terça-feira, 22 de novembro de 2011

Teatro/CRÍTICA

"Estamira - beira do mundo"

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Comoção profunda no Porão


Lionel Fischer


Maior encenador vivo, o inglês Peter Brook define o teatro como "A arte do encontro". Ou seja: se não se estabelece um forte elo entre quem faz e quem assiste, o fenômeno teatral inexiste. E aqui estamos diante de um encontro que, sem nenhuma hesitação, afirmo que nenhum espectador jamais esquecerá - as razões detalharei mais adiante.

Inspirado no filme "Estamira", de Marcos Prado, "Estamira - beira do mundo" chega à cena (Porão da Laura Alvim) com direção e dramaturgia assinadas por Beatriz Sayad, e atuação, dramaturgia e idealização do projeto a cargo de Dani Barros.

Bertolt Brecht costumava dizer: "Ha pessoas que lutam durante um ano e são importantes; outras lutam durante 10 anos e são muito importantes; mas há aquelas que lutam durante uma vida inteira: essas são as pessoas imprescindíveis". E Dani Barros, sob todos os aspectos, é uma pessoa imprescindível.

Conheci Dani Barros quando ela tinhas uns nove anos de idade - desde então é amiga íntima de minha filha mais velha, a atriz Rita Fischer. E esse precoce conhecimento, ao longo do tempo, só fez ratificar minha certeza de que estava diante de uma pessoa que jamais se deixaria abater pelos reveses da vida - no caso de Dani Barros, tais reveses foram muitos, em especial o fato de ter um pai desconhecido (até recentemente) e uma mãe portadora de doença mental.

No entanto, cumpre ressaltar que, embora acossada por um distúrbio incurável e que terminaria levando-a a cometer suicídio, Maria Helena Coelho Barros jamais deixou de transmitir à filha preciosos ensinamentos, dentre eles jamais deixar de ser forte e, sobretudo, jamais deixar de ser ela mesma. Neste sentido, foi plenamente bem-sucedida, muito mais, por sinal, do que muitas mães supostamente sensatas e equilibradas. Em nome do teatro, portanto, agradeço a Maria Helena sua determinante contribuição para que Dani Barros se tornasse a incansável guerreira que sempre foi, é e continuará sendo. Isto posto, vamos ao espetáculo.

É óbvio que a catadora de lixo Estamira Gomes de Souza ganhou notoriedade graças ao maravilhoso filme de Marcos Prado. E este nos mostra uma mulher de espantosa sabedoria, capaz de empreender notáveis reflexões sobre múltiplos temas e, acima de tudo, um ser humano que encarou a vida de frente, sem jamais se colocar numa  postura de vítima, muito pelo contrário: extraía sua sobrevivência do lixo e nem por isso se considerava uma pessoa inferior. Dizem que era louca. Talvez o fosse. Mas será que nós, os supostamente sãos, encaramos a vida com a mesma garra e dignidade? Será que somos capazes de refletir sobre a vida com a mesma lucidez? Particularmente, acredito que não. 

Estamira vivia do lixo. Dani Barros, desde a primeira infância, adorava catar caquinhos, daí seu apelido: Maria Caquinho. Como já dito, Estamira era considerada louca. A mãe de Dani Barros, também. Assim, nada mais emocionante e corajoso do que juntar, no mesmo espetáculo, a trajetória dessas três mulheres, o que resulta numa das mais impactantes montagens que já assisti. 

Mesclando ficção e realidade, o deslumbrante texto escrito por Beatriz Sayad e Dani Barros possui, dentre seus muitos méritos, o de exibir uma narrativa impregnada de dor e humanidade, mas também capaz de nos fazer rir em determinadas passagens. Ainda assim, o que prevalece é uma dilacerante tentativa de conscientizar o público sobre a questão da loucura, propondo uma mais do que pertinente reflexão sobre o tema. Daí resulta um impacto que, ao menos na sessão que assisti, levou todos os espectadores presentes a um estado de profunda emoção.

Esta, sem dúvida, também se deve à direção e à atuação. A primeira exibe soluções criativas e imprevistas, cabendo ressaltar as passagens em que, impulsionados por dois ventiladores, dezenas de sacos de lixo alçam voo, vagando pelo espaço como pássaros encantados que, ao menos circunstancialmente, conseguem transcender a suposta miséria de que estariam constituídos.

Mas o céu é amplo e generoso, e acolhe com a mesma ternura tanto as garças como os urubús. Bom seria que, metáforas à parte, conseguíssemos abrigar, em nossos corações, todas as diferenças. E que um dia cheguemos a compreender que, na condição de homens, contemos tudo que é inerente ao humano. Aí, talvez, consigamos ser menos intolerantes e mais fraternos uns com os outros. Desejo utópico? Talvez. Mas são as utopias que fazem girar a roda da vida. Ou estarei completamente equivocado? 

Quanto à interpretação, Dani Barros ratifica, mais uma vez, sua condição de melhor atriz de sua geração. Extraordinária comediante, Dani é também capaz de convencer plenamente em contextos dramáticos, como no presente caso. Exibindo presença, carisma, impecável trabalho vocal e corporal e, mais do que tudo, impressionante capacidade de entrega, a atriz promove, como dito no parágrafo inicial, um encontro que o público jamais esquecerá. Assim, nada mais me resta a não ser implorar aos sempre caprichosos deuses do teatro que continuem abençoando a trajetória desta atriz imprescindível. E, no que me diz respeito, gostaria de agradecer a Dani Barros o privilégio de tê-la visto mais uma vez em cena.

Com relação à equipe técnica, considero absolutamente irretocáveis as contribuições de todos os profissionais envolvidos nesta montagem que, sob todos os pontos de vista, se insere entre as melhores da atual temporada - Tomás Ribas (iluminação), Aurora dos Campos (cenografia, em colaboração com Beatriz Sayad e Dani Barros), Juliana Nicolay (figurino), Fabiano Krieger e Lucas Marcier (direção musical), Georgette Fadel (preparação de ator), Luciana Oliveira (preparação vocal), Marina Considera (canto) e Cristiana Wenzen (condicionamento corporal).

ESTAMIRA: BEIRA DO MUNDO - Direção e dramaturgia de Beatriz Sayad. Atuação, dramaturgia e idealização de Dani Barros. Porão da Laura Alvim. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h.       

2 comentários:

  1. que lindo esse texto! Estou louca pra ver esse espetáculo. São duas mulheres que admiro muito: Dani e Beatriz! De cá estou sempre torcendo por vcs! bjo grande da Claudia Missura

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  2. Lionel, esperamos você no lançamento do Livro e dvd do espetáculo Antes da Coisa Toda Começar na fundição progresso segunda-feira, dia 12-12 as 20e30h. Abraço, Armazém Cia de Teatro

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