quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Teatro/CRÍTICA

"A história do homem que ouve Mozart e da moça do lado que escuta o homem"

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Inquietação e desconforto


Lionel Fischer


Assim que a platéia entra no espaço cênico da sede da Cia. dos Atores, depara-se com um quadro desolador: bolsões de água se acumulam sobre um chão de tábuas em péssimo estado de conservação; uma antiga cama de molas, desprovida de colchão; bonecas com e sem cabeça espalhadas, algumas delas sobre uma pequena mesa, junto à qual se encontra uma mulher cuja função parece ser a de consertá-las; um homem, de aspecto um tanto andrajoso, vaga perdido murmurando frases desconexas, agarrado a uma vitrola; penduradas por fios, garrafas de plástico, contendo um líquido que sugere ser água.

Como não tinha a menor idéia do que se seguiria, minha imaginação me remeteu à atmosfera de alguns romances russos, em especial "Crime e castigo", de Dostoievski, em parte pela ambientação (mesmo levando-se em conta as diferenças entre o quarto de Raskolnikov e o do personagem em questão), em parte pela figura do homem, em visível processo de deteriorização mental. E também acho que fiz essa associação pelo fato, já mencionado, das muitas bonecas desprovidas de cabeça, sendo que no romance o protagonista mata a machadadas sua senhoria, sendo o primeiro golpe desferido na fronte da mesma.

Enfim...foram essas as minhas primeiras impressões sobre "A história do homem que ouve Mozart e da moça do lado que escuta o homem", de autoria de Francis Ivanovich - teria o autor ascendência russa?. Dirigida por Luiz Antônio Rocha, a montagem chega à cena com elenco formado por Adriana Zattar e Roberto Birindelli.

"Embalados por uma tempestade que cresce sobre a cidade, um professor de literatura, perseguido pelo passado, chega a uma hospedaria e não se dá conta que no quarto vizinho habita a 'Moça do Lado'. Vizinhos invisíveis. Ela, mergulhada num universo próprio, conserta bonecas para concretizar um desejo de reparação e aliviar uma dor sentenciada, concentrando todos os esforços para conter as inúmeras goteiras e infiltrações que assolam sua vida. Ambos solitários, à beira do abismo, esquecidos de si, não percebem que o imprevisível faz-se necessário e quando tudo parece infindável, eis que surge uma fresta de luz".

Extraída do release que me foi enviado, esta sinopse certamente traduz as intenções do autor. No entanto, me vejo na obrigação de confessar que não identifiquei muitas delas, ao menos de forma tão detalhada. O que o texto me permitiu foi entrar em contato não como uma narrativa que deveria apreender literalmente, mas muito mais com, digamos, a desoladora imagem de dois seres que, ao que suponho, da vida só conheceram seu lado mais amargo. O professor de literatura vem perdendo alunos, encontra-se praticamente na miséria e sua paixão por Mozart o leva a se relacionar com um maestro imaginário. Quanto à mulher, esta se relaciona com as bonecas não como uma profissional que exercesse o ofício de consertá-las, mas como se as mesmas fossem metáforas de uma mente também em nítido processo de esfacelamento.

Com o acima exposto, pretendo apenas enfatizar que tudo se resume a conjecturas, e imagino que, assim como eu, os espectadores farão as suas, não necessariamente sequer parecidas com as minhas. Seja como for, o que importa ressaltar é que o presente texto, mesmo que de difícil apreensão, me colocou em um estado de permanente inquietação e desconforto. E para mim foi o suficiente para deixar o teatro com a certeza de ter assistido a algo de inquestionável seriedade.

Quanto ao espetáculo, o diretor Luiz Antônio Rocha impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o contexto proposto pelo autor. Suas marcações são imprevisíveis e sempre muito expressivas, cabendo também ressaltar sua coragem de tentar extrair significados através de longos silêncios e passagens totalmente desprovidas de luz.

No que diz respeito ao elenco, tanto Adriana Zattar como Roberto Birindelli exibem performances irrfetocáveis, afora notável capacidade de entrega a personagens que vivem no limiar da loucura mas que, ainda assim, lutam desesperadamente para escapar a um destino que parece irremediavelmente traçado.

Na equipe técnica, Luiz Antônio Rocha assina cenário e figurinos totalmente condizentes com a dilacerante realidade proposta pelo autor, cabendo ainda destacar a sombria e claustrofóbica iluminação de Antonio Mendel e o trabalho de preparação corporal realizado por Roberto Birindelli.

A HISTÓRIA DO HOMEM ... - Texto de Francis Ivanovich. Direção de Luiz Antônio Rocha. Com Adriana Zattar e Roberto Birindelli. Uma realização da Espaço Cênico e Cia. Panapaná de Teatro. Sede da Cia. dos Atores. Sábado e domingo, 20h. Segunda, 20h30.

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