terça-feira, 10 de setembro de 2013

Galpão, 30 anos
Grupo mineiro, com origem no teatro popular e de rua, chega à maturidade com o mérito de ter levado a arte dramática – com originalidade e alegria.

TEATRO
POR WILSON RENATO PEREIRA
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Novembro de 1982. O Grupo Galpão fazia sua estreia oficial em plena praça pública, mais precisamente na Praça 7, em Belo Horizonte, Minas Gerais. O espetáculo E a Noiva não quer Casar era fruto da criação e direção conjunta do grupo. Hoje, depois de quase 30 anos e com 2.500 apresentações na bagagem, a companhia ainda mantém intacto o espírito dos tempos heróicos em que foi criada. O segredo da longevidade é um projeto coletivo com base no amor ao teatro e dedicação ao público.
Com um baú contendo vestido de noiva, cartola, fraque e pernas de pau, o grupo – então composto apenas por Eduardo Moreira, Teuda Bara, Wanda Fernandes e Antônio Edson – começou com apresentações em festivais universitários. Depois, testou em esquinas, praças e bairros da periferia os resultados da pesquisa com elementos cênicos e linguagens de circo, música, farsa e melodrama. Tudo isso utilizando dramaturgia simples e o humor para o entendimento das suas mensagens.
Com a convicção de que o teatro deve ter uma comunicação fácil e “ir aonde o povo está”, como na música dos seus conterrâneos Milton Nascimento e Fernando Brant, os integrantes do Galpão resolveram viver só do teatro popular, o que incluía, muitas vezes, passar chapéu para recolher dinheiro. A manutenção de um grupo fixo, outra importante decisão, representou a possibilidade de um porto seguro: todos se ajudavam e discutiam alternativas de sobrevivência.
O espetáculo que trouxe fama nacional e internacional ao grupo foi Romeu e Julieta, de William Shakespeare, com direção de Gabriel Villela. Lançada em 1992, recebeu o Prêmio Shell e o prêmio especial do júri do Festival de Teatro de Curitiba, em reconhecimento à transformação de um drama clássico em uma divertida comédia adaptada para a cultura brasileira. O espetáculo misturava o cancioneiro popular mineiro com técnicas de teatro de rua. Os figurinos eram cobertos de cal colorida, os instrumentos, enfeitados com apliques multicores, assim como o cenário de sombrinhas e vasos de flores artificiais, tudo feito à mão.
Planejada para apresentação ao ar livre, a peça foi ensaiada na praça principal de Morro Vermelho, cidade do interior mineiro, com participação ativa da população. O elemento principal da cenografia era um Chevrolet Veraneio 1974 (a “Esmeralda”), que servia de palco, coxia, cenário e meio de transporte da trupe e seus equipamentos. Com a camionete, foram percorridos mais de 50 mil km – nas montagens internacionais, ela foi substituída por modelos locais.
As comédias do Galpão quase sempre foram entrecortadas por passagens divertidas também na vida pessoal dos artistas, envolvendo filhos “esquecidos” em paradas à beira de estrada, invasão de palco com criança pedindo à mãe-atriz para amarrar seus sapatos e muito mais que se pode imaginar do cotidiano inusitado de famílias mambembes.
Um exemplo disso ocorreu após a estreia da montagem da commedia dell’arte Arlequim Servidor de Tantos Amores (1985), de Carlo Goldoni – considerada pela crítica longa e confusa -, quando a mãe do ator Chico Pelúcio foi parabenizá-lo:
- Maravilha, meu filho! – disse ela.
- Como maravilha, mãe? Todo mundo viu que o espetáculo foi horrível! – respondeu.
- Mas adorei, porque agora ficou provado que você não tem o menor talento e deveria desistir logo desse negócio de teatro! – sentenciou aliviada a senhora, que, hoje, segundo Pelúcio, nega veementemente que tenha dito isso. Verdade ou não, é possível que o ator tenha seguido o conselho, pois abandonou o grupo em seguida e só voltou dois anos depois.
Como conseqüência da experiência fracassada, o Galpão entrou em crise, retornando à sua formação inicial após a saída de vários integrantes. Os que ficaram, resolveram dar um tempo para pensar em como prosseguir o trabalho. Uma das decisões foi a participação de diretores externos, cabendo ao primeiro deles, Ulysses Cruz, dar um novo rumo ao grupo.
Para piorar, um dos pilares do Galpão, a atriz Wanda Fernandes, morreu em um acidente de carro, em 1994. A companhia quase acabou, mas voltou à estrada graças aos esforços do diretor Gabriel Villela em uma remontagem de Romeu e Julieta, com Fernanda Vianna no lugar de Wanda. A partir de então, o grupo passou a contar com a formação de 13 membros, que mantém até hoje: Eduardo Moreira, Chico Pelúcio, Antônio Edson, Teuda Bara, Fernanda Vianna, Beto Franco, Inês Peixoto, Lydia del Picchia, Rodolfo Vaz, Júlio Maciel, Arildo de Barros, Simone Ordones e Paulo André.
Entre os diretores externos, foi com Paulo José que o Galpão teve uma de suas mais marcantes experiências. Com ele, foram realizadas as montagens de O Inspetor Geral, de Nicolai Gogol, e Um Homem é um Homem, de Bertolt Brecht. Mas a principal contribuição foi o aprendizado sintetizado na afirmativa de que “uma palavra mal colocada entope uma frase e um pensamento”, que mostra a necessidade do cuidado e apuro que dramaturgos e atores devem ter com textos e falas. Foi um conhecimento que levou o grupo a uma direção completamente diferente da qual vinha trabalhando. Se isso serviu para levar a competência do grupo das ruas para as salas, por outro lado reduziu os convites vindos de outros países, cujas plateias sempre demonstraram preferir o forte apelo de brasilidade, das alegorias e da musicalidade de peças pensadas para apresentação ao ar livre.
A nova trilha seguida pelo Galpão mescla obras clássicas com outras de lavra própria, mostra comédias, dramas, críticas políticas e sociais, espetáculos de rua e em palcos fechados. Hoje, estão em seu repertório as peças Pequenos Milagres, dirigida por Paulo de Moraes; Till, a Saga de um Herói Torto, com direção de Júlio Maciel; Um Homem é um Homem, dirigida por Paulo José; e a recente Tio Vânia (aos que vierem depois de nós), direção de Yara de Novaes.
O PhD, pedagogo, dramaturgo e diretor russo Jurij Alschitz, autor de treinamento psicofísico aplicado à autopreparação de atores, e sua assistente Olga Lapina, especialista em técnicas vocais, estão à frente do novo espetáculo Eclipse, o segundo do projeto Viagem a Tchekhov, previsto para estrear neste mês. Essa experiência vai além do trabalho de direção, incluindo laboratórios e estudos que Alschitz realiza com o pessoal do Galpão por meio do teatro psicológico do autor russo, abrindo novas possibilidades de atuação para atores que se notabilizaram principalmente pelas comédias de rua. “Usando com sabedoria e sensibilidade o espaço público e a linguagem acessível a todas as camadas da população, o Galpão sempre teve em seu DNA a ideia de levar o teatro ao encontro do maior número possível de pessoas”, diz Pelúcio, que também é diretor-geral do Galpão Cine Horto, antigo cinema da periferia de BH transformado em local de integração com a comunidade.
É no Galpão Cine Horto que a história, as origens e os sonhos do Grupo Galpão se tornam perenes por meio da formação, reciclagem e pesquisa para quem tem interesse em teatro, além de intercâmbio com entidades artísticas de diversas partes do Brasil e do mundo. Atualmente, estão sendo executados 17 projetos, entre eles o Conexão Galpão, de caráter educacional, que visa aproximar o teatro de dez mil crianças.

Lá está o Centro de Pesquisa e Memória do Teatro (CPMT), que disponibiliza gratuitamente um acervo bibliográfico, audiovisual e iconográfico de cinco mil títulos. O CPMT também mantém um selo editorial para publicação de livros de dramaturgia e o portal www.primeirosinal.com.br. O próximo projeto do Grupo Galpão é a construção da nova sede, em Belo Horizonte. Um espaço cultural sustentável que permitirá a ampliação das ações desenvolvidas pelo Galpão Cine Horto.
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Artigo escrito em 2012, quando o Galpão completou 30 anos de existência

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