quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

                            Flores de Chumbo

                                                                                                                         Lionel Fischer
                                                                                                                               (1984)

                                                                     CAPÍTULO XXVI


           Monsenhor Flávio foi enterrado no mesmo local onde faleceu. Na impossibilidade de transportá-lo até o cemitério, decidimos cavar uma sepultura com as próprias mãos, e depois a cobrimos com pedras e flores. Quando terminamos, amanhecia. Do convento escapava uma fumaça negra, espessa, que depois de elevar-se a uma grande altura se espalhava pelos campos, triste mensageira da tragédia que se consumara. Antes de nos dirigirmos para a granja, iemã Geovana me pediu que rezasse junto com ela pela alma das irmãs. Eu concordei, com a seguinte ressalva:

          - Pedirei por todas aquelas que foram vítimas dessa tragédia. Quanto às outras, as que a causaram, implorarei ao Senhor que lhe reserve um tormento equivalente à monstruosidade que perpetraram.

           Irmã Geovana não procurou me demover desse propósito. Não obstante, senti que não o aprovava. Mas respeitou minha cólera, assim como eu sua indulgência. Finda a oração, atiramos uma última flor sobre o túmulo do amigo querido e nos fomos. Caminhamos em silêncio, de mãos dadas, o peso da tragédia a nos retardar a marcha. Quando chegamos na granja, estávamos tão cansados que nos deitamos imediatamente. Irmã Geovana adormeceu tão logo a acomodei na cama, mas eu ainda fiquei um bom tempo acordado. Embora minha dor fosse bem menor que a dela, se levarmos em conta que, além de monsenhor, ela também perdera um grande número de pessoas queridas, o fato é que a lembrança do prelado não me deixava em paz. A certeza de que nunca mais o veria me dilacerava a alma. Se ao menos tivesse tido tempo de me preparar!? Mas não, tudo acontecera de forma tão imprevista que eu não sabia como me defender, como lidar com essa perda irreparável.

           Acabei adormecendo e tendo pesadelos atrozes, todos ligados à pessoa de monsenhor. Quando acordei já era noite e irmã Geovana não estava mais no leito. Sentada no divã da sala, imóvel e ausente, parecia ter-se desligado para sempre deste mundo. Pela primeira vez sua beleza me pareceu trágica. Sentei-me ao seu lado, peguei sua mão, mas ela continuou do mesmo jeito, como se esse contato tivesse lhe passado despercebido. Pensei em consolá-la, mas me senti incapaz de dizer algo que pudesse ao menos amenizar uma dor tão grande. Afinal, exceção feita à minha pessoa, todo o seu mundo ruíra de uma só vez. Será que teria forças para superar uma tal adversidade? Ou agiria como a maioria das pessoas que sofrem perdas graves e que, por defesa, acabam se tornando criaturas anestesiadas, insenssíveis, totalmente destituídas de alegria e esperança? Diante de um tal quadro, eu precisaria sofrer de uma onipotência patológica para achar que "apenas" meu amor bastaria para fazê-la de novo encontrar prazer em viver.

          Às nove da noite perguntei se ela queria comer alguma coisa. Ela respondeu que não. Perguntei se queria se banhar. Ela respondeu que não. Perguntei se ela se importava que eu tomasse uma ducha. Ela respondeu que não. E acho que daria a mesma resposta ainda que lhe fizesse duzentas perguntas. Em vista disso, preferi deixá-la em paz e fui para o banheiro. O contato com a água me fez um bem enorme. Meu corpo foi aos poucos retomando sua coloração original. E meu espírito se beneficiou igualmente, como se aquela água arrastasse consigo todo o tipo de impurezas. Não cheguei a ficar feliz, evidentemente, mas me senti forte o bastante para enfrentar sem desespero os momentos difíceis que se seguiriam.

          Quando retornei à sala, irmã Geovana continuava no divã, na mesma posição em que a deixara. Preparei então uma rápída refeição para nós dois, embora ela insistisse que não queria nada. Mas acabou mordiscando um pedaço de queijo e bebendo meio copo de leite. Em seguida, como se mostrasse disposta a retornar ao divã, propus que déssemos um passeio pela granja, tentando pôr em prática com ela o mesmo tipo de terapia que monsenhor empregara comigo. Ela relutou o mais que pode, mas minha tenacidade acabou se revelando superior à sua resistência.

           Esse pequeno passeio noturno foi extremamente produtivo. Irmã Geovana acabou chorando, gritando, amaldiçoando a vida, afirmando que desejava a morte, enfim, extravasando toda a angústia que a oprimia. Ao voltarmos para casa, era inegável a transformação que nela se operara. Já não mais agia como uma sonâmbula, mas como alguém que se dispõe a superar uma grave crise, sem no entanto negá-la.

          No dia seguinte, fomos acordados pelo apito do trem. A via férrea passava bem perto da granja e parece que os motorneiros tinham o hábito de sair apitando mais ou menos a partir daquele ponto, para que quando a composição chegasse à estação toda a cidade já estivesse prevenida. Esse fato nos colocou diante de um impasse. Na qualidade de sobreviventes, deveríamos correr até a estação para receber as autoridades e lhes dar ciência, inclusive, da nova catástrofe. Mas esse iniciativa me pareceu que não seria bom para nós dois, sobretudo para irmã Geovana. Ela teria que responder a inúmeras perguntas, talvez fosse induzida a levá-los até o convento - o que significaria reviver todo o pesadelo. Quanto à minha presença. eles poderiam perfeitamente julgá-la suspeita: o que estava eu fazendo ali? E será que não nos imputariam alguma responsabilidade pelo sinistro?

          - Veja bem, Geovana...- principei, tentando argumentar com toda a calma. - Tudo que aconteceu neste lugar é tão absurdo que eu próprio, se não tivesse testemunhado os fatos, talvez não conseguisse acreditar que pudessem ter ocorrido. Essas pessoas, no fundo, não vieram até aqui apenas para cumprir com sua obrigações, mas sobretudo para saciar sua curiosidade, exercitar a própria morbidez. E aí, no meio dessa cidade fantasma, se deparam conosco: o jovem viajante e a jovem superiora, únicos sobreviventes de toda a tragédia. Você acha que não vão se aproveitar disso? Acredita que se interessarão pela versão honesta dos fatos? É evidente que não!?

          - Seja como for, é minha obrigação ir até lá e relatar a parte da história que ainda desconhecem. Por mim, eles podem pensar o que quiserem.

          Ainda tentei convencê-la do risco a que nos expúnhamos, mas foi inútil. Meia-hora depois partíamos para a cidade. Quando lá chegamos, e ainda que sem sermos vistos, nos deparamos com uma turba embriagada e eufórica, que se referia à chacina no cemitério de forma grosseira e leviana. Enojada, irmã Geovana me pegou pelo braço e juntos voltamos para a granja. Durante esse trajeto escutei-a proferir adjetivos que certamente não utilizava há muito tempo, se é que os havia utilizado algum dia. Quando chegamos, ela se pôs a transformar seu hábito numa espécie de vestido improvisado, cujo resultado me agradou plenamente. Em seguida, supervisinou a seleção de alimentos que levaríamos, os colocou numa grande sacola e declarou-se pronta para partir. Quanto a mim, peguei apenas meu dinheiro, documentos e um par de casacos. Tudo o mais, inclusive a vida de Ambrosina, ficou na granja.

            Ao sairmos, encontramos o formidável hirco, que, por motivos que até hoje desconheço, resolveu partir conosco. Caminhamos então até a via férrea e iniciamos nossa longa jornada. nos afastando progressivamente da cidade. Não nos voltamos uma única vez. Não porque temêssemos ser convertidos em estátuas de sal. Mas simplesmente porque, para nós, uma vida nova começava.

                                                F I M

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