiros, nos apropriados figurinos de Flávio Souza e na impactante direção musical de Daniel Belquer.
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