quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Enfim,sós


                                                                                                              Comédia romântica de Bruno Mazzeo e
                                                                                                                             Cláudio Torres    Gonzaga


Personagens:
                        Zeca
                        Fernanda

Cenário - banheiro de classe média alta. À esquerda, uma porta  - que está fechada - que dá para o quarto do casal. Ao centro, mais para a esquerda, uma banheira com cortina. À direita, uma pia com armário. Ao lado, uma cesta de roupa suja. Mais no fundo o vaso.

Zeca está dentro do chuveiro, tomando banho. Fernanda entra em cena falando no telefone sem fio. Ela, que está quase pronta para sair, deixa a porta aberta.

Fernanda - Tô falando sério, Flavinha. Eu ganhei 150 quilos de nhoque. Depois eu te conto os detalhes que agora eu estou saindo.
Zeca - 150 quilos de nhoque? Isso não é contrabando? (Põe a mão pra fora do box e fecha a porta) Tá frio!
Fernanda (Diante do espelho) - Já disse que depois... tá bom. Rapidinho. Sabe aquele restaurante perto do trabalho, o Baggio's? Então. O cliente número 150 que chegasse para almoçar ganhava o prêmio, esses 150 quilos. E eu fui justamente a número 150. (Dá a última frase saindo. Para isso, abre a porta e a deixa aberta)
Zeca -150 quilos de nhoque...Eles sabem que você mora em apartamento? (Com a mão, volta a fechar a porta) Que frio desgraçado...(Imediatamente após ele fechar, Fernanda abre e volta a entrar, ainda no telefone. Segue se arrumando enquanto fala)
Fernanda - Não, ainda não. Vão entregar na semana que vem.
Zeca (De dentro do box) É melhor então a gente alugar o apartamento do vizinho. (Volta a fechar a porta)
Fernanda - Estou pensando em dar um jantar. (E sai, mais uma vez deixando a porta aberta)
Zeca (De dentro do box) - E vai convidar quem pra esse jantar? A Fat Family? (Fecha a porta. Imediatamente, Fernanda a abre novamente. Segue falando ao telefone)
Fernanda - Pode deixar, Flavinha, eu te chamo, sim. Agora eu tenho que ir. Um beijo.  (Desliga o sem fio e sai do banheiro com ele, deixando a porta novamente aberta)
Zeca - Se a Madame Nhoque não se incomodar, eu gostaria que a porta ficasse fechada, porque o sudoeste que tá vindo aí de fora não está brincadeira. (Fernanda entra e não fecha a porta. Vai direto ao espelho)
Fernanda - Também, esse banho não acaba nunca.
Zeca - Viu como é bom? Pela primeira vez você vai ficar pronta antes de mim. E por que essa pressa toda?
Fernanda - Se fosse pra jogar pelada você já estava pronto.
Zeca - Claro. Se fosse pra jogar pelada eu não estaria tomando banho antes.
Fernanda - O pior é que às vezes você não toma banho depois. (Zeca desliga a água e põe a cabeça pra fora da cortina)
Zeca - Só porque é Dia dos Namorados você acha que pode ficar me ofendendo?
Fernanda - Acho. (Zeca pega a toalha e fecha a porta)
Zeca (Se enxugando) - Sabe... eu nunca entendi esse negócio de Dia dos Namorados. Por que, exatamente no dia 12 junho, você tem que me dar um presente, eu tenho que te dar um presente, você tem que me dar um cartão, eu tenho que te dar um cartão, você tem que me desejar feliz dia dos namorados, eu tenho que te desejar feliz dia dos namorados, você tem...
Fernanda - Alguma hora você vai ter que parar com isso. (Zeca sai do box com a toalha enrolada na cintura)
Zeca - O que eu estou dizendo é que não sei porque eu tenho que te dar um presente justamente hoje, 12 de junho.
Fernanda - É a garantia de que pelo menos uma vez por ano você vai me dar um presente. Aliás, garantia não. Esperança.
Zeca - Ô, Nanda! Até parece que eu nunca te dou presente. Este ano mesmo...
Fernanda - ...você não deu nada. (Sai do banheiro, deixando a porta aberta)
Zeca - Como não?
Fernanda (Botando a cabeça dentro do banheiro) - Deu o que, então?
Zeca - Ué... o... a... quer dizer... Meu amor, o que me importam datas, calendários? A gente não precisa esperar 12 de junho pra se amar!? Por que eu te amaria mais em 12 de junho do que em 19 de fevereiro, 24 de maio, primeiro de março, 7 de setembro?
Fernanda (Voltando ao banheiro, deixando a porta aberta) Em matéria de nome de rua você está ótimo, mas presente de dias do namorados, que é bom... nada.
Zeca - É mais ou menos por aí.
Fernanda - Ai, Zeca, eu só queria que você entendesse. É uma data especial. Faz parte do nosso folclore.
Zeca - Folclore... Saci Pererê também faz parte do folclore e ninguém sai por aí um dia no ano pulando numa perna só.
Fernanda - Zeca, desde que a gente se casou, esse é o nosso primeiro Dia dos Namorados.
Zeca - Aí que tá. Nós não somos mais namorados. Nós já somos casados. Dia dos casados, existe?
Fernanda - Existe. O nosso aniversário de casamento.
Zeca - Exatamente. Esse é um dia nosso. Esse, sim, é um dia que deve ser mais do que comemorado.
Fernanda - E o nosso aniversário de casamento é...?
Zeca - Por que você não fecha a porta? Eu já te falei que tá frio aqui, não?
Fernanda (Bate a porta com violência) - Você não sabe nem o nosso dia de casamento!
Zeca - Assim você vai fechar a porta pra sempre!
Fernanda - Não enrola, anda: qual é o dia do nosso aniversário de casamento?
Zeca - Claro que sei. Todos! Todos os dias são nossos....Pelo menos pra mim.
Fernanda - Tudo bem. A gente, então, comemora hoje, afinal eu já fiz reserva num restaurante, e ano que vem a gente esquece, tá?
Zeca - OK, assim é...Em que restaurante você fez reserva?
Fernanda - Ué. Um... restaurante. Que não é nenhum daqueles a quilo que você costuma me levar.
Zeca (Indo para a porta) - Um dia você ainda vai reconhecer que “a quilo é que é comida". (Vai abrir a porta, mas a maçaneta sai em sua mão) Tudo bem que eu queria fechar a porta, mas nem tanto.
Fernanda - O que você fez?
Zeca - Juro que não foi de propósito. Você não acha que eu ia fazer a gente ficar trancado no banheiro justamente no Dia dos Namorados... e com jogo do Vasco na TV.
Fernanda - Jogo do Vasco? Mas você não é Vasco!
Zeca - Mas é final. Final não dá pra perder. Eu já calculei tudo: depois do jantar vai dar certinho na hora do intervalo do jogo. Eu vejo os melhores momentos e assisto o segundo tempo.
Fernanda - Quer dizer que sair comigo no Dia dos Namorados é só pra fazer hora pro jogo?
Zeca - Meu amor, pensa comigo: no momento, “sair” é o nosso maior problema. Se é pra fazer hora ou não, depois a gente resolve. (Começa a examinar a fechadura) Eu acho que posso consertar isso... me dá uma pinça.
Fernanda - Reta ou curva?
Zeca - Sem perfeccionismo, por favor. (Fernanda lhe entrega uma pinça. Ele começa a mexer a pinça no buraco da fechadura) E um cotonete...
Fernanda (Pegando no armário do espelho) - Pra que um cotonete?
Zeca - Tô com água no ouvido. (Fernanda entrega o cotonete. Volta ao espelho. Zeca se ajoelha diante da porta. Com uma mão mexe com a pinça, com a outra passa o cotonete no ouvido)
Fernanda - Conseguiu?
Zeca - Não, meu ouvido ainda está inundado.
Fernanda - Estou falando da porta.
Zeca - Nada ainda. Tem grampo?
Fernanda - Não.
Zeca - Fio dental?
Fernanda - Fio dental?
Zeca -Fio dental, ué. O MacGyver fugiu da cadeira elétrica usando fio-dental.
Fernanda -Achei! Toma, o fio-dental.
Zeca - É comum ou encerado?
Fernanda - Comum.
Zeca - Então não serve.
Fernanda - Zeca, qual é a diferença...
Zeca - Você viu o episódio? Pois eu vi. Fio dental que não é encerado não serve. Não serviu pro MacGyver, vai servir pra gente?
Fernanda - Vamos ver o que tem aqui... pronto! Já sei: um rolo de papel higiênico, três band-aids, tesourinha, gilete e duas lixas de unha. Toma. Se eu fosse casada com o MacGyver, com esse material, eu sairia daqui voando num avião caseiro! (Zeca começa a fazer força pra tirar os pinos da porta) Acho melhor você colocar uma roupa.
Zeca - Por quê?
Fernanda - Você tá ridículo fazendo força nu. Algumas coisas não podem ser feitas sem roupa. Pega alguma coisa no cesto de roupa suja. (Zeca vai até o cesto e tira de lá um desse saquinhos de super mercado com material de pelada dentro)
Zeca - Ainda não foi pra lavar o meu material da pelada?
Fernanda - Se você não puser pra lavar, vai ficar aí pra sempre, porque eu não ponho a mão nisso nem por uma mega sena acumulada!
Zeca - Qual o problema?
Fernanda - Você coloca num saquinho: meia com chulé, cueca suada, tênis com areia, uniforme ensopado de suor, fecha, deixa no porta-mala do carro uma semana, e quer que eu mexa? Eu, que nem em campo entro? Esse saquinho é o apocalipse dos odores. Uma arma química. Aliás, podia até usar como explosivo pra tentar abrir a porta. (Zeca coloca de novo o saquinho no cesto)
Zeca - Esse um problema que discutiremos depois. (Procura no cesto) Onde está a calça que eu estava usando hoje à tarde?
Fernanda - Escondi.
Zeca - Mas eu ia vestir ela de novo.
Fernanda - Era justamente isso que eu estava tentando evitar.
Zeca - É muito mais prático. Os bolsos já estão todos arrumados. Não preciso ficar transferindo.
Fernanda - Se existisse o Prêmio Nobel da preguiça você não perdia um! (Zeca acha uma outra calça)
Zeca - Não acredito! Você botou essa pra lavar também? Ainda dava pra usar uns três dias...
(Veste a calça)
Fernanda - Se tem uma coisa que não está bem resolvida na nossa relação são os hábitos de higiene.
Zeca - É só não confundir hábito de higiene com neurose de limpeza, como por exemplo lavar as bananas.
Fernanda - Pra não sujar a geladeira.
Zeca - Mas banana não se guarda na geladeira.
Fernanda - Não sei quem inventou isso. É muito melhor, a casa fica sem aquelas mosquinhas. Muito mais higiênico...
Zeca - ...e está provada a diferença entre hábito e neurose.
Fernanda - Bom, agora você já está vestido, pode fazer força. Tenta derrubar essa porta antes que a gente perca a reserva do restaurante. (Zeca se atira contra a porta, que permanece intacta. Tenta mais uma vez, inutilmente)
Zeca - Você viu que eu tentei.
Fernanda - Acho que você precisa de um pouco de exercício.
Zeca - O problema não é esse. Falta espaço pra pegar embalo. 
Fernanda - Má vontade sua.
Zeca - Como má vontade?
Fernanda - Você pode correr em círculos pra pegar embalo.
Zeca - Isso é ridículo.
Fernanda - Você diz que é ridículo porque a idéia é minha. Correndo em círculos você vai gerar uma força centrípeta...
Zeca - Centrífuga.
Fernanda - Ou isso. Com essa força você pode derrubar a porta.
Zeca - É, talvez faça algum sentido. É só eu sair pela tangente na hora certa.
Fernanda - Era o que eu estava dizendo.
Zeca - Não, não era isso que você estava dizendo. Você não sabe nem a diferença entre força centrípeta e centrífuga.
Fernanda - O que eu disse é que a idéia foi minha.
Zeca - No princípio, até foi, mas...
Fernanda - Tudo bem, tudo bem. Vai tentar ou não? (Zeca começa a correr em círculos. Fernanda fica em pé no vaso, incentivando-o. Zeca se atira contra a porta. A porta não se mexe e ele se esborracha no chão)
Zeca - Acho que não deu.
Fernanda - Parece que não. Acho melhor a gente esperar...(Ela se senta no chão, ele a imita)
Zeca - Ok...vamos esperar...estamos esperando?
Fernanda - Estamos...esperando...
Zeca - Esperando...o quê, por exemplo?
Fernanda - Alguém sentir a nossa falta.
Zeca - Sei...tem razão. Alguém realmente vai sentir a nossa falta. Daqui um mês, provavelmente.
Passagem de tempo
(O cenário é todo contornado por cortina de box. As passagens de tempo são feitas com a cortina fechando a cena e abrindo em seguida. A cortina corre como um wipe. Na volta, Zeca está sentado no chão. Fernanda está diante do espelho mexendo no cabelo)
Fernanda - Estou pensando em pintar o cabelo.
Zeca - Eu sabia que essa ociosidade não ia trazer coisas boas. Pintar pra que, amor? Você está linda.
Fernanda - Sei lá... mudar um pouco o visual.
Zeca - Tá pensando em pintar de que cor?
Fernanda - Talvez... violeta!
Zeca - Violeta?
Fernanda - Por quê? Você não acha bonito um cabelo cor de violeta?
Zeca - Sinceramente? Violeta só vai ser uma cor boa pra cabelo no dia em que moreno for uma cor boa pra uma flor. (Tempo) Você sabia que esse banheiro tem 1843 ladrilhos?
Fernanda - Sabia. E sei também que o piso tem 639 lajotinhas.
Zeca - Mas você não sabia que o número de ladrilhos multiplicado pela minha idade e dividido pela sua é 2012,5.
Fernanda - Mas eu sou uma idiota mesmo. Como eu nunca pensei nisso antes? Tive uma idéia!
Zeca - Vai fundo. (Fernanda dá um chute na porta. Nada acontece. Repete a ação, dando um grito de Kung-Fu. Nada acontece. Repete a ação com pose de Karatêkid. Falha de novo) Ainda bem que você não conseguiu.
Fernanda - Por quê?
Zeca - Eu ia me sentir péssimo sabendo estar casado com a Madame Karatê Kid.
Fernanda - Casado com a madame Karatê Kid, mas fora desse banheiro!
Zeca - Por quê? É tão ruim assim ficar presa comigo num lugar? A minha companhia é péssima?
Fernanda - Não é isso.
Zeca - É o que então? Diz o que você acha!
Fernanda - Eu não acho nada.
Zeca - Claro que acha. Você está odiando ficar comigo aqui, né? Qual o problema? Eu sou desinteressante? Minha conversa é chata? Eu tenho mau hálito? Se for isso eu escovo os dentes. (Começa a escovar os dentes. Fala com a boca cheia de espuma) Pronto! Está satisfeita agora? Está?
Fernanda - Só pra confirmar: você foi vacinado contra raiva?
Zeca - Desculpa, eu dei uma pirada. Acho que sou claustrofóbico.
Fernanda - Desde quando?
Zeca - Tô estreando hoje. Comecei a ficar quando aquela maldita maçaneta saiu na minha mão. (Vai dar um passo e manca)
Fernanda - O que houve?
Zeca - Minha perna dormiu.
Fernanda - Também, pudera. Quase uma hora na mesma posição fazendo equações sobre ladrilhos e lajotinhas...(Tempo) Eu tô começando a ficar angustiada. Vamos fazer alguma coisa pra relaxar.
Zeca - O quê?
Fernanda (Insinuante) - Sei lá...
Zeca - Será?
Fernanda - Por que não?
Zeca - Você está a fim?
Fernanda - De repente...
Zeca -Então...(Eles se abraçam e se beijam. Começam a se despir. Cortina)
Passagem de tempo
(Na volta, eles estão recolocando a roupa)
Zeca - O que a gente pode fazer agora?
Fernanda - Qualquer coisa que dure mais do que cinco minutos!
Zeca - O que você quer dizer? O mundo não se moveu?
Fernanda - Amor, nem o tapetinho do banheiro se moveu.
Zeca - Eu falei que a minha perna tinha dormido.
Fernanda - Antes fosse só a perna.
Zeca - Falando nisso, se pelo menos tivesse um baralho...
Fernanda - Mas não tem.
Zeca - Alguém podia trazer um baralho e passar carta por carta por debaixo da porta.
Fernanda - Genial...
Zeca - Não é?
Fernanda - É. Alguém viria aqui, e em vez de abrir a porta, passaria um baralho por debaixo dela. Carta por carta!
Zeca - Claro. Que bobagem a minha. A pessoa abrindo a porta podia entregar o baralho inteiro. (Ela começa a circular pelo banheiro) O que você está fazendo?
Fernanda - Procurando alguma diversão. (Ela vai até o armario)
Zeca - Está quente. Continua procurando. Quem sabe você não acha o WAR?
Fernanda - O WAR eu não achei, mas achei um bom motivo pra gente começar uma guerra.
(Ela tira de dentro do armário uma revista de mulher pelada) Aqui!
Zeca - Sim, uma revista. E daí?
Fernanda - E daí que não é uma revista qualquer! É uma revista de mulher pelada. É a Playboy!
Zeca - Tem mulher pelada nessa revista? Eu não sabia. Eu juro. Comprei pra ler a entrevista do Padre Marcelo Rossi.
Fernanda (Folheando a revista) - Mas você é muito bobo mesmo. Precisava esconder essa revista de mim?
Zeca - Sei lá se você não concorda com os preceitos religiosos do padre Marcelo.
Fernanda - Olha que coisa horrível. Esses peitos de silicone ficam todos iguais!
Zeca - Iguais que você diz... o esquerdo igual ao direito? Mas isso não é o certo?
Fernanda - Não, Zeca. Iguais os de uma mulher e de outra. (Aponta a foto) Aqui. Silicone puro!
Zeca (Olhando a foto) - Peraí! Como assim silicone? Esses peitos não podem ser falsos.
Fernanda - Mas são.
Zeca - Tudo bem. Mas são lindos.
Fernanda - Vai dizer que você acha esses peitos mais bonitos que os meus? (Tempo) Não precisa responder. A pausa já entregou tudo.
Zeca - Eu estava só tentando visualizar os seus pra fazer a comparação.
Fernanda - Você não aprende? Pra esse tipo de pergunta, a resposta tem que ser imediata. Não pode vacilar.
Zeca - Mas...
Fernanda - Não tem  mais nem menos. Você não acha que está bem grandinho pra ficar vindo pro banheiro com essas revistas e ficar olhando esses peitos de silicone?
Zeca - Eu não olho só os peitos.
Fernanda -Quer dizer que essa é a sua diversão: vir pro banheiro e ficar babando com essas piranhas!
Zeca - Fernandinha, não fala assim da menina.
Fernanda - Vai ficar defendendo?
Zeca - Não é isso...
Fernanda - É isso sim! Quer saber de uma coisa?
Zeca - O quê?
Fernanda - Eu vi as fotos do Vampeta! (Reação de surpresa de Zeca)
Passagem de tempo
(Quando a cortina abre, Fernanda está no espelho com o rosto cheio de creme)
Zeca - Por que você faz isso?
Fernanda - Poros dilatados.
Zeca - Como assim, poros dilatados? Eu admiro seu rosto há um tempão e nunca percebi a presença de nenhum desses poros dilatados.
Fernanda - Claro. Eu cuido deles antes que eles dilatem. Quer passar um pouco?
Zeca - Não, não, obrigado.
Fernanda - Deveria.
Zeca - Como assim?
Fernanda - Você tem cravos.
Zeca - Como assim?
Fernanda -Você tem cravos.
Zeca - Desde quando?
Fernanda - Sempre teve.
Zeca (Se olhando no espelho) - Por que você nunca me falou?
Fernanda - Eu quis te poupar desse sofrimento. Vem cá, vou limpar sua pele.
Zeca - Não, acho melhor, não.
Fernanda - Você vai gostar.
Zeca - Não tenho tanta certeza...(Ela o coloca no vaso para passar o creme) Já não estou gostando. (Ela prende o cabelo dele com uma presilha acima da testa) Você jura que isso vai ficar só entre nós dois?
Fernanda - Juro. (Começa a passar o creme)
Zeca - Tenho que confessar que isso me traz péssimas lembranças da minha infância.
Fernanda - Por quê? Seus pais te castigavam fazendo limpeza de pele em você?
Zeca - Minhas irmãs...quando eu era pequeno elas passavam maquiagem em mim.
Fernanda - Te colocavam vestidinho também?
Zeca - Só uma vez... E eu fiquei lindo, tá?
Fernanda - Tudo bem. Daqui a pouco vamos para a depilação.
Zeca -Que isso? Baixou a Tiazinha agora?
Fernanda - Tô brincando, meu amor. (Toca o telefone)
Zeca - Salvo pelo gongo.
Fernanda - Vai atender.
Zeca - Eu não. (Tirando o creme com a toalha) A essa hora deve ser alguma amiga sua querendo comentar o capítulo da novela. Ou, quem sabe, falar sobre poros dilatados, ou os cravos do marido.
Fernanda - Tenho certeza que é um dos seus amigos pra falar de futebol.
Zeca - Futebol! Eu tô perdendo o jogo! Vou atender! (Vai até a porta. Se lembra que estão trancados) Ninguém precisa saber disso. (A secretária eletrônica atende lá fora)
Secretária (OFF) - Boa noite, aqui é do restaurante Antiquarius. Nós estamos ligando para informar que em função do atraso sua reserva foi cancelada. Boa noite.
Fernanda - Ai, que pena...
Zeca - Peraí, peraí, peraí. Você fez reserva no Antiquarius?
Fernanda - Você não gosta do Antiquarius?
Zeca - Gosto, adoro. Tanto que nunca fui. E sabe por que eu nunca fui?
Fernanda - Não, por quê?
Zeca - Porque é caro para caralho!
Fernanda - Mas Zeca, é Dia dos Namorados.
Zeca - Caguei pro Dia dos Namorados! Nós estamos sem um puto, ainda nem terminamos de pagar essa porra desse apartamento, e por causa dessa merda desse 12 de junho vamos gastar uma baba nessa bosta de restaurante de dondoca!
Fernanda - Zeca...O que deu eu você? O que eu te fiz? Eu não sabia que tentar fazer do Dia dos Namorados um dia especial ia te irritar tanto!
Zeca -Eu não estou irritado!
Fernanda - Não grita comigo!
Zeca - Eu não estou gritando!!!
Fernanda - Então esse é que é o verdadeiro José Carlos: um estúpido, mesquinho e pão duro. Você não tem um pingo de sensibilidade! Grosso!
Zeca - Fresca!
Fernanda - Estou adorando esse convívio forçado. Acho que só agora eu estou te conhecendo.
Zeca - Pois pra mim, você ser fresca e dondoca não é novidade nenhuma!
Fernanda - Ah, é? Quer saber de uma coisa? (Tira a aliança do dedo) Tá vendo isso aqui?
Zeca - Peraí, jogar fora a aliança é o cúmulo da infantilidade.
Fernanda - Eu não vou jogar fora. (Ela recoloca a aliança, só que em outro dedo) Pronto.
Zeca - Você colocou a aliança no dedo errado!
Fernanda - Pra ficar bem claro que eu casei com o homem errado. A partir de agora devia ser lei: "Toda mulher antes de se casar devia passar um dia no banheiro com o futuro marido". Aí, sim, eles iam se conhecer. O problema é que ia diminuir muito o número de casamentos!
Zeca - Você está dizendo que se arrependeu de casar comigo?
Fernanda - Estou!
Zeca - Peraí, também não é pra tanto. A gente sempre teve nossas briguinhas.
Fernanda - Mas dessa vez você foi muito longe. Disse coisas que nunca tinha dito.
Zeca - Desculpa. Eu estou muito nervoso com essa situação toda. Esquece tudo que eu falei. Eu só falei besteira. Você vai me desculpar?
Fernanda - Depende.
Zeca - Depende de quê?
Fernanda - Zeca, me tira daqui! Se você conseguir me tirar daqui eu te perdôo. Por favor! Eu tô com fome!
Zeca (Inicia uma busca pelos armários) - Ô, minha lindona... Zequinha não vai deixar minha Nandinha ficar com fominha, não, tá?
Fernanda - No banheiro, Zeca? Vai me dar o quê? Sopa de Neosaldina ao molho de Alka-Seltzer?
Zeca - Ai, meu Deus... se a geladeira ficasse aqui no banheiro, você poderia comer banana.
Fernanda - Se a geladeira ficasse no banheiro, eu teria um monte de opções.
Zeca - Eureka! Achei! (Canta o jingle) Pastilhas Valda, Pastilhas Valda... larararará...
Fernanda - Diet?
Zeca - Tem onze. Toma cinco, eu fico com outras cinco e essa uma a gente joga fora. Tô brincando, pode ficar com seis. (Dá pra ela, que vira logo um monte) Come só uma.
Fernanda - Só uma mata sua fome, meu amor?
Zeca - Nunca se sabe. E se a gente ficar aqui uma semana? Ô, meu amor. Tô brincando. Claro que a gente não vai ficar aqui uma semana, é brincadeirinha...O que foi? A pastilha está estragada? (Vê a latinha) Dia 11. Venceu a validade ontem.
Fernanda - Não é isso.
Zeca - Isso é muito estranho. Como uma coisa vale até o dia 11 e no dia 12 já não serve mais? Ou seja. Dia 11, até às 11:59 eu posso comer a pastilha. Dia 12, meia-noite e um, já não posso. Eu sempre quis saber que revolução acontece dentro da latinha entre meia noite e... Zero hora é hoje ou ontem?
Fernanda - Zeca!
Zeca - Que foi!?
Fernanda - Eu tô apertada pra ir ao banheiro!
Zeca - Querida, não sei se você percebeu, mas você já está no banheiro.
Fernanda - É que eu preciso fazer xixi.
Zeca - Considerando as possibilidades, xixi é uma das poucas coisas que você pode fazer aqui.
Fernanda - Mas não na sua frente. (Zeca ri, acha que ela está brincando) Eu tô falando sério. (Zeca para de rir) Não consigo na sua frente.
Zeca - Mas, Nanda... pode fazer, eu não me incomodo. Nós somos casados. Eu sempre faço na sua frente.
Fernanda - E eu odeio isso. Entra no box, fecha a cortina, tampe os ouvidos e cante. (Ela o coloca lá dentro e fecha a cortina)
Zeca - Cantar o quê?
Fernanda - Qualquer coisa. Alto e rápido! (Foco de luz só no box)
Zeca - MPB, rock...?
Fernanda - Canta!
Zeca - ...samba, bolero...?
Fernanda - Qualquer coisa! Desde que seja rápido.
Zeca - "Travessia", que tal?
Fernanda - Ótimo, ótimo. Canta...
Zeca (Com a cabeça pra fora) - Mas eu não sei "Travessia".
Fernanda - Dá pra cantar alguma coisa?!
Zeca (Fecha a cortina) - Eu acho que sei "Trem das Onze".
Fernanda - Canta, porra! (Zeca começa a cantar, todo desafinado. Ouvimos a descarga. A luz volta ao normal. Fernanda se recompondo. A descarga, no entanto, não pára. Fernanda tenta fazê-la parar, mas não consegue. Zeca continua cantando) Zeca! A descarga disparou! Zeca, me ajuda com isso, pelo amor de Deus! (Fernanda abre a cortina do box. Zeca está cantando a parte do "Quais-Quais-Quais", sentado confortavelmente, de pernas cruzadas, lendo a tal revista de mulher pelada. Ele toma um susto e joga a revista pro lado. Os dois falam gritando, já que o barulho da descarga continua)
Zeca - Quer que eu mude a música?
Fernanda - Não! Quero que você faça a descarga parar!
Zeca (Tentando consertar a descarga) - Eu devo ter colado chiclete na cruz! Ficar preso no banheiro...
Fernanda - ...em pleno Dia dos Namorados...
Zeca (Não ouviu o que ela falou) - ...em pleno dia da final do Campeonato... roxo de fome... comendo pastilha de hortelã com a validade vencida... e ainda tenho que aturar esse esporro dessa descarga! Tô me sentindo embaixo da pororoca do Amazonas!
Fernanda - A gente vai acabar enlouquecendo!
Zeca - Eu prefiro morrer! Prefiro morrer e ser enterrado em pé, pra não ocupar espaço!
(A descarga pára, mas Fernanda não nota e segue gritando)
Fernanda - Logo hoje que eu precisava tanto falar uma coisa...(Se toca e volta a falar normal) Parou.
Zeca - Na hora certa. Falar o quê?
Fernanda - Quem?
Zeca - Você.
Fernanda - O quê?
Zeca - O que você precisava me falar?
Fernanda - Eu?
Zeca - Não, minha mãe!
Fernanda - Sei lá. Quando a gente sair daqui você liga pra ela e...
Zeca - Fernandinha, Fernandinha... abre o jogo. O que você precisava tanto me falar?
Fernanda - Ué, nada demais... ia falar que... na verdade, eu...não gosto daquela sua calça de veludo marrom.
Zeca - Hein?
Fernanda - Mas isso não importa agora. O importante é a gente sair daqui. (Começa a andar pelo banheiro à procura de uma solução. Zeca a observa, desconfiado)
Zeca - O que você tem contra minha calça marrom de veludo?
Fernanda - O ralo!
Zeca - Hein!?
Fernanda - Pode ser uma saída!
Zeca - Você pretende fugir pelo ralo?
Fernanda (Deitando-se no chão, com o rosto perto do ralo) - Câmbio!
Zeca - Peraí... você não vai pedir ajuda pros ratos, vai?
Fernanda - Meidei! Meidei!
Zeca (Para si) - É a cena mais patética que eu já vi em toda a minha vida.
Fernanda -Casal... banheiro! Precisamos socorro... alguém ajuda...
Zeca - Tudo bem, cara pálida. Os índios já devem estar a caminho.
Fernanda - Alguém pode estar ouvindo.
Zeca - Claro. É muito comum alguém ficar com a orelha colada no ralo. Dizem que é altamente relaxante, uma sensação incrível.
Fernanda - Tem que ter um jeito da gente sair daqui. E se...a gente jogasse alguma coisa pela janela?
Zeca - Vamos jogar ovo na rua. Assim, a gente aproveita e se diverte um pouco.
Fernanda - Tudo bem, eu assumo que guardo banana na geladeira, mas ovo no banheiro, nunca cogitei.
Zeca - Por que você não joga uma garrafa com uma mensagem dentro?
Fernanda - Uma garrafa!
Zeca - Brincadeiri...
Fernanda - Essa foi uma idéia de gênio! Uma garrafa com uma mensagem dentro! (Escreve com batom num pedaço de papel higiênico, enquanto fala) Por favor, nos ajude. Estamos presos no banheiro. Apartamento 902.
Zeca - Sua letra está horrível! Ninguém vai entender nada.
Fernanda - Não enche. Agora só falta a garrafa.
Zeca - Viu? Lembra quando eu sugeri que a gente montasse o bar no banheiro?
Fernanda (Pegando um vidro de perfume) - Aqui!
Zeca - Peraí, esse é o meu...(Fernanda esvazia o perfume na pia) Era.
Fernanda - Eu não via a hora de fazer isso. (Bota o papel com a mensagem dentro do vidro e vai até a janela)
Zeca - Cuidado, Nanda! Vê lá se não vai jogar bem em cima do radinho de pilha do porteiro!
(Fernanda joga o vidro pela janelinha. Ouvimos o ruído de um carro freiando, seguido de batida. Eles se entreolham)
Fernanda - Só espero que não botem a culpa no adolescente aqui de cima.
Passagem de tempo
(Na volta, Zeca está com Fernanda  no colo como se fosse usá-la para arrombar a porta com a cabeça. Ele conta, enquanto pega impulso)
Zeca - E é um, é dois, e é três e...
Fernanda - Mudei de idéia, mudei de idéia!
Zeca (Colocando-a no chão) - Eu sabia que você não era mulher o suficiente. (Toca um celular, som meio abafado) Isso é um celular?
Fernanda - É. E não é o meu, que eu tenho certeza que não está nesse banheiro.
Zeca - A calça que eu tava usando! (Começa a procurar a calça no cesto de roupa suja)
Fernanda - Como que pode você não lembrar que estava com o seu celular?
Zeca - Quem mandou você esconder a minha calça? (Encontra a calça, tira o celular do bolso e atende) Alô.
Fernanda - Pede socorro. (Zeca vai tentar falar mas é sempre interrompido por quem está do outro lado da linha) Fala, Heleno. Você ligou em boa hora...
Fernanda - Não embroma.
Zeca - Você vai me aju...Ah, é? Legal...Deixa eu te falar o meu proble...Você tá saindo do Maraca? Quanto foi o jogo?
Fernanda - Tá maluco? Manda ele vir pra cá.
Zeca - O Romário, é?
Fernanda - Zeca!
Zeca - O Baixinho tá demais. A gente se vê amanhã na pelada. Até mais. (Desliga)
Fernanda - Você desligou?
Zeca - Qual o problema?
Fernanda - O problema é que nós temos que sair daqui antes que esse excesso de intimidade destrua completamente o nossa casamento!
Zeca - Não tinha clima pra pedir ajuda pra ele.
Fernanda - E desde quando você precisa ter clima pra pedir ajuda a um amigo numa emergência?
Zeca - Sei lá, ele tava todo rouco por causa do jogo...
Fernanda - E por causa disso nós vamos ficar presos aqui pra sempre?
Zeca - Bobinha, nos já temos o celular. Podemos escolher pra quem ligar. O Heleno mora longe feito o diabo. Ele ia levar duas horas pra chegar aqui. Nós podemos ligar pra um vizinho e sair daqui em cinco minutos. Viu como seu maridão pensa em tudo?
Fernanda - Em quase tudo. Há algumas horas atrás, você podia ter lembrado que estava com o celular.
Zeca - Quem mandou você esconder a minha calça?
Fernanda - Ela estava imunda.
Zeca - Imunda, porém com o celular no bolso. E esse celular vai nos tirar daqui rapidamente. Agora, é só abrir e ligar pra alguém...se não tivesse acabado a bateria.
Fernanda - Eu não acredito. Seu babaca! Você gastou os últimos segundos da bateria, pra ficar falando merda com o seu coleguinha de merda.
Zeca - Não é bem assim. Eu tinha um plano.
Fernanda -Um plano de merda. Queria mostrar a superioridade de macho: “viu como o maridão pensa em tudo”. Não pensa em porra nenhuma. Tem merda na cabeça! Só porque você quis se exibir nos vamos ficar presos aqui até o apocalipse final! Eu vou morrer aqui.
Zeca - Calma, Fernanda. Você está pirando.
Fernanda - E o pior é que eu vou morrer com você.
Zeca - Não precisa me ofender.
Fernanda - A única coisa que eu quero agora é ofender você! Seu merda, babaca, escroto, viado, filho da...
Zeca - Calma, Fernanda! Segura a onda! Você surtou! (Fernanda começa a chorar. Ele a abraça e consola)
Fernanda - Desculpa. Hoje nada está dando certo. Estou tão nevosa.
Zeca - Isso tem a ver com aquilo que você ía me falar. Aquele negócio da calça marrom é lorota.
Fernanda - Não é não, eu odeio aquela calça.
Zeca - Tudo bem, mas tem mais alguma coisa.
Fernanda - Tem mais alguma, sim, Zeca. É que...(Ouvem um barulho)
Zeca - Que barulho é esse? Tem alguém abrindo a porta.
Fernanda - Graças a Deus! Estamos salvos! (Vai em direção à porta e começa a gritar) Ei de casa, nós estamos aqui!
Zeca - Calma! Quem além de nós tem a chave?
Fernanda - Além de nós só quem tem a chave é a Janete. Só pode ser ela.
Zeca - Eu não tô acreditando nisso, Fernanda. Desde quando você dá a chave da nossa casa pra diarista?!
Fernanda - Desde que a gente começou a morar junto. Qual é o problema? É muito mais prático. A gente não precisa ficar de plantão esperando ela chegar pra abrir a porta pra ela.
Zeca - Você já pensou no que isso pode dar? Você sabe com quem ela anda se metendo? Você sabe quem são as amizades dela?
Fernanda - Não, eu nunca fiz o Perfil do Consumidor da Janete. Agora, pára de ser paranóico e chama logo a Janete. (Zeca olha pelo buraco da fechadura)
Zeca - Me diz uma coisa: a Janete é careca e tem barba?
Fernanda - Só se de ontem pra hoje ela raspou o cabelo e colou na cara.
Zeca (Olhando) - A Janete costuma coçar o saco?
Fernanda - Nunca reparei.
Zeca - Nandinha querida do meu coração. Se a Janete não tem o cabelo raspado, não usa barba e sequer tem saco para ser coçado, podemos concluir que nossa casa está sendo assaltada. (Fernanda toma um susto e vai gritar, mas Zeca consegue tapar sua boca. Eles sussurram) Tá maluca? É melhor que o ladrão não saiba que a gente tá aqui.
Fernanda - Será? E se a gente pedir pra ele abrir a porta pra gente?
Zeca - Tá louca? Bebeu água da privada? Vamos ficar quietos aqui. O máximo que pode acontecer é ele levar a TV, o vídeo, o som, o computador...
Fernanda - ...o microondas, as jóias, a geladeira...
Zeca - ...o fogão, a máquina de lavar...
Fernanda - Isso se ele tiver vindo de van.
Zeca - Mas pelo menos com a gente ele não vai fazer nada. Vão-se os anéis, ficam os dedos.
Fernanda - Sem provérbios, por favor. (Zeca olha pela fechadura)
Zeca - Acabou de pegar a sua caixinha de jóias.
Fernanda - Só tem bijuteria.
Zeca - Nossa coleção de CD.
Fernanda - Confesso que não vou sentir falta dos CDs do Fagner.
Zeca - Pelo visto você está adorando esse assalto. (Toca o telefone lá fora) Talvez ele se assuste com o telefone. (Ouvimos em OFF o ladrão atendendo. Zeca fica todo o tempo com o olho na fechadura, narrando o que acontece)
Ladrão - Alô. Fernanda?
Zeca - Era pra você.
Ladrão - Não, ela tá no banheiro.
Fernanda - Ai, meu Deus, ele já sabe!
Ladrão - Não, aqui é o marido dela.
Zeca - Puta que pariu, Nanda. Teu marido é feio pra cacete!
Fernanda - Engraçadinho...
Ladrão -Meu nome? É...Red Label.
Fernanda - Hãn?
Zeca - Ele tá tomando um uisquinho.
Ladrão - Motel "Senzala do Amor"? Aquele de bacana?
Zeca - "Senzala do Amor"? (Olha para Fernanda. Ela se justifica apenas com o olhar) Mas esse motel é caríssimo.
Fernanda - Dizem que tem até som estéreo no bidê.
Ladrão - Já está paga!? A suíte presidencial?! E presidente passa a noite em motel, é?
Fernanda - Usei o seu cartão.
Ladrão - Não, não cancela a reserva, não, gente fina, que eu já tô a caminho. (Barulho de telefone sendo desligado)
Zeca - Não, não precisa falar nada. Eu já entendi. Você escolheu o Dia dos Namorados pra me levar à falência. Acertei?
Fernanda - Ai, Zeca, eu vou ter que te falar, antes que você brigue comigo de novo...(Ouvimos o barulho de outra pessoa entrando)
Zeca - Pelo jeito o nosso amigo tem visita.
Fernanda - Ai, meu Deus, devem ser os capangas!
Janete - Bigorna, Bigorna.
Fernanda - Eu conheço essa voz. (Zeca vai olhar pela fechadura)
Zeca -  Conhece a voz, o corpinho, o feijão com o arroz e... o Henê.
Fernanda - Janete!!!
Zeca - Bingo!
Fernanda - Não pode ser.
Zeca - Já é.
Janete - Vambora logo.
Ladrão - Mas eu só peguei essas bijuterias e esses discos horríveis do Fagner.
Janete - Está cheio de polícia lá em baixo, teve uma batida. Uns adolescente jogaram uma garrafa lá de cima. Ainda tinha uma baixarias escritas com batom dentro da garrafa.
Ladrão - Esses filhinhos-de-papai...Mas vamo sair saindo, minha nêga, que eu vou te levar no paraíso! Nós vamo no mesmo motel que o Fernando Henrique castiga a dona Ruth! (Barulho da porta sendo fechada)
Zeca - Foram embora.
Fernanda - Amor, me desculpa, mas como eu podia imaginar? A Janete sempre me pareceu uma pessoa tão boa!?
Zeca - Vai ficar melhor ainda tomando chibatada do Bigorna na "Senzala do Amor". E sou eu que estou pagando!
Fernanda - Realmente, está difícil, Zeca. Se eu tivesse me casado com o Enéas, era mais fácil ter um diálogo. Tem mais pastilha?
Zeca - É pra depois.
Fernanda - Eu tô morta de fome.
Zeca - Pensasse nisso antes de devorar as suas. Mas não! Enfiou tudo na boca. Poderia ter morrido com overdose de hortelã.
Fernanda - Me dá uma pastilha ou eu peço o divórcio! (Zeca tira do bolso uma pastilha e a exibe como um troféu. Quando Fernanda faz menção de pegar da mão dele, ele a engole)
Zeca - Hummm... mas isso é o manjar dos deuses! Que delííícia...
Fernanda - Era a última?
Zeca - Sinto lhe informar, querida, mas... era. Acabou-se o que era doce.
Fernanda - E então? Você está feliz?
Zeca - Por que estaria?
Fernanda - Por ter conseguido se livrar do Dia dos Namorados.
Zeca - Eu nunca disse que odeio o Dia dos Namorados, que queria me livrar do Dia dos Namorados. Só disse que dispenso esse negócio de bom-bons, flores, cartões, etc, etc, etc...
Fernanda - É? Então por que ano passado você me deu bom-bons, flores, cartões, etc, etc, etc?
Zeca - Ano passado a gente ainda estava começando a namorar. Eu queria te conquistar.
Fernanda - E agora não?
Zeca - Não, agora eu já tenho você. Por isso os homens se casam. Assim páram com essa idéia fixa de conquista. Você não sabe porque é mulher, mas é muito cansativo. Por isso, é assim que funciona: você conquista, e dá um tempo pra si mesmo.
Fernanda - Eu tô chocada com isso que tô ouvindo.
Zeca - Fernanda... você sabe que eu te amo, não sabe?
Fernanda - Sei... mas às vezes não faria mal algum gesto romântico. Eu sinto muita, mas muita falta mesmo, do Zeca romântico que eu conheci, do Zeca romântico por quem eu me apaixonei. (Zeca tira do bolso uma pastilha e entrega a Fernanda, como se entregasse flores)  
Zeca - Me perdôa. Eu te amo. (Emocionada com o gesto, Fernanda pega a pastilha e parte ao meio, dando a outra metade para Zeca. Quando Fernanda vai colocar sua metade na boca, Zeca segura o braço dela e coloca o seu de modo a que os braços dos dois fiquem cruzados, como se fossem beber champagne. Comem suas pastilhas assim e se beijam apaixonadamente)
Fernanda - Zeca, você sabe que eu te amo muito, né?
Zeca - Ih... pelo papo lá vem você de novo detonar minha calça de veludo marrom.
Fernanda - Eu preciso te dizer uma coisa...
Zeca - Eu também tenho uma pra dizer, e prefiro dizer antes que você. Fernanda... eu te amo mais do que tudo nesse mundo. Você é um anjo que apareceu na minha vida. Mas a calça de veludo marrom foi um presente de mamãe, eu não posso...
Fernanda - Eu tô grávida.
Zeca - Eu prometo que só uso a calça quando a gente for encontrar a minha mã...Como é que é?
Fernanda - Eu tô grávida, Zeca.
Zeca - Você... grávida..?
Fernanda - Completamente.
Zeca - Mas como assim?
Fernanda - Você quer uma resposta técnica, biológica ou afetiva? É melhor ir do principio.  Primeiro você regou minha sementinha...
Zeca - Essa parte eu sei. Fernanda, isso é muito sério. Você tem certeza do que você tá me falando?
Fernanda - Claro. O que está havendo, Zeca? Você detestou a notícia? Você não quer ter um filho comigo?
Zeca - Não é isso. Claro que eu quero. Só não sei se é esse o momento.
Fernanda - E quando é o momento?
Zeca - Sei lá. Tem que pensar bem, filho é uma coisa pra vida toda.
Fernanda - E qual o problema? Você não pretende ficar casado comigo por muito tempo?
Zeca - Fernanda, eu pretendo ficar com você pro resto da minha vida.
Fernanda - Mas só nós dois? Acho melhor ter alguém pra equilibrar. A gente está aqui sozinho há três horas e quase já se matou duas vezes. Imagina numa vida inteira.
Zeca - Eu te amo. Eu não consigo me imaginar com outra mulher que não você. É claro que eu sempre te vi como a mãe dos meus filhos. Mas...
Fernanda - Odiei esse “mas”. Um “mas” depois de uma declaração dessas, das duas uma: ou você vai me trocar por alguém ou você é gay.
Zeca - Meu amor, eu jamais vou te trocar por mulher nenhuma!
Fernanda - Zeca, você é gay?
Zeca - Que gay, o quê? Não tem nada a ver com isso.
Fernanda - Tá. Então me explica aquele “mas”.
Zeca - Recapitulando. Eu te amo... blá, blá, blá... claro que eu quero ter um filho com você... blá, blá, blá... blá, blá, blá...mas... eu perdi meu emprego.
Fernanda - Meu amor, era isso? Por isso você estava tão pão-duro? Zeca, você é um jornalista brilhante. Você tem alguma dúvida de que vai arranjar outro emprego melhor ainda? Te garanto uma coisa: antes do nosso filho nascer você já vai ter dado a volta por cima. Até lá, o que eu ganho dá pra segurar...
Zeca - É que eu fico muito preocupado, amor. Eu quero o melhor pra você, e agora também pro nosso filho. Se você tivesse me dado essa notícia numa hora em que a situação não estivesse tão ruim, eu te garanto que estaria pulando de alegria.
Fernanda - Mas, Zeca, pensa bem: se não fosse o fato de você ter perdido o emprego, se a gente não estivesse trancado no banheiro sem perspectiva de sair, se a gente não tivesse causado um acidente lá embaixo, se nossa casa não tivesse sido assaltada e se seu último dinheiro não estivesse neste exato momento sendo gasto pelo Bigorna e pela Janete na “Senzala do Amor”... você estaria feliz em saber que vai ser pai?
Zeca - Tirando isso?
Fernanda - Zeca, você estaria ou não estaria feliz?
Zeca - Não, amor. Eu não estaria feliz. Eu estou feliz! Muito feliz, mais do que nunca! (Eles se abraçam, emocionados) Nosso filho vai ser lindo. Quer ver como ele vai ser lindo? (Fernanda faz que sim com a cabeça. Zeca pega seu rosto com as duas mãos e o vira de frente para o espelho) Tem alguma dúvida? (Eles voltam a se abraçar. De repente, Zeca sai do abraço)
Fernanda - O que foi?
Zeca - Fernanda...esse filho foi a melhor notícia que eu podia receber. Mas...
Fernanda - Ih... lá vem você com esse “mas”.
Zeca - Quero saber como é que a gente vai fazer esse parto aqui no banheiro.
Passagem de tempo
(Fernanda está mexendo na fechadura com um grampo)
Zeca - O que você está fazendo com esse grampo?
Fernanda - Um penteado na fechadura é que não é! Estou tentando abrir a porta.
Zeca - Não sei porque você vai perder seu tempo. Eu já fiz isso durante horas.
Fernanda - Você tem alguma outra proposta pra ocupar o meu tempo?
Zeca - Nós podíamos começar a pensar no nome do nosso filho.
Fernanda (Continua ) - Sabe como meus pais escolheram o nome do meu irmão?
Zeca - Como?
Fernanda - Lista telefônica. Minha mãe tinha que abrir já apontando um nome. O que caísse, eles colocariam.
Zeca - Poxa, então ele deu sorte de cair em Felipe.
Fernanda - Sorte nada. Se meu avô não intercedesse ele se chamaria "Refrigeracão Cascadura". O que você acha de Douglas?
Zeca - Tá de sacanagem, né? Você acha que vou deixar meu filho se chamar Douglas?
Fernanda - Sei lá, é diferente. Douglas.
Zeca - Peraí, Douglas não era o nome do seu avô?
Fernanda - Era. Era do meu avô e vai ser do nosso filho.
Zeca - De jeito nenhum.
Fernanda - Zeca, eu prometi a ele no leito de morte que o meu filho ia ter o nome dele.
Zeca - Quantos anos você tinha?
Fernanda - 12.
Zeca - Quer dizer que o meu filho vai ser punido com uma ofensa - por que Douglas não é nome, é ofensa - porque uma débil de 12 anos fez uma promessa maluca pra um moribundo gagá?
Fernanda - Você tem uma capacidade incrível de ofender as pessoas. Em cinco segundos você xingou, a mim, ao meu avô e ao seu filho. Não adianta, você é um grosso.
Zeca - Quer dizer que ter apreço pelo nome do filho, uma coisa que ele vai carregar pra vida toda, é grossura? Então, se eu disser que você é uma pentelha, é o quê?
Fernanda - Zeca!
Zeca - Eu disse "se eu disser", mas não disse. Eu só queria te mostrar o que é uma grossura.
Fernanda - Você é um estúpido. Será que não dá pra sacar que eu estou grávida? Eu planejei te contar justamente no Dia dos Namorados pra essa ser uma noite inesquecível, e olha o que aconteceu.
Zeca - Noite inesquecível nós estamos tendo, pode ter certeza.
Fernanda - Desisto. É impossível tirar uma gota de sensibilidade de você.
Zeca - Por que só você tem o direito de estar sensível? Eu estou péssimo. A diferença é que você chora e eu finjo que sou engraçadinho e tiro tudo de letra. Sorte sua que chora.
Fernanda - Eu não acredito. É a teoria mais cretina que eu já ouvi. É só uma maneira a mais de dizer que você é melhor do que eu. A embalagem mudou um pouco, mas o discurso machista é o mesmo. Vocês, homens, não engolem mulheres independentes.
Zeca - Isso não tem nada a ver com machismo.
Fernanda (Abrindo a porta) - Consegui!
Zeca - Foi sorte!
Fernanda - Não foi sorte. Eu fui melhor que você. Eu consegui abrir a porta que você trancou e não conseguiu abrir.
Zeca - Você só abriu porque eu passei horas mexendo aí antes. Aí amoleci pra você.
Fernanda - Aprende uma coisa, querido: um palpite feminino vale cem vezes mais do que uma certeza masculina.
Zeca - Tudo bem, mas que você abriu a porta na sorte, abriu. Quer apostar? (Ele bate a porta) Abre de novo.
Fernanda - José Carlos, você é maluco? Você não acha que tá levando isso longe demais? Eu...
Zeca - Calma, Fernanda, calma. Desculpa. Tá? Você tem razão, eu sou um grosso. É muita coisa pra minha cabeça, eu acabo falando coisas sem pensar, descontando em você. Eu te amo e não tenho dúvida de que você é muito melhor do que eu. Se Deus um dia resolver inventar uma mulher melhor que você eu...
Fernanda - ...você?
Zeca - Eu não vou querer nem saber, porque eu já tenho a melhor mulher do mundo. Eu bati a porta porque tenho certeza que você vai abrir de novo. (Se aproxima dela) Eu só queria ficar com você aqui mais um pouquinho. (Começam a  se acariciar)
Fernanda - Enfim, sós.
Zeca - E a minha perna não está mais dormente. (Eles vão se beijar, mas Fernanda interrompe a ação, tira a aliança e a recoloca no dedo certo. Eles sorriem e se beijam longamente. A porta se abre sozinha, lentamente, mas zeca a fecha com o pé, sem parar de beijar)

FIM

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Esta peça foi escrita entre novembro de 99 e janeiro de 2000. Bruno Mazzeo é roteirista da TV Globo, mesma função de Claudio Torres Gonzaga na emissora, sendo que este último é também ator, diretor e professor na Uni-Rio.


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