ESCLARECIMENTO
Antes de postar o que se segue, acho imperioso fornecer algumas explicações. Após o fechamento do último jornal em que escrevi, a Tribuna da Imprensa, criei este blog e passei a escrever em um jornal alternativo, o Folha Zona Sul - uma edição mensal, gratuita, com distribuição em escolas e faculdades de teatro, em algumas livrarias, como a Travessa e Letras & Expressões etc. No Folha costumo publicar duas ou três críticas a cada edição.
Em fevereiro de 2011, o editor-chefe, Fabrício Azevedo, me propôs entrevistar o diretor teatral Eduardo Wotzik. A entrevista foi feita e parece que todos gostaram muito do resultado. Dois anos depois, Fabrício me pergunta se gostaria de inverter o processo, ou seja, o Wotzik entrevistaria a mim. Fiquei surpreso com a proposta, pois não consegui imaginar que interesse poderia despertar nos leitores do jornal uma entrevista com um crítico teatral. Mas, enfim, ela foi feita, e publicada em abril deste ano. Hoje a reli, dei algumas risadas e em alguns momentos me surpreendi emocionado. Então, resolvi partilhar com vocês a dita entrevista. Vamos a ela.
* * *
ENTREVISTA
de Eduardo Wotzik a Lionel Fischer
- UM HOMEM DO TEATRO -
Um homem que consegue a façanha impossível, impensável e improvável de ser crítico teatral e amado por todos. Por isso vou fazer o maior número de perguntas possíveis para ver se juntos conseguimos desvendar através de suas respostas este intrincado enigma.
1 - Diga logo, idade, estado civil, quantas filhas e quanto tem no banco?
R - 63 anos, divorciado (três casamentos, dois sem papel), duas filhas, ambas atrizes (Rita Fischer e Julia Stockler), um filho (Bruno Linhares, advogado, parecerista do MINC e excelente gaitista). Tenho no banco o suficiente para achar bastante provável que, na semana que vem, não tenha mais nada.
2 - Qual sua maior paixão?
R - Teatro. E, em especial, o trabalho do ator.
3 - Você gosta do teatro ou foi o melhor emprego que arrumou?
R - Se teatro fosse emprego, tenho a singela impressão de que poucos se dedicariam a ele. Trata-se, simplesmente, de amá-lo acima de todas as coisas e ver nele o mais poderoso veículo de transformação e comunhão entre os homens.
4 - Você se formou em Jornalismo ou Teatro?
R - Em nenhum dos dois. Como casei pela primeira vez aos 17 anos, tive que correr atrás. E ingressei no jornal Correio da Manhã. Naquela época, não existia faculdade de Jornalismo ou de Comunicação. Com relação ao teatro, optei por estudar inicialmente com Maria Clara Machado, no Tablado, onde permaneci dos 15 aos 21 anos. A outra opção da época era o Conservatório Nacional de Teatro. Mas quando conheci a Maria Clara, não quis saber de mais ninguém.
5 - Como começou a fazer teatro?
R - Comecei no Tablado. Na época, só havia duas turmas: a de iniciantes e a dos adiantados. Fiquei um ano nos iniciantes e depois passei para a outra. Curiosamente, não fiz nenhuma peça no Tablado como ator - talvez porque já estivesse mais voltado para a direção. Fui assistente da Maria Clara em duas peças e também dirigi outras por sugestão dela, sempre com alunos que estavam começando - dentre outras, "À margem da vida" (Tennessee Williams) e "Aquele que diz sim, aquele que diz não" (Bertolt Brecht). Esta última marcou a estreia, como atores, do Bernardo Jablonski, Sura Berditchewsky, Louise Cardoso, dentre outros. Com Maria Clara fiz duas peças como ator, ambas no Teatro Ipanema: "Aprendiz de feiticeiro" e "Pluft, o fantasminha".
6 - Como começou a escrever teatro? Por quê?
R - Quando tinha 34 anos e após incontáveis tentativas de formar grupos, e mesmo depois de ter levado à cena uns dois ou três espetáculos muito bem recebidos pela crítica, resolvi que nunca mais poria os pés em um teatro. Passei cinco anos sem assistir nada. Quando tinha 39 anos e trabalhava no jornal O Globo como repórter e resenhista de livros, pintou um convite para fazer crítica teatral. Escrever sobre espetáculos foi o que me possibilitou retomar uma paixão que julgava abortada para sempre.
7 - Ser crítico teatral ajuda a arrumar namorada?
R - E como! (sem trocadilho, por gentileza...ou com trocadilho, se preferir...). Na verdade, o que acontece é que você passa a ter contato com uma infinidade de pessoas, desde que você não se coloque como detentor do monopólio do saber. Sendo como sou, gosto de conversar, trocar ideias, estou sempre aberto a rever opiniões e, não raro, assisto ensaios de profissionais mais chegados. Essa convivência tão próxima permite eventuais envolvimentos, sem que isto, em nenhuma hipótese, vá alterar minha opinião sobre um espetáculo ou um desemprenho. Ou seja: posso estar perdidamente apaixonado, mas se a dama em questão for atriz e estiver mal numa peça, certamente que não hesitarei em apontar o que me parece equivocado.
8 - E ser professor de teatro, como começou?
R - Começou no próprio Tablado, em 1996. Estava completamente sem grana (e aqui cabe registrar que sinto comovente paixão pelo dinheiro, só lamentando o fato de ele não nutrir por mim um sentimento análogo) e fui falar com a Maria Clara. Não havia horário disponível, mas ela reativou um, às sextas-feiras, às 19h30.
9 - A profissão de crítico de teatro arrecada dinheiro, amigos ou inimigos?
R - Só ganhei razoavelmente no período em que escrevi no Globo (1989/1990). Depois passei pelas revistas Visão e Manchete, e pelos jornais Última Hora e Tribuna da Imprensa (neste último, fiquei 16 anos). Mas os rendimentos eram sempre irrisórios. Quando ao quesito "arrecadação", tive no máximo uns dois desafetos. Em compensação, ganhei uma infinidade de amigos, muitos deles parceiros em algumas empreitadas teatrais.
10 - Qual o espetáculo dos milhares que viu que mais gostou? Cite cinco.
R - Citar o que mais gostei é literalmente impossível, pois as circunstâncias são sempre diversas - minha idade, meu estado emocional etc. Mas, vamos lá: "O livro de danças" (Grupo Odin, direção de Eugenio Barba), "A classe morta" (Grupo Cricot 2, direção de Tadeuz Kantor), "O balcão" (Jean Genet, direção de Victor Garcia), "O arquiteto e o imperador da Assíria" (Fernando Arrabal, direção de Ivan de Albuquerque) e "O futuro dura muito tempo" (não me lembro o autor, mas a direção era do Marcio Viana).
11 - Qual espetáculo mudou sua vida?
R - "Pluft, o fantasminha", que assisti no Tablado trocando o colo do meu pai pelo de minha mãe várias vezes, segundo eles. E conforme me disseram anos mais tarde, a peça mexeu tanto comigo que os intimei a me levar várias vezes para assisti-la.
12 - Acha que o teatro pode mudar a vida das pessoas?
R - Não só acho que pode, mas deve. Essa é a função primordial do teatro: promover um encontro entre quem faz e quem assiste de tal forma que a pessoa se sinta compelida a empreender reflexões sobre si mesma e sobre o mundo em que vive, daí advindo inevitáveis transformações. Um teatro que não transforma não é teatro: pode ser apenas considerado uma espécie de couvert de tediosas pizzas...
13 - Prefere comédia, drama ou tragédia para ver?
R - Prefiro tudo, desde que seja bom. Mas acho comédia o gênero mais difícil, porque sua eficácia é atestada pela imediata e audível reação da plateia. Já conferir lágrimas é mais complicado...
14 - Será Lionel Fischer o único homem de teatro completo? Dirige, dá aulas, escreve sobre e atua?
R - Devem ser muitos os "Lionel Fischer" que existem por aí certamente mais competentes do que eu. O que ocorre comigo é que, dada a minha já mencionada paixão pelo teatro, gosto de me envolver em muitos de seus aspectos. Quando comecei no Tablado, por exemplo, fui bilheteiro, operador de som, operador de luz, contra-regra, faxineiro, costurei figurinos, pintei cenários etc. E muito me orgulho de ter exercido todas essas funções.
15 - Qual das funções do teatro extrai mais prazer?
R - No momento, em função das circunstâncias, dar aulas e escrever sobre espetáculos. Dar aulas me emociona profundamente, em especial pela relação aberta que estabeleço com os alunos. Quanto aos espetáculos, adoro quando saio com mais dúvidas do que certezas, o que, não raro, me faz até esquecer aonde estacionei o carro...
16 - Qual o autor predileto? Nacional? Estrangeiro?
R - Tendo que eleger apenas um, nacional e estrangeiro, Nelson Rodrigues e Tchecov.
17 - Qual a melhor peça jamais escrita?
R - Se tal peça "jamais" foi escrita, só posso concluir que a melhor ainda está para surgir. Mas se ao invés de "jamais" você tivesse dito "já escrita", aí realmente não saberia o que responder. Mas pegaria uma dos gregos, uma de Shakespeare e outra do Tchecov.
18 - Melhor ator que viu em cena?
R - Rubens Corrêa em "Diário de um louco".
19 - Melhor atriz que viu em cena?
R - Nuria Espert em "Yerma".
20 - Melhores encenações.
R - Já citei cinco na resposta 10. Mas vamos a mais cinco: "Cemitério de automóveis" (direção de Victor Garcia), "Paraíso Zona Norte (direção de Antunes Filho), "Antígona" (Living Theatre), "A tempestade" (Peter Brook) e "Música para cortar os pulsos" (Rafael Gomes) - não cito nenhuma direção tua que é pra não pensarem que estou babando teu ovo...no sentido metafórico, naturalmente...
21 - Momentos em que sentiu que o teatro e fazer parte dele valia a pena.
R - Todos aqueles em que percebi que pouco ou quase nada sabia a respeito da vida e de mim mesmo.
22 - Momentos que sentiu que o teatro e fazer parte dele não valia a pena.
R - Sempre que me deparo com uma montagem que conspurca o sagrado espaço da representação.
23 - Motivo de orgulho.
R - Como crítico, a consciência de que jamais protegi ou persegui ninguém.
24 - De desapontamento.
R - Perceber como muitos talentos se perdem em sua ânsia pelo sucesso a qualquer preço.
25 - De mágoa.
R - Nenhuma. A mágoa é como o câncer, é como a inveja. Se não ficarmos atentos, ela toma conta de nós. E a nada conduz de positivo.
26 - De reclamação. Pode soltar o verbo.
R - Sei que não estou anunciando aqui o descobrimento da pólvora, mas cada vez mais me assombra o descaso com que a Cultura é tratada em nosso país. E não vejo, a curto prazo, nenhuma perspectiva animadora. E como poderia ver, se os detentores do poder, em sua esmagadora maioria, se resumem a analfabetos e corruptos, unicamente voltados para seus interesses, quase sempre escusos? Mas também acho que parte da culpa cabe a todos nós, que aceitamos passivamente (de uma maneira geral) tudo aquilo que deveria nos indignar. Somos um povo pacífico, dizem. E parece que vivemos no melhor dos mundos, desde que exista futebol, carnaval e cerveja...
27 - Uma esperança.
R - Que um dia acordemos e digamos BASTA!!!
28 - Prefere a Barbara Heliodora ou Jiló?
R - Adoraria ver a Barbara degustando um saboroso jiló...será que ela aprecia esta singular iguaria?
29 - O tempo ajuda? A idade melhora o homem?
R - O tempo só pode ajudar se tivermos consciência da própria finitude, o que impõe seguidas urgências. Como dizia John Lennon: "A vida é aquilo que acontece enquanto planejamos o futuro". E a melhor idade é certamente a que se tem. Desejar outra é a maior cilada.
30 - Três histórias impagáveis que viveu no teatro?
R - Teria umas 300 para te contar. Mas seleciono apenas uma porque envolve esta praga chamada celular. Estava no Teatro Poeira assistindo um espetáculo de São Paulo, se não me engano "Agreste". Momentos finais da peça. Tensão absoluta em cena. Apenas dois atores, sob dois focos. Estava sentado na segunda fila e na primeira um casal de obesos. Eis que toca o celular da gorda. Aflitíssima, ela começa a procurá-lo em sua bolsa. Acaba achando o maldito. Mas, nervosa como estava, ele escapa de suas mãos e cai no palco, quicando duas ou três vezes como um sapo embriagado. Todos que ali estavam ficaram petrificados. O que fariam os atores? Interromperiam a peça? Dariam um esporro na tal senhora? Passaram-se alguns segundos, o celular tocando. Um dos atores sai de seu foco e, com espantosa calma, pega o aparelho e o entrega à obesa, que enfia o celular na bolsa e é arrastada para fora do teatro pelo marido, em meio a imprecações que não ouso aqui reproduzir.
31 - Que avaliação faz da crítica de teatro hoje?
R - Não me sinto confortável para fazer uma avaliação do que escrevem meus colegas de crítica. Falando apenas em meu nome, faço o que sempre fiz: saio sempre de casa para gostar e quando não gosto, me invade um sentimento de tristeza. Tento não me valer de referências e procuro descobrir as eventuais propostas materializadas na cena e só então avaliá-las. Ou seja: o que me interessa não é "como eu faria" determinada peça, mas como ela está feita. Talvez o pior defeito de um crítico consista em pré-julgar, em desejar que uma montagem atenda suas expectativas.
32 - O que faz quando não tem que ir ao teatro?
R - Se estou namorando, namoro. Se não estou, como no momento (atenção!!!), enfim...leio, escrevo, escuto música e jogo xadrez por computador. E às vezes pedalo à noite, mesmo que já tenha pedalado de manhã - percorro diariamente em torno de 30 km, daí o corpinho...
33 - O que mais gosta de fazer na sua vida pessoal?
R - Além dos já mencionados prazeres, tenho um, meio retardado, mas que me diverte e que consiste em botar um filme (sem o som) e inventar vozes e inflexões, que nada têm a ver com o que estou assistindo.
34 - Você é cidadão da Zona Sul? Onde gosta de ir? Que restaurantes? Bares? Passeios? Lugares?
R - Cresci na Fonte da Saudade, sou metade brasileiro, metade uruguaio. Adoro passear de bicicleta, inclusive de madrugada. Gosto da Fiorentina (lá se pode fumar na calçada), tenho saudade da pelada que jogamos por mais de 10 anos (você há de estar lembrado do magnífico goleiro que eu era) e eventualmente vou à Feira de São Cristóvão dançar forró - coloca aí, por favor, que eu sou um esplêndido forrozeiro. E quando não estou fazendo nada, agradeço a Deus (caso exista) por essa dádiva que é a vida.
35 - Faça você mesmo sua pergunta e responda, se for capaz.
Lionel - Você gostaria de ter feito alguma coisa no teatro que, por qualquer razão, deixou de fazer?
Lionel - Sim. Gostaria de ter feito "Estilhaços" como ator.
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terça-feira, 20 de agosto de 2013
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