"Antígona"
de Sófocles
Numa das mais belas e dramáticas tragédias já escritas, Sófocles devassa em toda a sua profundidade o amor, a lealdade, a dignidade. A história pode ser assim resumida: Tebas, governada pelo tirano Creonte, entra em guerra contra Argos. Um dos sobrinhos de Creonte, Etéocles, permanece fiel, enquanto Polinice, já não suportando mais os desmandos de Creonte, se passa para o lado de Argos. Durante o combate, Etéocles e Polinice se matam, e Creonte reserva ao primeiro um funeral de herói; quanto ao outro, decide privá-lo de sepultura, o que constituía grave ofensa ao morto e sua família, pois a alma do morto não faria a transição adequada ao mundo dos mortos. Antígona, irmã de Ismene, enfurecida desobedece o decreto de Creonte e enterra o irmão, sendo pouco depois levada à presença do tio para justificar sua atitude. A partir daí, os acontecimentos assumem cada vez mais uma dimensão trágica. A seguir, reproduzo o célebre embate entre Antígona e Creonte, do qual também participa Ismene, utilizando a tradução de Donaldo Schüler, feita diretamente do grego. (LF)
* * *
CREONTE - E tu, tu que baixas a cabeça, admites ou negas que procedeste assim?
ANTÍGONA - Admito, não nego nada.
CREONTE - Tu, podes retirar-te para onde queres, de acusações condenatórias estás livre. E tu, declara sem rodeios, sinteticamente. Sabias que eu tinha proibido essa cerimônia?
ANTÍGONA - Sabia. Como poderia ignorá-lo? Falaste abertamente.
CREONTE - Mesmo assim ousaste transgredir minhas leis?
ANTÍGONA - Não foi, com certeza, Zeus que as proclamou, nem a Justiça com trono entre os deuses dos mortos as estabeleceu para os homens. Nem eu supunha que tuas ordens tivessem o poder de superar as leis não-escritas, perenes, dos deuses, visto que és mortal. Pois elas não são de ontem nem de hoje, mas são sempre vivas, nem se sabe quando surgiram. Por isso, não pretendo, por temor às decisões de algum homem, expor-me à sentença divina. Sei que vou morrer. Como poderia ignorá-lo? E não foi por advertência tua. Se antes da hora morremos, considero-o ganho. Quem vive num mar de aflições iguais às minhas, como não há de considerar a morte lucro? Defrontar-me com a morte não me é tormento. Tormento seria, se deixasse insepulto o morto que procede do ventre de minha mãe. Tuas ameaças não me atormentam. Se agora te pareço louca, pode ser que seja louca aos olhos de um louco.
CREONTE - Sabe, entretanto, que as vontades mais rijas são as que mais se quebram. Verás o ferro mais inflexível, endurecido a fogo, rachar com freqüência e romper. Com um pequeno pedaço de bromze sei que os potros mais xucros são domados. Não se mostre altaneiro quem é escravo da vontade alheia. Esta já se mostrou insolente aos transgredir as leis estabelecidas. Insolência renovada é orgulhar-se e rir, cometida a transgressão. Agora, entretanto, homem não serei eu, homem será ela, se permanecer impune tamanho atrevimento. Ainda que seja filha de minha irmã, ainda que me seja a mais próxima dos que rendem culto ao Zeus doméstico, nem esta nem a irmã dela escaparão da morte mais infame. Acuso também Ismene cúmplice desta trama. Chamem-na. Ainda há pouco a vi enfurecida sem saber dominar-se. A perturbação dos que tramam perversidades na sombra costuma trair os infratores. Odeio os que, quando em maquinações criminosas apanhados, procuram embelezar os delitos.
ANTÍGONA - Estou em tuas mãos. Mata-me. O que mais queres?
CREONTE - Eu? Nada. Tenho o que desejo.
ANTÍGONA - Então, o que esperas? A mim, em tuas palavras, não me agrada nada nem jamais poderá, nem há nada que te possa causar prazer. Contudo, onde poderia procurar renome mais fulgente do que na ação de dar ao meu irmão sepultura? Todos estes o aprovam, e o declarariam se o medo não lhes travasse a língua. Mas a tirania, entre muitas outras vantagens, tem o privilégio de fazer e dizer o que lhe apraz.
CREONTE - Isto, entre todos os filhos de Cadmo, só tu o vês.
ANTÍGONA - Também estes o vêem, mas, intimidados por ti, mordem a língua.
CREONTE - E tu, não te envergonhas do teu comportamento, oposto ao deles?
ANTÍGONA - Nada de vergonhoso há em honrar os do mesmo sangue.
CREONTE - Não era consangüíneo teu o que morreu lutando com ele?
ANTÍGONA - Consangüíneo, da mesma mãe e do mesmo pai.
CREONTE - Como rendes honras que lhe são injuriosas?
ANTÍGONA - Não será este o testemunho do morto.
CREONTE - Será, pois se honras um, injurias o outro.
ANTÍGONA - Quem morreu não foi um escravo, foi o irmão.
CREONTE - Ele atacava sua pátria, o outro a defendia.
ANTÍGONA - A lei do Reino dos Mortos é igual para todos.
CREONTE - Mas o mau não tem direitos iguais ao justo.
ANTÍGONA - Quem sabe se lá embaixo se terá este princípio por piedoso.
CREONTE - O inimigo, nem morto, será considerado justo.
ANTÍGONA - Não fui gerada para odiar, mas para amar.
CREONTE - Muito bem, se precisas amar os mortos, incorpora-te a eles, ama-os. Mas, em minha vida, não permitirei que uma mulher governe.
COREUTA - Já se encontra à porta Ismene, derrama lágrimas de afeto pela irmã. Nuvem sombria cobre-lhe a fronte, escurece-lhe o rosto, umedece-lhe a formosa face.
CREONTE - Tu, víbora, penetraste em meu palácio para sugar sorrateiramente meu sangue; sem saber, eu alimentava duas calamidades, ruína de meu trono. Vamos, dize-me, desta cerimônia és cúmplice ou juras que de nada sabias?
ISMENE - Cúmplice, se ela aceita minha cumplicidade, solidária no ato e na responsabilidade.
ANTÍGONA - Não, a Justiça não o permitirá, não quiseste acompanhar-me, nada tramei contigo.
ISMENE - Seja! Mas vendo-te afundada na desgraça, não me peja acompanhar-te e fazer de tua sorte a minha.
ANTÍGONA - Os atos, estes a Morte e os lá debaixo os conhecem, quanto à solidariedade não a quero só com palavras.
ISMENE - Querida irmã, não me considereis indigna de morrer contigo e contigo homenagear o que tombou.
ANTÍGONA - Não, não queiras morrer comigo, nem te comprometas com atos meus. Que eu morra basta.
ISMENE - Que vida poderá agradar-me, se tu me deixas?
ANTÍGONA - Pergunta a Creonte, que te significa tanto!
ISMENE - Por que me feres? Que ganhas com isso?
ANTÍGONA - Atormentada pela dor, eu me rio de ti.
ISMENE - Não há nada que eu poderia fazer por ti?
ANTÍGONA - Salva-te. Evita a morte. Não te invejo.
ISMENE - Desgraça! Recusas-me tua sorte?
ANTÍGONA - Tu escolheste viver; eu, morrer.
ISMENE - Sem minha advertência, não.
ANTÍGONA - Foste sábia para uns; eu, para outros.
ISMENE - Mas no erro somos iguais.
ANTÍGONA - Coragem! Vives, meu espírito já muito está morto. Morta, quero servir aos mortos.
CREONTE - Loucas, não há outra designação para ambas. Uma enlouqueceu agora, a outra é louca de nascença.
ISMENE - A razão que trazemos do nascimento não resiste ao presente infortúnio, ela se vai.
CREONTE - Issso te aconteceu ao decidires com a criminosa praticar crimes.
ISMENE - O que de bom me oferecerá a vida sem ela?
CREONTE - Não digas "ela", ela não existe mais.
ISMENE - Matarás a noiva de teu próprio filho?
CREONTE - Ele encontrará outros campos para lavrar.
ISMENE - Não há outra escolha nem para ele nem para ela.
CREONTE - Mulher desqualificada não quero para meu filho.
ISMENE - Querido Hemon, como te insulta teu pai!
CREONTE - Basta! Não me importunes com a lembrança deste matrimônio.
CORIFEU - Como? Privarás dela teu próprio filho?
CREONTE - A Morte impedirá este casamento por mim.
CORIFEU - Para mim, já decidiste matá-la.
CREONTE - Para ti e para mim. Depressa, escravos. Já para dentro com elas. Determino que estas mulheres fiquem presas e que não andem soltas por aí. Até os mais atrevidos fogem, quando vêem a Morte se aproximar para pôr fim à vida.
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Sófocles (495 a. C. - 406 a. C.) nasceu e morreu em Atenas, na Grécia, e foi um dos maiores intelectuais da antigüidade clássica. Autor prolífico e consagrado em seu tempo, produziu cerca de 120 peças das quais restaram conservadas apenas 7, dentre elas "Antígona", "Electra" e "Édipo Rei".
quarta-feira, 3 de novembro de 2010
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