quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

RSI

Francisco Bosco


Estou longe de ser um lacaniano: li poucos dos seus muitos "Seminários"; li poucos dos seus diversos "Escritos"; li poucos dos seus inúmeros comentaristas. Desconheço amplamente sua obra. Mas algumas de suas idéias penetraram tão fundo no meu pensamento que se me tornou impossível ler o mundo sem elas. É o caso dos três registros constitutivos, segundo Lacan, da experiência humana: o real, o simbólico e o imaginário. Para os leitores não familiarizados com a questão, vou tentar apresentá-la aqui, do modo como a compreendo. Para isso, farei uma leitura do clássico "Doze homens e uma sentença", para mim um dos melhores filmes da História do cinema.

A situação é a seguinte. Doze homens formam o júri popular cuja tarefa é dar o veredicto sobre o caso de um adolescente acusado de matar o pai a facadas. Logo na cena de abertura, o juiz lhes adverte: "Seu dever é separar os fatos da imaginação". Os 12 homens são trancados numa sala, onde devem revelar seus votos, discuti-los, se não houver consenso, e entregar o veredicto. Como a pena é máxima (morte por cadeira elétrica), o acusado só será condenado se for por unanimidade. Os homens entram na sala. Faz um calor intenso e o ventilador está quebrado. Depois de meia dúzia de frases triviais, abrem a sessão. Alguém, apressadamente, propõe uma votação, como se o resultado fosse óbvio. Com efeito, todos parecem estar convencidos da culpa do réu. Começa a contagem dos votos. Todos declaram: "Culpado". Todos, menos um.

Como um único voto suspende a condenação, os homens têm que debater o caso. O sujeito que furou o consenso inicial (um certo Davids) passa a duvidar sistematicamente de todas as supostas provas levantadas pela acusação. Para haver condenação, adverte, é preciso atingir o fato irredutível, a verdade inquestionável. A todos os demais, as provas parecem suficientes. A ele, não. Alguns dos homens se revoltam contra ele. Um deles está ansioso para ir embora porque tem ingressos para um jogo de beisebol. Um outro está impaciente por conta de uma gripe. Um terceiro, o mais raivoso do grupo, grita estar convencido da culpa do réu, e é um absurdo duvidar dela.

Pois bem, essas informações já são suficientes para que eu introduza as noções lacanianas. O real é, precisamente, o fato irredutível, a verdade inequívoca: o que o júri está a perseguir. O simbólico é o campo da linguagem, da fala, da racionalidade - por meio do qual o júri tenta chegar ao real. O imaginário é a instância não racional, lugar do ego, das identificações, da agressividade, que atravessa o simbólico e o determina.

A função estrutural de Davids é justamente impedir que se forme um acordo, ilusório, sobre o real, que no caso custaria a vida de um adolescente, possivelmente inocente. A cada suposta prova apresentada, ele demonstra que é possível que as coisas não tenham se passado assim. A acusação alega que a faca utilizada no crime é um modelo raro, e que o adolescente tinha um desses. Davids saca de seu terno um modelo exatamentge igual. "É possível" que a arma não fosse dele.

Uma testemunha ocular disse ter visto o rapaz esfaquear o pai. Davids lembra que ela estava em outro apartamento, a dezenas de metros, que teria visto a cena enquanto um trem cruzava a linha à sua frente. "É possível que ela tenha se enganado". A expressão "é possível" designa a negatividade do real, a impossibilidade de o simbólico atingi-lo. Em termos epistemológicos, é como um homem tentar pegar a sua sombra. A realidade é desde sempre um efeito da interação do real com o simbólico. O simbólico não pode provar o real. "É possível" designa todo o campo da realidade, que é feita da superposição, indeslindável, entre real, simbólico e imaginário.

Um por um, o filme vai revelando como um consenso inequívoco pode ser apenas o conjunto de equívocos insconscientes. O júri está disposto contra o adolescente porque ele cresceu numa favela. Mas um dos seus membros também veio da favela e nem por isso é um criminoso. O preconceito revela-se uma das formas de produção, equivocada, da verdade. Outro indício trazido pela acusação é que ouviram o réu gritar: "Eu vou te matar!", para o pai, depois de ter sido agredido fisicamente por ele. Davids lembra que essa expressão é corrrente na língua, e tem função de hipérbole, um exagero sem conseqüências literais. A certa altura, no meio de uma discusão entre o júri, o mais exaltado dos homens grita para ele: "Eu vou te matar!" A linguagem figurada relembra o desacerto constitutivo entre o simbólico e o real.

Ao longo da deliberação, os jurados vão, um por um, mudando seu voto para "não culpado" (a negatividade aqui é decisiva: "não culpado" é diferente de "inocente"). Resta apenas um, que se aferra à condenação. Mas ficamos sabendo que ele tem um filho da mesma idade que o réu, que também ele agredia o filho, que havia uma relação conflituosa entre eles. Aí está o imaginário, triunfante. O homem, sempre raivoso, sempre aos berros, tinha sua perspectiva "racional" do caso determinada por sua identificação com ele. A raiva, de resto, é um indício do imaginário: em geral, somos afetados por algo que nos diz respeito intimamente. A propósito, o título original do filme é "12 angry men".

Por falta de provas, o júri chega ao consenso, negativo portanto, de que o réu é "não culpado". Enquanto isso, o real se manifesta a seu modo: no calor infernal, na gripe de um homem, na chuva que desaba.
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Artigo extraído do jornal O Globo (Segundo Caderno, 01 de dezembro de 2010)

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