Teatro/CRÍTICA
"Um número"
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Inquietantes ambigüidades
Lionel Fischer
"Num momento em que a comunidade científica tem o orgulho de anunciar a criação de vida artificial em laboratório, a temática desse texto não poderia ser mais atual. Churchill, uma das principais dramaturgas contemporâneas, construiu uma improvável pérola sobre a natureza humana a partir desse fato".
Este fragmento, extraído do programa e assinado por Pedro Neschling, diretor do espetáculo, certamente explicita a temática do texto. Mas está aqui reproduzido dada a curiosidade que me despertou sua última frase: construiu uma improvável pérola sobre a natureza humana - mais adiante tentarei colocar em palavras a razão de tal curiosidade.
Em cartaz no Espaço Sesc, "Um número", de autoria de Caryt Churchill, chega à cena com elenco formado por Pedro Paulo Rangel e Pedro Osório - não deixa de ser curioso o fato de que a presente montagem reúne artistas com o mesmo nome, algo que jamais presenciara.
Como já dito, o tema central do texto gira em torno da vida artificial criada em laboratório. Inicialmente, estamos diante de um pai que trava com seu filho um diálogo uma tanto obscuro, truncado, pelo menos até o momento em que fica claro que o tal filho não foi gerado de forma natural. E mais: que existem outros filhos, geneticamente iguais a ele, espalhados pela cidade. Ou seja: clones.
O filho tenta desesperadamente saber as razões de ter sido concebido desta maneira, mas durante um tempo o pai só responde com evasivas. A partir de um dado momento, mais dois filhos aparecem, fisicamente iguais ao primeiro, mas de personalidades totalmente díspares. E a roda continua a girar, sempre em torno do mesmo eixo: basicamente alguém que indaga e um outro que só a muito custo vai tornando menos nebulosas suas revelações.
E agora chegamos à frase que selecionei do diretor. Não sei exatamente o que Pedro Neschling quis dizer com improvável pérola sobre a natureza humana. Mas suponho que não julgue improváveis - no sentido de pouco críveis - os fatos apresentados, posto que então não se daria ao trabalho de encená-los. Talvez seja uma sutil ironia, cujo sentido seria exatamente o oposto: tudo que nos é mostrado seria absolutamente provável.
Seja como for, o fato é que o texto, ainda que um tanto ambígüo, sugere uma realidade palpável, do ponto de vista científico. Mas me parece que seu maior interesse reside na complexidade dos relacionamentos humanos, em especial os familiares, pois em meio às muitas indagações feitas, em especial pelo primeiro filho, muitas delas estão impregnadas de carências, afetos mal resolvidos, urgente necessidade de entender o presente a partir de esclarecimentos relativos ao passado. Posso estar completamente enganado, evidentemente, mas foi assim que o texto me chegou.
Com relação ao espetáculo, Pedro Neschling impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico - tanto as marcações, como a contracena estabelecida pelos atores, contêm sempre uma espécie de estranhamento, uma permanente atmosfera de desconforto, que talvez tenha sido o objetivo da autora. E a mesma eficiência se verifica no trabalho dos intérpretes.
Sendo Pedro Paulo Rangel um dos maiores atores deste país, em nada me surpreende a excelência de sua performance, tanto nas passagens faladas quanto naquelas em que preenche o silêncio de múltiplos significados. Pedro Osório também convence plenamente interpretanto os três personagens, a eles impondo características completamente diversas.
Na equipe técnica, são irrepreensíveis os trabalhos de todos os profissionais envolvidos - Pedro Neschling e Vitória Frate (tradução),Gilberto Gawronski (cenografia), Antônio Medeiros (figurinos), Adriana Ortiz (iluminação) e João Paulo Mendonça (música original).
UM NÚMERO - Texto de Caryt Churchill. Direção de Pedro Neschling. Com Pedro Paulo Rangel e Pedro Osório. Espaço Sesc. Quarta a sábado, 21h. Domingo, 19h30.
terça-feira, 4 de outubro de 2011
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