sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Artaud e Pirandello

Alain Virmaux


          Entre os dramaturgos cuja evocação propicia esclarecer melhor a imagem de Artaud, há lugar para uma citação de Pirandello. Não que se possa apontar afinidades importantes entre eles, mas a referência a Pirandello ilustra muito bem a principal evolução de Artaud: a que se detecta no jovem ator dos anos 20 e do profeta do Teatro da Crueldade dos anos 30. Esquematicamente, poder-se-ia dizer que representou Pirandello nos palcos antes de representá-lo mais tarde na vida; ator pirandelliano em sua estréia, acaba por tornar-se, na vida cotidiana, um personagem pirandelliano.

          A estréia de Artaud, com efeito, coincide mais ou menos com a revelação parisiense de Pirandello: revelação devida precisamente a Dullin e a Pitoëff, com quem Artaud trabalha sucessivamente. Chegou mesmo a representar dois pequenos papéis nas duas primeiras peças de Pirandello apresentadas na França: A volúpia da honra, montada por Dullin em 1922, e Seis personagens à procura de um autor, encenada pelos Pitoëff, em 1923. Esses detalhes biográficos e profissionais apresentariam por si só pouco interesse - afinal, Artaud representou também na companhia de Dullin, em uma peça de Molière, e isso não significa nada - se o jovem ator não houvesse paralelamente testemunhado seu entusiasmo por Pirandello.

          Ele redige para uma revista marselhesa uma resenha apaixonada da representação de Seis personagens. Através dela percebe-se muito bem aquilo que o seduziu: foi evidentemente o "jogo de espelhos" - ele próprio empregou a expressão - mas sobretudo o contraste chocante entre os atores reais - cabotinos nojentos, diz ele - e os personagens com rostos de espectros e como que mal saídos de um sonho.

          Artaud insiste com ardor nessa idéia de que a verdadeira realidade não está seguramente ao lado dos vivos. O vaivém pirandelliano entre a vida e o teatro, o rosto e a máscara, a personagem e o autor não podiam deixar insensível um homem que iria logo mais mostrar a importância que o teatro devia dispensar, segundo ele, ao jogo dos doubles. Basta relembrar sua predileção pelos manequins.

          Só que a noção do Duplo suscitou de fato em Artaud uma visão bem mais complexa do jogo pirandelliano dos espelhos. Desde 1923, seu futuro companheiro do Teatro Jarry, Roger Vitrac, tinha expressado sobre Seis personagens uma opinião diametralmente oposta à sua, zombando da pseudo-originalidade de uma peça na qual ele não via mais do que um belo "sucesso de teatro". Seja como for, tudo ocorre como se os olhos de Artaud se abrissem e ele vai, ainda uma vez, queimar o que havia adorado.

          Por que se afasta ele de Pirandello? Artaud dá uma explicação em 1931, num rascunho de carta a René Daumal: com Pirandello, ficamos no fim com uma concepção psicológica do teatro, ou melhor, uma concepção psicanalítica, que é apenas um passo a mais na mesma direção e não uma verdadeira mudança de orientação; atemo-nos assim a esta concepção do homem mergulhado no êxtase diante de seus monstros pessoais.

          O verdadeiro teatro está em outra parte. É a época em que Artaud começa a clarificar sua visão de um Teatro da Crueldade. Logo sua própria existência tornar-se-á teatro e se transformará em um exemplo vivo e dilacerado daquilo que Pirandello havia somente pressentido.

           Tomemos o Henrique IV de Pirandello: é impossível reler ou rever essa peça sem imaginar que Artaud tivesse, sem a menor dúvida, sido seu intérprete ideal. É a peça do delírio ao mesmo tempo simulado e vivido; a vida e a simulação se entrelaçam inextrincavelmente, e nela reconhecemos a própria tragédia de Artaud. Ele conheceu talvez essa obra, pois foi encenada em Paris por Pitoëff em 1925. É uma peça na qual poderia encontrar-se.

           Nela, a locura do herói era uma escolha; ela lhe permitia realizar-se plenamente, derrubar o muro das aparências e submeter os homens à sua vontade ("Diante dos loucos, todo mundo deve ficar de joelhos" - 2º ato). Ela lhe confere magicamente uma espécie de grandeza sagrada e de pureza que o leva a rejeitar qualquer idéia humana de cura: "Quando os outros se apõem à realização dessa pureza, é preciso ver neles as forças do mal", escreve Guy Dumur. Como não pensar que os psiquiatras simbolizavam para Artaud o mal absoluto? Ele também escolheu o delírio e nele se manteve.

          O que é um alienado autêntico? É o homem que preferiu se tornar louco, no sentido em que o fato é socialmente conceituado, a transigir com uma certa idéia superior da honra humana.

          É possível ter uma idéia do que poderia ser a interpretação do personagem de Henrique IV por Artaud (que jamais se impôs no palco ou no cineam a não ser em papéis alucinados), através da interpretação de Alain Cuny em Não se sabe como, de Pirandello (Paris, 1961). Cuny, que conheceu e admirou Artaud, propôs uma interpretação desconcertante de seu personagem, empregando "uma linguagem salmodiada em tons graves e repentinamente agudos, que atingia uma espécie de paroxismo litúrgico".

           É lícito considerar que esse estilo de representação devia parcialmente inspirar-se nas lições de Artaud. Depois disso é mister convir que Pirandello não é das pessoas com quem Artaud tenha contraído uma dívida. Certas obras do autor italiano, em compensação, se beneficiariam de um confronto com as visões introduzidas por O Teatro se seu Duplo.
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Extraído de Artaud e o Teatro (Editora Perspectiva)

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