terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Sobre a leitura e os livros

Arthur Schopenhauer


10.

          Seria bom comprar livros se fosse possível comprar, junto com eles, o tempo para lê-los, mas é comum confundir a compra dos livros com a assimilação de seu conteúdo.

          Exigir que alguém tivesse guardado tudo aquilo que já leu é o mesmo que exigir que ele ainda carregasse tudo aquilo que já comeu. Ele viveu do alimento corporalmente e do que leu, espiritualmente, e foi assim que se tornou o que é. Mas, da mesma maneira que o corpo assimila o que lhe é homogêneo, o espírito guarda o que lhe interessa, ou seja, o que diz respeito a seu sistema de pensamentos ou o que se adpata a suas finalidades.

          Certamente todos têm as suas finalidades, mas poucas são as pessoas que possuem algo semelhante a um sistema de pensamentos, de modo que não é um interesse objetivo o que os move, e é esse o motivo pelo qual nada do que lêem é assimilado e eles não conservam coisa alguma.

          A repetição é a mãe do estudo. Cada livro importante deve ser lido, de imediato, duas vezes, em parte porque as coisas são melhor compreendidas na segunda vez, em seu contexto, e o início é entendido corretamente quando se conhece o final; em parte porque, na segunda vez, cada passagem é acompanhada com outra disposição e com outro humor, diferentes dos da primeira, de modo que a impressão se altera, como quando um objeto é observado sob uma luz diversa.

          As obras são a quintessência de um espírito: em conseqüência disso, por maior que seja o espírito, elas terão sempre uma riqueza de conteúdo maior do que a possibilitada pelo contato com o autor e substituirão sua companhia no que é essencial, aliás, na verdade a superam de longe e a deixam para trás.

          Até os escritos de uma cabeça mediana podem ser instrutivos, divertidos e dignos de leitura, exatamente porque são a quintessência, o resultado, o fruto de todo o seu pensamento e estudo, enquanto sua companhia não nos poderia satisfazer. Isso explica porque é possível ler livros de pessoas em cuja companhia não encontraríamos nenhuma satisfação, e também é por esse motivo que a cultura espiritual elevada nos leva gradativamente a encontrar prazer apenas nos livros, não mais nos homens.

          Não há nenhum conforto maior para o espírito do que a leitura dos clássicos antigos: logo que uma pessoa tem em mãos qualquer um deles, mesmo que seja por meia hora, sente-se imediatamente renovado, aliviado, purificado, elevado e fortalecido; é como se tivesse bebido de uma fonte de água fresca em meio aos rochedos. Será que essa impressão se deve às línguas antigas e à sua perfeição? Ou à grandeza dos espíritos cujas obras sobreviveram aos milênios, intactas, sem perder seu vigor?

          Talvez aos dois fatores ao mesmo tempo. Mas de uma coisa eu sei: se o ensino das línguas antigas um dia chegar ao fim, como há o risco de acontecer agora, surgirá uma nova literatura, constituída de escritos tão bárbaros, rasos e sem valor como nunca se viu. Ainda mais quando a língua alemã, que de fato possui algumas das perfeições das antigas, é dilapidada e maltratada de modo apressado e metódico pelos escribas sem valor da "atualidade", de tal maneira que ela se transforma gradativamente, empobrecida e aleijada, num miserável jargão.

          Há duas histórias: a política e a da literatura e da arte. A primeira é a história da vontade, a segunda, a do intelecto. É por isso que a primeira geralmente é angustiante, mesmo terrível: medo, necessidade, engano e assassinatos horríveis, em massa. A outra, em contrapartida, é agradável e jovial, assim como o intelecto isolado, mesmo quando descreve erros e descaminhos. Seu ramo principal é a história da filosofia.

          Na verdade, esta constitui seu baixo fundamento, que ressoa até mesmo na outra história e conduz a opinião a partir de seu fundamento, mas é a opinião que governa o mundo. Assim, a filosofia também é, entendida em seu sentido próprio, o mais poderoso material, embora seu efeito seja muito lento.
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Extraído de A arte de escrever (L&PM POCKET)

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