segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Flores de Chumbo

Lionel Fischer
(1984)

CAPÍTULO XXV


Dormi até as três da tarde, mas só me dispus a erguer o corpo meia-hora depois. Durante esse tempo me ocupei essencialmente com cabeças. Em primeiro lugar com a minha, que dava a sensação de haver triplicado de tamanho. E depois com a de monsenhor que, surpreendentemente sentado na parte pontuda do sofá, não me pareceu nada bem. Como ele também ingerira grande quantidade de vinho na véspera, imaginei que apenas curtisse uma formidável ressaca. No entanto, intuí que deveria haver algo mais com o prelado, cuja absoluta imobilidade não se justificava. Erguí-me, então, procurando fazer o mínimo de barulho, pois temia assustá-lo, e me esgueirei até a poltrona. Uma vez instalado, passei a observá-lo com uma curiosidade de analista em início de carreira.

Monsenhor não se recostara no espaldar do sofá; mantinha as mãos apoiadas sobre as coxas e o pescoço levemente inclinado para a frente. Parecia alguém que assistisse a uma brilhante conferência. Apenas seus olhos, totalmente vidrados, contrariavam essa minha "perspicaz" avaliação: nada viam, apenas boiavam num rosto rijo. Passados alguns minutos, comecei a ficar seriamente inquieto. Nunca o vira em semelhante estado. Se não o conhecesse e ele tivesse os olhos mais puxados, julgaria estar diante de um chinês catatônico. Que estaria se passando com o prelado? Resolbi interpelá-lo.

- Desculpe me imiscuir em seu devaneio, monsenhor, mas a verdade é que eu...

- Eu não estou devaneando. Estou apenas tentando me controlar.

Sua resposta confirmou minhas suspeitas. Algo de muito grave se passava. Portanto, a situação exigia tato, bom senso, precaução, enfim, virtudes com as quais sempre convivera com bastante parcimônia. E vista disso, optei por um silêncio expressivo, única maneira de não piorar o que já me parecia péssimo. E teria ficado calado o resto do dia se o próprio monsenhor não tivesse se encarregado de elucidar o mistério.

- Não sei por que, Gabriel...- principiou ele, com visível emoção -...mas assim que acordei tive certeza de que morreria hoje. Estou apavorado...

Embora o apavorado fosse ele, a respiração se me tornou difícil e meus olhos marejaram. Só não tive um descontrole intestinal porque nada tinha a expelir. Mas consegui reagir e lhe disse:

- Monsenhor: o senhor viverá ao menos mais 30 anos! Viverá o suficiente para me conceder a extrema-unção! Essa sua depressão é comum nas pessoas pouco habituadas a tomar vinho. É a famosa rebordosa. Até os romanos já diziam que...

- Você acha que eu não sei distinguir angústia de ressaca?

- Provavelmente, mas não a agústia da ressaca! Pelo que me consta o senhor nunca foi dado a bebedeiras. Além disso é preciso levar em conta a debilidade do seu estado geral. Quem come jacaxi uma semana inteira e toma um quarto de garrafão de vinho tem que ficar mal, o senhor não acha? Veja o meu caso, por exemplo: nunca me aconteceu levantar depois do meio-dia e a que horas eu despertei hoje? Às três da tarde! E ainda por cima levei meia-hora para conseguir me levantar. Tudo isso por que? Porque eu também estou debilitado e bebi mais do que devia.

Não sei se monsenhor ficou aliviado com o conteúdo do meu discurso, mas o fato é que se absteve de prolongar nosso debate. Recostando-se no espaldar do sofá, cruzou as mãos sobre o ventre e ficou me olhando com uma expressão séria. Intuindo que se ficássemos em silêncio ele poderia ter uma recaída, propus que comêssemos alguma coisa e em seguida déssemos um longo passeio. Monsenhor não me pareceu seduzido com minha proposta, mas em todo o caso aceitou-a. Fomos então para a mesa e fizemos uma rápida refeição. Depois, saímos.

Mal havíamos transposto a porteira, monsenhor se virou na direção da granja. A princípio pensei que ele houvesse esquecido alguma coisa e estivesse em dúvida se voltava para buscá-la. Mas logo compreendi que ele apenas a olhava. Embora sem entender os motivos que o levavam a uma tal atitude, julguei conveniente deixá-lo à vontade e me afastei alguns passos. Mas como essa contemplação começou a se estender em demasia, acabei voltando para o seu lado com o objetivo de, sutilmente, fazer-lhe ver que seria da maior conveniência abreviá-la. Foi então que percebi que monsenhor chorava. Sem saber o que fazer, dei-lhe o braço e o retirei dali.

Monsenhor não opôs nenhuma resistência, como também não procurou camuflar a tristeza que lhe invadira. Quanto a mim, limitei-me a rebocá-lo, olhando sempre para a frente, como um cavalo de charrete. Só quando atingimos a cidade é que me permiti torcer o pescoço a fim de dar uma espiada em monsenhor. Ele já não mais chorava, mas estava terrivelmente pálido e continuava exibindo um ar ausente. Se me ocorresse, por exemplo, virar à esquerda e ficar contornando indefinidamente um poste, tenho certeza de que ele nada diria. Como um autômato, não reagiria aos impulsos recebidos: apenas obedeceria.

Essa marcha sonâmbula nos levou até o extremo da cidade. E aí se deu a inesperada transformação de monsenhor. Seu corpo sem vida voltou a pulsar. Seus olhos, que nada viam, tornaram-se febris. E sua voz, que o pranto emudecera, explodiu num grito lancinante:

- O convento está em chamas!

Não sei quanto tempo levamos para atingi-lo. Sei apenas que quando lá chegamos a impressão era de que ele já se achava totalmente tomado pelo fogo. O portão fora aberto para que as irmãs pudessem se evadir, caso fracassassem em sua tentativa de debelar o incêndio. E foi por ele que entramos. Ao chegarmos ao pátio central, este parecia ter-se convertido na imagem perfeita do Apocalipse. Ninguém parecia se entender. Dezenas de irmãs corriam de um lado para o outro, sem saber ao certo o que fazer com os baldes e bacias cheios d'água que transportavam. Outras tantas, segurando cobertores, discutiam entre si e pareciam perdidas. Das janelas do segundo andar alguns irmãs, ali isoladas pelo fogo, imploravam ajuda. De repente, uma irmã que resolveu passar perto de mim, teve a marcha bloqueada pelo meu pâmico. Agarrando-a pelo pescoço, perguntei como acontecera tudo aquilo.

- Foi Anilec, a maldita! Ela e seu grupo incendiaram o convento!

- E irmã Geovana, onde está? - gritei, fora de mim.

- Não sei! Não sei!

- Solte-a, Gabriel! - interveio monsenhor. - Pelo amor de Deus, você a está matando!?

E devia estar mesmo, pois quando a soltei, a mulher caiu desfalecida.

- Temos que encontrá-la, monsenhor!

Sem perda de tempo, o valente prelado se dirigiu para uma das entradas que levavam aos andares superiores e que o fogo ainda não obstruíra. Quando estávamos quase atingindo-a uma irmã, que gritava desesperada de um a janela, não dominou mais o próprio terror e se atirou lá de cima, só não caindo sobre nossas cabeças por milagre. Ainda me voltei para o corpo inanimado, mas monsenhor, agarrando-me pela camisa, gritou:

- Não há tempo a perder. Outras cuidarão dela. Vamos! - e penetramos no inferno.

No primeiro andar, ao menos no trecho em que estávamos, o fogo apenas começava, mas havia uma grande quantidade de fumaça, que nos dificultava a visão e fazia tossir. Mas monsenhor parecia conhecer perfeitamente o local, pois logo atingimos uma escada em forma de caracol que galgamos com a agilidade de alguém que estivesse com o demônio em seu encalço. O segundo andar já estava praticamente tomado pelas chamas e por um momento fiquei aterrado na suposição de que ali poderia estar minha amada. Mas como monsenhor continuou subindo, minhas esperanças renovaram-se.

A situação no terceiro andar era menos drástica. Havia fumaça, mas não se via fogo. Assim que o atingimos, iniciamos frenética peregrinação por um extenso corredor cheio de subidas, descidas e desvios. Depois de um certo tempo, pelo fato de jamais chegarmos a lugar algum, comecei a sentir um medo atroz. A idéia de que monsenhor pudesse ter enlouquecido tomou conta de mim. Ele poderia estar indo não em busca de irmã Geovana, mas da consumação do próprio destino. Afinal, ele não declarara ter certeza de que morreria neste mesmo dia? Ainda o segui por alguns instantes, mas de repente não me contive e agarando-o pelos ombros fiz com que se voltasse para mim.

- Esapero que o senhor saiba o que está fazendo. Se ficar claro para mim que não estamos à procura de irmnã Geovana, fique certo de que o senhor não morrerá queimado, porque eu o mato antes!

Como resposta, monsenhor me deu uma sonora bofetada. E prosseguiu célere, sem ao menos se dar ao trabalho de verificar se eu o seguia. É claro que fui atrás do digno prelado, disposto, no caso de sairmos dali com vida, a lhe implorar de joelhos que me perdoasse a ignóbil suposição. De repente, ele se imobilizou diante de uma porta, que em nada diferia de todas as outras não fosse a presença de uma trave de madeira, que a atravessava de lado a lado e que fora ali fixada mediante o uso de pregos.

- Malditas! - bradou monsenhor, transtornado. - Elas a trancaram aí dentro!

- Este é o quarto de irmã Geovana? - perguntei, trêmulo.

- Sim. Vamos arrombá-lo!

Ato contínuo nos atracamos com a trave de madeira com tal fúria que em segundos ela se partiu ao meio. No mesmo instante a porta se abriu e irmã Geovana caiu literalmente em nossos braços. Seus olhos estavam vermelhos e suas mãos, certamente de tanto socar a porta, sangravam muito. Mas nada além disso. Emocionalmente, no entanto, estava irreconhecível. O terror a abalara de tal forma que ela parecia ter perdido a razão. Ao invés de querer sair dali imediatamente implorava aos gritos que a levássemos até Anilec, a quem pretendia matar. E por mais que tentássemos fazê-la compreender que precisávamos descer logo, já que o fogo acabaria nos impedindo a fuga, ela se recusava a nos acompanhar. Foi então que monsenhor, um especialista em fazer com que insanos circunstanciais recobrassem a razão, lhe aplicou uma soberba bofetada. O efeito desta singular terapia foi imediato: minha amada caiu num pranto convulso e deixou-se conduzir.

À medida que empreendíamos o caminho de volta fomos percebendo que a quantidade de fumaça aumentara muito, assim como o calor, a esta altura insuportável. Quando finalmente nos aproximávamos da escada aconteceu a catástrofe: o chão se abriu à nossa frente e monsenhor, que nos guiava, foi tragado. Desesperado, agarrei irmã Geovana com toda a força, reuni todas as energias de que dispunha e a arrastei comigo num salto absurdamente arriscado, mas que felizmente nos fez transpor a cratera que se abrira. Em seguida, sempre rebocando minha amada, desci feito um louco a escada.

Quando chegamos ao segundo andar, empurrei-a para baixo, ordenando que me aguardasse no pátio, e me meti nas chamas. Não tive que caminhar mais do que alguns passos para chegar até monsenhor, que jazia inanimado no meio do corredor. Embora o fogo ainda não o tivesse atingido, percebi pela quantidade de sangue que saía de sua cabeça que seu ferimento era grave. Coloquei-o nas costas e o carreguei até o pátio. Lá chegando e ajudado por irmã Geovana, estendi-o no chão e examinei seu ferimento, enquanto ela tentava reanimá-lo. Mas tivemos que interromper tudo logo em seguida, pois a ala do convento situada à nossa esquerda começou a desmoronar. Colocando novamente monsenhor nas costas, fomos os três para o lado de fora.

Assim que passamos pelo portão de entrada, a estrutura que o sustinha ruiu em meio a um formidável estrondo, bloqueando a passagem. Como só havia no convento mais uma porta, aquela pequenina que ficava do outro lado, as irmãs que não conseguissem atingi-la morreriam queimadas, já que dificilmente obteriam êxito em sua tentativa de debelar o fogo e saltar das muralhas equivaleria a uma morte certa, pois eram altíssimas.

Irmã Geovana e eu estávamos conscientes da gravidade da situação, mas nada mais nos restava fazer a não ser tentar salvar a vida de monsenhor. Entretanto, seu estado era gravíssimo. Para melhor avaliar a extensão de seu ferimento, arranquei a camisa e com ela enxuguei o mais que pude o sangue que escorria de sua fronte, enquanto minha amada abria sua batina a fim de lhe facilitar a respiração. Depois ela se sentou na relva a apoiou a cabeça do prelado em seu colo. E assim permanecemos um bom tempo, aguardando ansiosos qualquer sinal de melhora.

Num dado momento, monsenhor recobrou a consciência e nossas esperanças renasceram. Primeiro ele nos olhou por alguns segundos, o que nos fez pensar que não nos reconhecia. Mas depois ele falou - na verdade, sussurrou -, apesar de ter-mos lhe implorado para não gastar inutilmente suas energias.

- Se vocês resolverem ficar juntos, o que espero que venha a contecer, faço questão de ter um quartinho reservado só para mim...para fazer uma visita, uma vez ou outra...

- O senhor virá conosco! - aparteou minha amada. - Morará na nossa casa! - e tentou sorrir em meio à torrente de lágrimas que lhe escorria pela face. Em seguida, se debruçou sobre o rosto de monsenhor e começou a beijá-lo com tanta sofreguidão que parecia acreditar que, assim agindo, conseguiria estancar o sangue que voltara a brotar da terrível ferida. Só afastou um pouco seu rosto quando o amigo querido, com a voz já praticamente sumida, disse que gostaria de ficar a sós comigo por alguns instantes. Mesmo aparentando uma certa surpresa com o pedido, irmã Geovana não disse nada. Colocou delicadamente a cabeça do prelado sobre a relva e se afastou alguns passos, imersa na mais profunda dor. Monsenhor tomou uma de minhas mãos e disse:

- Me desculpe...por aquele episódio...

- Que episódio, monsenhor?

- Por favor...não se faça de desentendido...você sabe a que me refiro...

Mas eu não sabia. E se sabia, não lembrava.

- Toda a minha vida eu lutei contra essa fraqueza...essa deformação...ou que nome tenha isso. Quando vim para cá foi pensando em isolar-me o mais possível. Achei que seria mais fácil para mim...mas foi inútil. Quero que você saiba que lamento profundamente ter perdido o controle...e agradeço a maneira como você se portou. Gosto de você como de um filho...é importante para mim que você acredite nisso...

- É claro que acredito, monsenhor.

- Você está sendo sincero? Não se esqueça do nosso pacto de não nos mentirmos nunca...

- Monsenhor....- e aí não me foi mais possível reprimir o pranto. - O senhor e irmã Geovana são as únicas pessoas que amo realmente! Não se vá, por favor. Nós precisamos tanto do senhor!? Faça um esforço, não se entregue, eu suplico...

Mas monsenhor Flávio já não podia mais compreender meus apelos.
Estava morto.

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