quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Flores de Chumbo

Lionel Fischer
(1984)

CAPÍTULO XXI


A ausência de monsenhor Flávio deveria me agradar, já que me permitia ficar a sós com minha amada. Mas paradoxalmente me encheu de inquietação. Parado à frente de irmã Geovana, eu não sabia que atitude tomar. Convidá-la novamente a se sentar me parecia ridículo, mas ao mesmo tempo não ousava lhe propor que fôssemos para o quarto. Não havendo vitrola na casa, não poderíamos sequer dançar. Foi então que, subitamente, percebi que os olhos de minha amada emitiam o mesmo e estranho brilho que tanto me impressionara uma hora atrás. Comecei a suar frio. Minhas pernas fraquejavam e eu pressenti que se não tomasse uma atitude, qualquer que fosse ela, acabaria desmaiando. Se isso acontecesse, não me restaria outra alternativa a não ser a de me suicidar tão logo recobrasse os sentidos. Mas eu não tinha o menor interesse em renunciar à vida, justo no momento em que ela começava a me interessar. Felizmente, irmã Geovana tomou a iniciativa.

- Você já bebeu todo aquele vinho que eu mandei?

- Não, claro que não. Por quê? (Que pergunta, meu Deus!?)

- Você poderia ir buscá-lo....

Mas eu estava tão idiotizado que ela teve que colocar um adendo em sua proposta.

- Ou prefere que eu vá?

Só então me dei conta de que agia como se tivesse 12 anos.

- Imagina! Eu volto num segundo!

E abandonei a sala. Chegando na cozinha, comecei a procurar uma jarra, pois não me pareceu de bom tom regressar com um garrafão bojudo. Enquanto me ocupava vasculhando os armários, minhas pernas foram pouco a pouco parando de tremer e minha respiração se normalizando. Quando finalmente encontrei o que procurava, me senti tão à vontade que comecei a ssoviar. E foi assoviando que enchi a jarra, peguei os copos e coloquei harmoniosamente esses objetos numa bandeja, que tive o cuidado de forrar com um paninho branco - se alguém me visse nesse momento julgaria que eu era o tipo de homem habituado a receber donzelas em sua casa, tal o meu desembaraço. Mas o pior é que eu próprio era o primeiro a acreditar nisso, agindo como se nada mais pudesse abalar a segurança que supostamente se apossara de mim.

Quando, no entanto, peguei a bandeja e caminhei três passos, percebi que se desse mais um ela me cairia das mãos. Os copos deram início a uma rumba tão frenética que por um momento acreditei que haviam adquirido vida própria. Apavorado, tentei de todas as formas dominar o histérico tremor, mas parecia que eu havia contraído o "mal de Parkinson". Em poucos segundos, a animação dos "bailarinos" se tornou tão contagiante que até a barriguda jarra insinuou uma singular coreografia. Julguei-me então perdido: não conseguiria nem mesmo retornar até a pia, situada a menos de dois metros de onde eu estava. Entretanto, alguma coisa me disse que eu deveria ao menos tentar, que era mais digno fracassar indo ao encontro da mulher amada do que ficar plantado no centro de uma cozinha. E foi o que fiz.

Como uma cascavel tomada de súbito furor, saí chacoalhando sem me preocupar com coisa alguma que não atingir a sala, onde me aguardava a mulher que eu tanto amava e diante de quem eu poderia, se fosse o caso, deixar que tudo despencasse, pois ao invés de me julgar um idiota, ela haveria de valorizar meu nervosismo, prova inconteste do imenso amor que lhe devotava. Assim, acabei atingindo meu objetivo. Mas, para minha surpresa, irmã Geovana não estava mais na sala. Ante o impacto de sua inesperada ausência, meus tremores desapareceram de imediato.

Não podia acreditar que ela tivesse ido embora, enquanto eu me debatia na cozinha tentando dominar o efeito que tinha ela como causa. Não, uma tal atitude revelaria uma natureza abjeta e cruel, que não se encaixava em tudo que já percebera em sua pessoa. Entretanto, essas considerações não impediram que meus olhos se enchessem de lágrimas. Mas a depressão que ameaçava se instalar em mim foi logo substituída por um desejo cego de quebrar toda aquela casa, de reduzir a escombros aquele refúgio onde supus que viveria um momento inesquecível. Erguendo então a bandeja acima da cabeça, como um exímio garçon, já me preparava para iniciar minhas atividades predatórias quando ouvi um som que me pareceu em tudo semelhante ao relincho de um cavalo.

A princípio pensei tratar-se de um delírio auditivo, mas como ele se repetiu, depositei a bandeja na mesa e corri até a varanda. Lá chegando, minha esperança renasceu, pois avistei o corcel de minha amada que, talvez ressentido com sua prolongada ausência, apelava para que ela retornasse. Ah, amigo leitor! Nunca a visão de um eqüino me deixou tão exultante e fossem outras as circunstâncias, eu teria lhe dado ao menos 30 beijos. Mas eu tinha toda a pressa do mundo, já que não nutria mais a menor dúvida quando ao paradeiro de irmã Geovana!

Dessa vez, a bandeja não me tremeu nas mãos. Caminhei para o quarto com uma tranqüilidade que chegou a me surpreender. E nele entrei sem a menor ansiedade. Mas irmã Geovana resolvera brincar com meus nervos...Na mesinha de cabeceira, junto às flores, ardiam duas velas. Nas cadeiras em que supus que iríamos nos sentar, ela depositara suas vestes. E na cama que não me atrevi a imaginar que nos deitaríamos, ela se refugiara...

Imediatamente me lembrei de nosso primeiro encontro, quando a defini como alguém que "não era deste mundo". E estava certo: não era admissível que uma simples mortal reunisse tanta beleza e espiritualidade. E não me refiro apenas ao rosto que, emoldurado por negros cabelos, parecia ainda mais diáfano do que de costume. Não, cada parte do seu corpo exibia a mesma pureza e sensação de eternidade.

Não sei por quanto tempo permaneci contemplando-a extasiado, como também ignoro o que sentiu irmã Geovana ao ver-se devassada com tanta meticulosiodade. Tudo que posso garantir é que se a morte, sempre tão presente em minha fantasia, me tivesse levado nesse momento eu não a censuraria, pois me teria concedido, como a Moisés, o privilégio de ao menos ver a Terra Prometida! Mas como a morte se absteve de copiar a atitude simbólico-pedagógica do Senhor, irmã Geovana e eu pudemos celebrar de forma inesquecível aquela oportunidade única.

Até então, sempre considerara as pessoas que íam para a cama comigo mais como corpos - cujos anseios me sentia obrigado a saciar - do que propriamente como seres humanos, que poderiam estar buscando algum tipo de interação comigo. Essa postura, fruto possivelmente de uma brutal dificuldade de me entregar a alguém, me transformava numa espécie de máquina extremamente hábil, que conseguia detectar as necessidades puramente físicas de minhas parceiras e em seguida satisfazê-las. Com irmã Geovana, no entanto, nada disso aconteceu. Em todos os meus gestos havia um sentimento, jamais uma finalidade. As palavras que pronunciei evidenciaram sempre a existência de uma emoção, não de uma tática. O amor, ao impedir que aflorassem as obsessões de sempre, resgatou minha própria humanidade. E o amante que apenas atuava cedeu lugar ao homem que sentia.

Às quatro e meia monsenhor Flávio deu três pancadinhas na porta e anunciou, com voz de camareira de hotel chique, que dentro de meia-hora se faria dia. Irmã Geovana e eu, embriagados de felicidade e inteiramente alheios aos problemas desse mundo, demoramos um certo tempo para compreender o sentido daquele apelo. Aliás, só nos demos conta de que era preciso abandonar o leito quando monsenhor renovou suas pancadinhas, agora em número de quatro, e anunciou que faltavam apenas 25 minutos para amanhecer. Então nos levantamos e começamos a nos vestir. Quando abrimos a porta, monsenhor já estava prestes a dar seqüência aos seus chamados.

- Já sei, monsenhor...- disse irmã Geovana, sorrindo. - Faltam apenas 25 minutos para o dia clarear...

- Dezenove, para sermos mais precisos... - retrucou o prelado, após rápida consulta ao seu reloginho de bolso.

Tomamos juntos o café da manhã, mas se trocamos duas ou três palavras foi muito. Estávamos tristes com a iminente separação e também apreensivos, pois a possibilidade de que descobrissem que minha amada se ausentara não era nem um pouco remota. Ela poderia, é bem verdade, alegar que resolvera passear ou simplesmente não dar satisfação alguma. Mas esse fato seria usado contra ela, sobretudo porque nunca acontecera antes, ao menos de madrugada. Hipóteses seriam formuladas, todas elas desfavoráveis à minha deusa e a oposição se fortaleceria. É evidente que eu desejava que irmã Geovana fosse embora comigo, mas não queria de modo algum vê-la escorraçada de um lugar ao qual dedicara dez anos de sua vida e ajudara a transformar. Por isso torcia para que a situação no convento se normalizasse, pois só assim ela poderia fazer sua opção livremente, sem nada a pressioná-la.

Quando estávamos quase termiando a refeição, monsenhor se levantou e foi buscar o cavalo. Não precisaria, evidentemente, ter feito isso. Mas quis ser delicado deixando-nos sozinhos para trocarmos nossas últimas palavras. No entanto, nenhum de nós conseguiu articular coisa alguma: limitamo-nos a permanecer de mãos dadas até o momento em que o belo corcel soltou um espantoso relincho, como a sugerir que era chegada a hora de nos separarmos. Caminhamos então até o pátio como se nos dirigíssimos ao patíbulo. Enquanto eu ajudava irmã Geovana a montar, monsenhor Flávio, que fungava visivelmente, se afastou alguns passos. Mas nem assim conseguimos nos dizer nada. Ela ainda tentou sorrir, mas como não nascera atriz, fracassou de forma lamentável. Então optou por mandar um beijo e começou a se afastar. Quando estava prestes a perdê-la de vista, me veio o grito inesperado:

- Eu te amo!

- Eu também! - respondeu minha deusa, sem se voltar.

Tomado então de um sentimento de paixão incontrolável, iniciei uma desabalada corrida em sua direção. Mas irmã Geovana, certamente para evitar o prolongamento de uma dor inútil, atiçou sua montada e em rápidos galopes desapareceu.

Acho que teria ficado imóvel a manhã inteira no mesmo lugar onde interrompi meu sprint. Mas monsenhor enganchou seu braço no meu e me arrastou para um passeio pela granja. Tentei protestar, mas o prelado se fez de surdo e começou um longo solilóquio que tinha como tema as vantagens de se ser otimista. Ainda consegui lhe dizer que atearia fogo ao convento se alguma daquelas possessas ousasse maltratar minha amada, mas sua lábia acabou me convencendo de que tudo acabaria dando certo. Quando regressamos à casa, estava de excelente humor, como um singelo Cândido oportunamente confortado por seu inestimável Pangloss.

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